quarta-feira, 8 de setembro de 2010

O ARREPENDIDO

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Era uma vez um homem nascido de uma barriga de fome. A parteira da aldeia dera-lhe a primeira palmada e lavara-o num alguidar de barro. Cresceu descalço, de calções rachados no cu, comeu as azedas dos caminhos, fez saltar as pinhas na lareira, dormiu entre mantas de vindima, brincou no quelho com as galinhas, limpou o ranho às folhas das videiras, comeu cachos verdes escondido nas sombras de Agosto, aprendeu a tabuada e a escrever o nome com as mãos estendidas para a palmatória, jogou o monte e o sete e meio no adro da Igreja e chegou a tocar o sino para as missas de domingo.

Nos socalcos, conheceu a enxada da cava, o ferro dos saibramentos, o peso dos pulverizadores, a moderação da espampa e o carrego dos cestos nas fainas de Outubro. Nos terreiros de poeira, ou de lama, namorou com os olhos e com os lábios, dançou nos leilões, embebedou-se ao desafio, mostrou a navalha de ponta e mola, gabou-se de valentias diante de lobisomens nos Quatro Caminhos e das conquistas no Socorro e nos Remédios.

Os ralhos da Mãe e os rezingares constantes do Pai faziam-no olhar para o fundo do vale, onde a estrada, ébria de curvas, lhe sorria a evasão. Farto de brigas, da meia sardinha e um naco de pão ralão, da água-pé da cava, do pulverizador do sulfato e dos cestos atestados de uvas, abalou.

Ainda o sol não arreganhara os dentes a uma lua mal talhada, sem mala ou embrulho, meteu-se a caminho, acalentando os passos da fuga. Na vila ribeirinha ripou os tostões do bolso e tomou o comboio que o levaria à cidade grande. Ruminou sonhos de fato novo, raparigas para apalpar e possuir em becos escuros, filmes de mamas ao  léu, Cafés de gente fina, futebol em Estádios maiores do que a sua terra, ruas compridas cheias de gente.

O Revisor pediu-lhe o bilhete com uma voz de alicate. O rio, à sua esquerda, acompanhava-o, mas não era o mesmo que ele conhecia. O seu era manso e dava-lhe peixes para fritar; na sua borda, havia uma barraca onde, nas noites de Verão, adormecia com o seu deslizar como uma brisa de arvoredo. Mesmo nos Invernos em que ele galgava vinhas e transformava as ruas em canais, gostava de ouvir a água ali mesmo à beirinha, no cimo das rampas, sentir-lhe o cheiro a barro, aquele jogo de sobe e desce numa intimidade de risco e de estranheza. Quando ele regressava ao seu lugar, abandonando lama e entulho, partia-se-lhe o coração, desiludido com uma coisa tão linda ser capaz de deixar tanta tristeza. O rio que agora via não tinha fragas à mostra, era espesso e escuro, espremido por gargantas montanhosas e margens de lodos ondulantes; só os laranjais e o casario que trepavam até ao céu o alegravam.

Chegado à cidade, um bruá, sem origem e sem dono, esmurrou-o de espanto. Encostou-se ao varandim exterior, defronte das portas da Estação, entreteve-se a ver as saídas e as entradas, virou-se ao contrário para se rir com tantos carros a quererem passar ao mesmo tempo, como as poedeiras da Mãe à bulha por um grão, e aventurou-se, precavido, desconfiado de uma cilada.

A cidade do sonho era a confusão das gentes, que, de embrulhos nas mãos, corriam como se os tivessem roubado e fugissem, esbaforidas, de uma perseguição; gesticulavam, berravam, empurravam, cuspiam no chão e para o ar, gritavam de punhos erguidos ao mando de alto-falantes que esganiçavam palavras que ele nem percebia; pisavam os jardins, deitavam papeis para os pés e para os cantos. A cidade da lenda era um asilo de aleijados e cegos estendidos nos passeios, grupos de velhos encostados nas esquinas a falarem de futebol e de política ou sentados na solidão de bancos de praças despidas de árvores feitos lagartos ao sol; corpos jovens com caras gastas à espreita de carteiras distraídas; mulheres, de chumaços nos peitos, nas ruas das quinquilharias, a vomitarem palavrões de sexo estragado; rostos enfiados em máscaras a falarem sozinhos, rindo sozinhos, gesticulando sozinhos; loucos, de barbas desprezadas, a darem vivas a Reis de que nunca ouvira falar; velhas andrajosas, de cabelos encodeados, sapatos rotos e bocas sem dentes, sem um riso, sem uma mão de carícia, sem uma boca de ternura; crianças endurecidas por olhos de revolta e de escárnio, de dor e de desprezo, esticando os braços em busca de uma esmola como quem pede desculpa.

Não precisou de se afastar muito. Bastou-lhe subir e descer duas ou três ruas, dar a uma praça com uma estátua de um cavalo de perna alçada e um homem (devia ser alguém importante) em cima a segurar a rédea, para compreender que se enganara na ilusão. Olhou para o alto: o céu pintava-se de ferro velho. Não respirava como na sua aldeia, não ouvia um choro de criança a ecoar nos montes, sentia-se preso, e lá estava a torre da Estação com o relógio a marcar o tempo. Meteu as mãos nos bolsos, contou o dinheiro, comprou um bilhete de regresso, foi a uma taberna, logo ali ao lado, comer uma posta de peixe frito, bebeu uma taça de branco e voltou aos socalcos da sua terra.
- Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no Blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua.

    sexta-feira, 3 de setembro de 2010

    O Baile das Vindimas

    Longe vão os tempos em que a ilustre Comissão Organizadora do Baile das Vindimas de 1961 deixava mostrar os seus rostos. Na sua maioria, dela faziam parte admiráveis senhoras, como se pode ver na fotografia, Raquel Ruas Rato, Margarida Quinas Guerra, Maria José Janeiro, Maria Arlette Pavão Bandeira, Maria Natália Viana Pinto, Teresa Martinho, Mercedes Quinas Guerra, Maria Odete Vasques Osório, Maria Fernanda Guichard, Maria Carolina Sampaio Vilela, Maria Nélia Penhor Janeiros Chaves que estavam acompanhadas pelos senhores Alberto Gonçalves Martinho, José Ernesto dos Santos, José Guedes Leite, Alfredo Baptista e Manuel Alves de Sousa – que contribuíam para o sucesso de um dos mais emblemáticos eventos sociais da região duriense, o mítico Baile das Vindimas, realizado vários anos, com o apoio dos bombeiros da Régua.

    Quem teve o privilégio de assistir e de participar num baile das vindimas sabe que não era, como aqueles que se faziam um pouco por todo o lado, nas instalações dos bombeiros, um mais um dos bailes dos bombeiros, sempre frequentados por gente simples e de trabalho, que não tinham mais sítios para se divertirem. O baile das vindimas era um verdadeiro espectáculo de “glamour”, brilho, beleza, graciosidade que reunia pessoas distintas e com classe. Como dizia um jornal da época, “juntando senhoras das mais consideradas do meio, todas elas vistosas, elegantes e muitas de verdadeiro recorte parisiense”. Sem dúvida que atenção ia para a elegância do vestir das senhoras, de finas toilettes e vestidos compridos e cintilantes e os cavalheiros de fato e casaco, de laço ou de gravata, ávidos de exibirem os segredos da dança. Quando começava a tocar um tango, um bolero ou uma valsa, os cavalheiros com aquela postura de boa educação, abraçavam pela cintura as senhoras, para mais uma dança, enquanto esse encanto não se perdia e ficava a saudade de um momento único e inesquecível.
    Dançava-se ao ritmo de orquestras e conjuntos musicais. Ao princípio, actuava a prata da casa, como os “Reguenses” e o Conjunto de José Armindo, mas depois vieram as mais famosas no país, a apreciada Shegundo Galarza e outras consideradas pela qualidade da música, como a Tony Hernandez, Pedro Osório, José Nóvoa, Tártaros e o irreverente Conjunto Aftas. Não chegou a cantar o Julio Iglesias, que foi contactado para estar num dos bailes, mas o seu “cachet” perto de duzentos contos, considerado muito dinheiro, fez hesitar os primeiros organizadores e aquele acabou por não vir actuar, se bem que, mais tarde, se tenham arrependido.

    Em Setembro de 1956, realizava-se o primeiro baile das vindimas no Quartel dos Bombeiros. Na imprensa nacional, o espectáculo foi anunciado como o “Grande e Anual Acontecimento do Douro”. Nos anos seguintes, o baile continuou a realizar-se no Quartel dos bombeiros, pelo menos, até ao ano de 1970. Mais tarde, alguns aconteceram na Casa do Douro, no seu esplendoroso salão nobre, onde realizaram, em 1982, o último grande baile de gala. Em 2009, uma organização ligada ao turismo fez uma tentativa de ressurgir o baile, mais uma vez, na Casa do Douro. Quem foi convidado para baile, que teve a presença de outras estrelas da sociedade, garante que não se podia comparar com os de antigamente…!
    Foi um grupo de irrequietos jovens, na casa dos vinte e poucos anos, que se lembraram de realizar um baile das vindimas, na Régua. No final dos anos 50, os filmes em cartaz no Cine-Teatro Avenida, eram o passatempo preferido do Fernando Magalhães, Elvira Pinto da Fonseca, a Bita, José Pinto da Fonseca, Tobé Sarmento, Fernando Carvalho, António Luís Correia, Armindo Lopes, Pôncio Monteiro (filho) e José Ernesto dos Santos e, fora desse ambiente, pouco ou nada de interessante mais tinham para se divertirem, depois de acabadas as Festas do Socorro.

    Numa conversa, no Café Nacional, onde se encontravam nas longas tardes de tédio, para ler o jornal e ver quem passeava pela movimentada Rua dos Camilos, surgiu-lhes a magnífica ideia de organizarem um baile de gala, como faziam alguns clubes sociais do norte. As vindimas costumavam trazer ao Douro muitas famílias, uns para férias e muitos outros para o trabalho nas quintas. Mas não havia eventos sociais e culturais que fizessem despertar a pacata vila. A realização de um baile dançante, abrilhantado com boa orquestra musical, podia entusiasmar as pessoas que permaneciam ou vinham visitar as belezas e encantos do Douro.
    Nenhum desses jovens fazia parte da associação dos bombeiros, pelo que alvitram Casa do Douro, como lugar mais indicado para o baile se fazer, aliás haveria uma melhor opção. A instituição representativa dos lavradores durienses, sediada num soberbo edifício de arquitectura imponente, típica do estilo e gostos do nosso Estado Novo, tinha disponível um salão de dimensão e de esmerado requinte. Depois, seria natural, que ela aproveitasse o evento para fazer a promoção turística da região duriense e do negócio do vinho do Porto. Só que os directores, por certo, alheados à realidade e ao fluir das ideias do tempo, não anteviram qualquer interesse, o que deixou os jovens surpreendidos com a indiferença e a impassividade, mas não desanimados no seu inabalável propósito.
    Os jovens determinados esforçaram-se por encontrar uma alternativa. Dirigiram um novo pedido, desta vez, à direcção dos bombeiros para que emprestassem uma sala do novo Quartel, situado na então Av. Sebastião Ramires, onde haviam sido realizadas indispensáveis obras de acabamentos. Naquele tempo, o edifício estava dotado com salas espaçosas que se podiam adaptar para salão de danças. Avaliado e examinado numa reunião de direcção, o pedido e o programa do baile, ninguém exibiu reservas nem barreiras à vontade firme desses jovens. Da parte dos bombeiros, pensando que também obteriam ganhos, houve um empenho para deixar realizar o baile nas suas instalações.

    Nesse ano, como o salão nobre se encontrava inacabado, aguardando benfeitorias, o baile das vindimas teve de fazer-se no rés-do-chão do Quartel dos Bombeiros, que foi, antecipadamente, desocupado das suas viaturas e ambulâncias e transformado numa pista de dança, ornamentada e iluminada. Os receios e as incertezas só desapareceram quando, surpreendentemente, perto de 400 pessoas compraram o seu bilhete, com um preço para os cavalheiros, de 70 escudos e para as senhoras, de 50 escudos, encheram o recinto, dançaram e se divertiram até altas horas da madrugada. Alcançava, assim, sucesso o primeiro baile de vindimas um estrondoso sucesso, que continuou por mais anos.

    Estávamos em 1956 e, a partir desse ano, a direcção dos bombeiros passava a assumir a organização do baile das vindimas. Para facilitar o trabalho, decidiram constituir uma comissão organizadora que se encarregasse de manter um programa de qualidade. Estavam incluídas sempre muitas senhoras sobejamente conhecidas e de mérito pessoal e profissional, que garantiam o brilhantismo desejado e o êxito nas receitas e os lucros a favor dos bombeiros. Isto fez provocar mudanças de pessoas na sua organização. Assim, a direcção dos bombeiros descobria uma forma simpática de conseguir mais fundos, sempre necessários para superar dificuldades económicas e fomentar mais obras. Um outro objectivo do baile das vindimas, previsto pelos organizadores, seria a promoção turística da região, para “enaltecer a beleza da Região do Douro e fazer propaganda do seu maior embaixador o Vinho do Porto”.

    O baile das vindimas passou a ser um símbolo. Entusiasmou muita gente da sociedade reguense e não só, algumas pessoas deslocavam-se de Resende, Alijó, Vila Real, Tabuaço, Lamego e até do Porto e Lisboa. A sua fama tornou-o num acontecimento social de prestígio, de nível elevado e de bom gosto, atraente para quem visitava o Douro, e obrigatório para os que gostavam de deslumbrar-se num ambiente fino e requintado.
    Se ele continua a ser evocado e elogiado, deve-se em grande parte aos que o sonharam e tudo fizeram para que fosse mais um emblemático cartaz das vindimas do Douro. Não podem ser olvidados os seus pioneiros organizadores, hoje alguns com a idade de avós simpáticos e respeitáveis, como o Magalhães, o Nano e o Pôncio, nem os directores dos bombeiros dessa época - em especial, o Sr. Alfredo Baptista - que merecem ser louvados pela ousadia e o contributo para uma maior divulgação do baile das vindimas. Se os bombeiros não facilitassem o seu Quartel, o baile das vindimas seria contado só como uma história de grandes amigos, imaginada nas mesas de um velho café, por maior que fosse a iniciativa dos seus criadores.
    Pela importância social que alcançou no passado, os bombeiros da Régua têm a obrigação natural de fazer ressurgir o brilho perdido do baile das vindimas, no seu genuíno modelo, sem a intenção de fazer reviver os bons velhos tempos, mas para não deixar cair uma tradição que, sem abandonar a preservação dos valores humanistas e solidários, pode voltar a atrair mais pessoas a este paraíso peculiar que é o Douro, no tempo das vindimas.
    - Colaboração de José Alfredo Almeida*, Peso da Régua, Setembro de 2010. Clique nas imagens acima para ampliar.
    O Baile das Vindimas no "Arrais" - 1
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    O Baile das Vindimas no "Arrais" - 2

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    • *José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também crónicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária, fatos do passado da bela cidade de Peso da Régua de onde é natural e de figuras marcantes do Douro.

          quarta-feira, 1 de setembro de 2010

          A NAIFA

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          «Tá ver? Tá ver? É o que lhe digo, um home num pode deixar de ser seguro! Hoje, de manhê, tive mesmo p´ra trazer a naifa. Disse cá p´ra mim: “ bem, num debe ser preciso, esta malta é porreira “, afinal, é o que se vê. Abaliei bem mal! Olhem-me qu´isto! Já onte, quando saíram do lagar e começaram a mandar vir, diga-se de passage, sem razão nenhuma, deu-me logo cá uma zoeira no toutiço que nem imagina a minha impressão! Só me deu bontade de abandonar a prensa e botar logo a gadunha a um! São alebantados lá os gajos! Tá bonito isto! Anda-te aí um que não é nada bem encarado, na minha palavra de honra! Onte, atão, era o que mais palrava, “que não, que não“, e não entraram mesmo no lagar! O tipo é o chefe deles, é mesmo reguila, e armou-te aí um banzé dos diabos! E eu cheio de bô fé a dizer que esta malta é porreira! Sim, senhor,bonito serviço!

          Num importa o quê? Isso é o que lhe parece! Atão acha bem uma desfeita destas? Tem que haver respeito, isto inda num é o Brasil, ora esta! Eles pensam que vêm p´ra cá abusar ó quê? Que abusem na terra deles, homessa! Anda a gente a rogá-los, a dar-lhes dinheiro a ganhar, e depois fazem isto! Olhem-me qu´esta num tá mal, não senhor... Se me dá na bolha, inda bou a casa buscar o instrumanto! Tou a ver que sim! Inda bou buscar o alfange p´ra dar uns riscos àquele terrorista! Vocemessê num faz ideia da
          impressão que o gajo me mete!

          Como? Num entendi o que o senhor disse? Não, já o merquei há uns tampos. Aquilo, carago!, tem p´raí o comprimanto da mão daquele rolador! Só visto! Autântico! Tem aquele comprimanto à segurança! P´ra que preciso eu disso? Tá boa a chiba, tá! A cada passo é preciso. Há sampre quem nos queira mal, uma zanga, uma espera, sei lá, uma hora de aflição. Onde calha se encontra um patife. À moda do outro, um home num gosta de ir p´ró xadrez, mas em vez de as levar num há-de dar? Conversa... mas isso é indiscutíbel! Com calma? Com calma, leba-as um home e cala! É o que lhe digo! Eu tamém já lebei... Uma vez foi aqui no estômago, salvo seja aqui neste sítio, que nem lhe conto. Inda tenho a marca dos pontos e nunca mais me esquece! Lebei à volta de cinco pontos. Diz a minha qu´inté me saíram as tripas! Ela é que diz isso, eu num bi nada... Mas eu mandei-lhe, tamém, três rasgos que o puz às portas da morte! Andava eu a podar, nessa ocasião, numa Quinta duns ingleses, era uma coisa grande, até queriam pôr torneiras p´ra regar aquilo, veja bem; eu binha todos os dias a casa, nesse tampo a minha escrita tava sempre em dia, entende-me o que quero dizer?, bom, eu binha todos os dias a casa e, uma noite, encontro aquela alma no caminho. Desgraçado! Trazia uma borracheira que só bisto! Deu-me p´ró entreter. Às páginas tantas, começa-te lá cum relambório! Inda aguantei, mas depois num pude mais, inté a minha Mãe ofendeu, o grande cabrão! Como o senhor sabe, isso nenhum filho, que o seja de bom sangue, finge que num oube. Mandei-lhe umas lostras nas bantas e umas troviscadas no lombo cum pau que eu trazia sampre comigo, quando, sem eu contar, ripa-te de uma naifa e zás!, enterra-ma aqui mesmo, salvo seja. O que me valeu? A navalha da enxertia! Num lhe digo nada! Amandei-lhe umas cortadelas que nem queijo! Deixei-o lá a gemer, ali nos Quatro Caminhos, e soube, depois, passada uma boa tamporada, que se tinha mudado p´ra Lisboa e que andava lá a chegar massa nas obras. Eu lá me arrastei até casa, inventei que me tinha cortado cuma foice e quem me deu os pontos foi o Dr. Silvério, um santo home, num desfazando, e que Deus tenha em bom lugar. Claro que ele desconfiou logo, que era bô médico, e disse-me: “Pilroto, p´ra próxima chamo a Guarda!“ . Aquilo morreu, já foi há muito ano e inté nunca mais tive nada, mas nunca mais me fiei. Tanho andado sampre firme, nas devidas condições, que o mundo num tem só putos de Pais e putos de Mães, mas, tamém, filhos de outros Mães que num sabemos donde vêm e para onde vão, percebe-me o senhor o que quero afiançar?

          Olhe, que horas são? Pela nova ou pela velha? Minha Nossa Senhora! Já bou oubir um reportório desgraçado da patroa, que aquilo quando a comida esfria ela aquece quinté parece que a casa bai abaixo! Tem um génio estuporado! E ai de quem lhe responda, bai tudo raso, parece um ciclone! Daquilo é que tanho medo! É cá uma naifa que o senhor nem bai ao fundamanto! Amanhê, às seis velhas, tanho aí um lagar p´ra incubar. Santas noites e desculpe-me esta franqueza.»
          - Texto de M. Nogueira Borges extraído da publicação "Lagar da Memória".

          sexta-feira, 27 de agosto de 2010

          O Sino de Canelas

          Quiseram os bombeiros da Régua ter o seu museu quando, no dia 28 de Novembro de 1980, faziam 100 anos de existência. Quiseram e, com o esforço de alguns directores, entre eles destacou-se o Prof. Pedro Macedo, antigos bombeiros, amigos e benfeitores da associação, conseguiram que a ideia do Comandante Cardoso se tornasse uma realidade. Escolheram uma sala no último andar do Quartel Delfim Ferreira para preservarem as suas memórias que começavam a ser perdidas e esquecidas.

          Encontrado o lugar certo, arrumaram os primeiros os materiais de socorro, um carro de tracção humana usado nos primórdios da corporação. As moto-bombas que perderam a potência, apesar de parecerem outra vez novas. As agulhetas que apagaram fogos urbanos e florestais, ao lado de outras ferramentas. As fardas, os capacetes, botas e as aricas já sem uso. Os primeiros estandartes, bastante desbotados. Outros materiais que serviram para apagar fogos urbanos e florestais. Há manequins para mostrar como eram os primeiros uniformes utilizados pelos gloriosos bombeiros do passado século e pela sua fanfarra. Uma maca, muito gasta e quase a desfazer-se na lona e nas dobradiças, para transportar dos doentes infectados pela gripe “pneumónica” de 1918.

          De seguida reuniram-se os documentos históricos: a cópia da carta do rei D. Luís I, a atribuir o título de “Real Associação”, o livro dos primeiros estatutos, o regulamento do Corpo de Bombeiros e a inscrição dos sócios-contribuintes, o livro das primeiras actas, as medalhas, os crachás e os diplomas que mostram o mérito, o valor e a coragem de homens que se dedicaram de corpo a alma à causa do voluntariado e muitas fotografias, de todos os comandantes, bombeiros que se elevaram na sua acção ou que sacrificaram a vida para salvarem a de outros, de viagens e encontros com camaradas de outras corporações, de directores e de ilustres beneméritos que, muitas vezes, contribuíram com os seus bens para que a Associação pudesse permanecer no tempo como uma garantia de protecção e de socorro.
          Em 1983, o museu já recheado de muitas peças de valor e, devidamente organizado para receber condignamente os seus visitantes, era baptizado com o nome de “ Dr. João Araújo Correia”, em homenagem ao escritor reguense, desde criança um íntimo e entusiasta admirador dos bombeiros, como comprovam as suas cónicas de recordações.

          Este museu não preserva só a memória dos bombeiros. Ele preserva outras memórias e expõe objectos que fizeram a história de outras instituições, algumas já desaparecidas, como o Orfeão Reguense, que ao longo do tempo, se relacionaram com os bombeiros, pela dedicação de amizades, ajudas mútuas e realização de acções conjuntas, no âmbito do bem –fazer social e de solidariedade. E, se calhar para surpresa de muitos, guarda alguns preciosos objectos que se relacionam com episódios da história do concelho do Peso da Régua, como é o caso de um pequeno sino fundido em bronze que tem esta inscrição: "CÂMARA MUNICIPAL DE CANELAS/1852".

          Esta relíquia pode-se observar no museu dos bombeiros da Régua. Esta está conservada e arrumada num suporte, entre as demais peças que os bombeiros se serviram nas suas intermináveis missões de socorro. Parece que o sino naquele local se confunde com a própria história e as memórias dos bombeiros, mas não é verdade, já que tem algo que o distingue. Até podia ser confundido se, alguma vez, fosse posto no telhado do quartel e se os toques do sino tivessem convocado para actos heróicos os bombeiros, na falta da ruidosa sirene. Era assim, que o escritor reguense o imaginava a servir: "Quem quiser ver esse pedaço de bronze deverá subir à cobertura da nossa casa, como quem diz ao telhado do nosso quartel. Substituirá a sereia quando a sereia emudecer."

          Mas, este sino tem uma grande história para se conhecer, que muito poucos aprenderam na escola. Pertenceu ao edifício da ex-câmara de Canelas, quando era esta terra era a sede de concelho que veio a ser extinto em 1853. Depois da sua anexação ao concelho da Régua, o sino foi confiado aos seus bombeiros, na convicção de que no quartel poderia ter uma nova utilidade pública. O escritor João de Araújo Correia, no livro “Pátria Pequena”, conta na crónica “Uma relíquia”, mais pormenores relativos a este sino. É ele que assegura que sua função inicial era a de convocar os vereadores do executivo municipal. Extinto nas reformas administrativas o concelho de Canelas, destruído o edifício da câmara, o sino ficou abandonado à sua sorte, até que alguém o levou para os bombeiros da Régua. Conta também o escritor que, anteriormente, o sino tinha sido usado pela população para avisar da invasão de inimigo que lhe ameaçava a liberdade e a soberania. Este sino, lembra o escritor que "deu o rebate de Franceses à vista, nas lombas de Além-Douro, em 1808. Fez fugir, no primeiro repente, os povos alarmados pela ruim fama do invasor Loison”.
          O sino de Canelas está ligado, desta maneira, à história da segunda invasão francesa, na sua incursão pelo norte do Douro, durante a passagem pela Régua das tropas comandadas pelo General Loison, conhecido por “Maneta”, quando se preparava para atravessar o rio Douro. Um acontecimento histórico que, apesar do sofrimento e terror vividos, honra o carácter e os valores pátrios de um povo. A recepção ao invasor foi marcada pela uma resistência notável, com um emboscada montada no lugar do Santinho, no Salgueiral. Sem armamento e com o recurso ao arremesso de pedras, os populares conseguiram parar a coluna das tropas – com perto de 2.000 soldados - e causar ferimentos e a morte em alguns homens. Na reacção, o cruel e sanguinário “Maneta” repeliu a rebeldia com o cerco da Régua e castigou uma população civil, indefesa militarmente, com severas represálias. Pelo que, na manhã de 22 Junho de 1808, as tropas francesas atacaram a vila com canhões de artilharia, a que “se seguiu um assalto e as violências consequentes perpetradas contra os pouco habitantes encontrados, ocorrência que a imaginação popular aumentou, e foi noticia que aterrou e indignou o país”, como relatou o General Carlos Azeredo em livro recentemente editado.
          Na verdade, este saque causou as primeiras vítimas das invasões francesas na Régua, que provocou a morte de, pelo menos, 15 pessoas e, em muitas outras, o roubo e a destruição dos seus poucos haveres. Em reforço destas memórias, vale a pena relembrar o que o historiador Vasco Pulido Valente descreveu, no seu interessante livro “Ir pró Maneta”, sobre o saque da Régua:

          “Loison saiu de Almeida a 17 de Junho. A 20, chegou a Lamego, que se rendeu imediatamente. A 21 atravessou o Douro próximo da Régua, em direcção a Mesão Frio (...). Quando, porém pretendeu continuar para Amarante e penetrou nas montanhas, foi para assistir ao fim do que tinha sido, até ali, o passeio militar francês em Portugal. Uma considerável força de paisanos, religiosos e quatro dúzias de fidalgos e oficiais (...) investiu contra os flancos e a retaguarda da coluna de Loison. (...)

          Loison sofreu baixas significativas. (...)

          Impedido de prosseguir, Loison recuou para a Régua, constantemente embaraçado pelas guerrilhas. Perto da Régua e, depois, na travessia do Douro para Lamego, o ataque intensificou-se e os franceses sustentaram de novo pesadas perdas em homens e material. Pela primeira vez, os “gloriosos conquistadores da Europa” fugiam. E fugiam diante de uns milhares de paisanos, com paus e piques e a rara espingarda raramente nas mãos de vocações naturais, como a do frade dominicano José de Jesus Maria, o “frade branco” que depressa se celebrizou pela sua infalível pontaria e a impressionante quantidade de soldados inimigos de que piedosamente aliviou a pátria martirizada.
          Perante a inesperada eficácia da rebelião, Loison adoptou, quase como reflexo, a única estratégia coerente de contra-guerrilha: as represálias maciças sobre a população civil. Na impossibilidade de encontrar e bater os insurrectos, que esta escondia e apoiava, a única alternativa lógica (embora não exactamente moral) consistia em obrigá-la a mudar de campo, pagando largamente em vidas e em bens portugueses qualquer gesto contra o ocupante. (...)

          À eleição destes métodos, no futuro banais, de sufocar o levantamento, e não à sua crueldade privada, deve o “maneta” Loison (não tinha um braço) a sua presente má reputação, como também por causa deles a locução “ir para o maneta” se fixou perenemente na língua. A campanha repressiva abriu, logo após a primeira derrota dos invasores, com o saque da Régua e, em toda a sua longa retirada para a fortaleza de Almeida, a coluna (que “diminuía a cada passo”) queimou searas, casas, celeiros, matou homens, mulheres, crianças e velhos (...)”

          O sino de Canelas não é só um pedaço de bronze. Tem um significado e uma lição singular da história da Régua, de um passado que urge evocar como exemplo de cidadania da população reguense que, com as suas próprias mãos, ousou enfrentar um invasor tão implacável e mortífero, absolutamente imbatível aos olhos de civis desarmados e impotentes, mas orgulhos e destemidos na defesa do seu país. Ainda bem que se encontra no Museu dos Bombeiros - Museu Dr. João de Araújo Correia - que mais do que servir para contemplar o passado, ambiciona nos 130 anos de existência da associação, ser um lugar para o exercício de uma memória, com os olhos postos nos desafios do futuro.
          - Colaboração de José Alfredo Almeida*, Peso da Régua, Agosto de 2010.
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          O Sino de Canelas no "Arrais"

          Poderá ampliar para "tela inteira" (full screen) utilizando as "ferramentas" disponíveis no "box" acima.
          (Link - http://embedit.in/qXFCyqLWOL - Arquivo em formato "pdf".)

          • *José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também crónicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária, fatos do passado da bela cidade de Peso da Régua de onde é natural e de figuras marcantes do Douro.