terça-feira, 24 de agosto de 2010

A Pousa

Quando, no lagar, as uvas chegavam ao ponto em que a prática de muitos anos o considerava cheio, antecipando cálculos de altura depois da pisa, os homens, ceados, arregaçavam as calças ou despiam-nas, substituindo-as por calções feitos de propósito, alguns ficavam mesmo em cuecas, e entravam naquele aos berros de calafrios. Em fila unida, enlaçados pelos ombros ou pela cintura, levantavam e baixavam as pernas sob o comando de uma voz «Esquerda! Direita! Um! Dois!» que, quase sempre, pertencia ao de uma das extremidades. Os esgares estampavam o esforço, mas os olhos tinham o ar triunfal de quem vence uma contrariedade. Aquelas pernas, raiadas de vermelho, que até pareciam de veias laceradas quando se erguiam (se as uvas eram brancas assemelhavam-se a troncos de pinheiros engordurados de resina), esmagavam o resultado de muitas canseiras, noites mal dormidas a espreitar o alto, farejando prenúncios, inventando aritméticas para chegarem para o sulfato, as folhas do pessoal e as bocas familiares. O dinheiro era contado, porém, farta a alegria. As horas escorriam sem pressas porque a vida se confinava à dimensão delas. As pousas espelhavam esses anos, pacientes e pormenorizados, com as fainas a fazerem-se no respeito sagrado pela terra e o seu fruto a invocar cerimoniais idólatras. Para cá e para lá, como se os pés mastigassem a lama de um brejo, os homens escreviam uma saga que a história narraria. Na época sobre a qual se escreve, não havia roladores eléctricos, nem a parafernália industrial que sintetiza funções mas não as deixa conhecer. Os bagos espalmavam-se devagar e os pedúnculos dos cachos, mesmo amolecidos, entorpeciam os pés.

Nos quinteiros, enquanto os homens espremiam as uvas, as mulheres dançavam umas com as outras e poucas cediam aos galanteios dos visitantes sem trabalho nocturno. Quando alguma se atrevia numa espreitadela ao lagar, logo uma voz rude lhe cortava a curiosidade. A pousa era macha e recatada de olhares fêmeos; tinha fins tardios que elas bem queriam aguardar. Quando os bagulhos subiam à tona, os homens despegavam-se e exigiam a concertina e os ferrinhos para se esquecerem do poço. Os mais aflitos, virando-se para a parede, aliviavam-se na lata estrategicamente colocada num canto; dividiam-se fatias de presunto com pão e canecas; um maço de Três Vintes dava para todos; cantavam-se, à desgarrada, piadas acintosas com gargalhadas de escárnio, os mais calados numa ânsia de acabar. Uma pousa durava três horas que, para uns, era uma eternidade e, para outros, um sacrifício que a necessidade pedia. Pagas à parte e a preço melhorado, os pés ganhavam o que os braços e os ombros de alguns muitas vezes não podiam ou não queriam.

Quando a rotina preguiçava os corpos e o sono era um apelo irredutível, o jogo da cabra-cega excitava os minutos finais. Lançava-se a sorte para o primeiro a ser vendado, atava-se-lhe um lenço à volta da cabeça, de nagalho bem apertado na nuca, obtinha-se a certeza de que ele nada via e, então, punha-se à roda a levar palmadas no rabo até agarrar o acertante, enquanto um, considerado excluído do jogo, se postava junto da prensa para evitar que o toutiço do supliciado não se esquinasse nela. Alguns, por desfastio, confinavam-se a leves raspões, mas outros - a maioria -, repentinamente atiçados por um sadismo encoberto, esticavam as manápulas e batiam sem dó nem piedade. Era uma algazarra que ultrapassava as portas, estilhaçando-se na quietude da noite e incitando bisbilhotices de quem passava no caminho. O homem, cego pela venda, voltava-se como um felino, agitando as mãos na procura dos agressores, descurando assim o traseiro onde saraivavam palmadas histéricas. Quando, porém, pilhava um, entregando-lhe o lenço, esfregava as mãos com quanto cuspe tinha e exercia a vingança numa ira de alienado. Por vezes, a sanha era tal que a película do vinho fazia ondas com os saltos e as fugas dos homens, possessos pelo acinte da desforra; quando algum, no meio de uma troça delirante, caía no mosto, a pousa concluía-se por entre juras de pagas na noite seguinte.

O lagar sossegava lentamente, esboçando a manta; os homens lavavam-se na torneira do tanque ou no vasilhame que estivesse livre; o fartum evolava-se e a lua, de mármore polido, brilhava de honestidade.
- Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. Pode ler também os textos deste autor no blog ForEver PEMBA
  • Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Recordações de Barro - No Arrais


Publicação de "O ARRAIS".
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sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Uma homenagem aos bravos “Soldados da Paz” do Peso da Régua

Que mais será preciso dizer?
Por: Rodrigo Félix Nogueira de Carvalho*

Quando a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua celebra o seu PRIMEIRO CENTENÁRIO, que mais será preciso dizer do que o que já tem sido dito por tantas e tão ilustres personagens, melhor conhecedoras do seu historial, onde avultam gigantescos esforços e abnegadas acções que lhe permitiram vencer e chegar, de fronte erguida e com a satisfação do dever cumprido, ainda que por sinuosos e difíceis caminhos, até estes nossos dias, tão conturbados e tão dominados pelo materialismo?

Que mais será preciso dizer da consciência cívica revelada, em tão elevado grau, pelas sucessivas gerações que serviram o seu CORPO DE BOMBEIROS, onde souberam ser sublimes no ataque ao fogo e intemeratas perante o perigo, ao mesmo tempo que discretas na sua bravura, estóicas na sua temeridade, modestas no seu altruísmo e humildes na recepção de honrarias?

Sim. Que mais será preciso dizer dos que, no exímio cumprimento do dever que a si próprios voluntariamente impuseram, vieram a perecer em defesa dos que algum dia viram as suas vidas e bens em risco de se perderem, inscrevendo os seus nomes, a ouro, entre os dos heróis do VOLUNTARIADO e legando a sua glória como nobre exemplo a apontar aos vindouros, com justo orgulho?

Não sei.

Não sei, nem, conhecedor das minhas limitações, certamente o saberia dizer se, acaso, tanto fosse ainda necessário.

Assim, nesta hora de júbilo e felicidade, muito singelamente, desejo apenas prestar a minha homenagem aos bravos “Soldados da Paz” da encantadora e hospitaleira vila do Peso da Régua, agora a servir de sala de visitas do distrito, no XXIV Congresso Nacional dos Bombeiros Portugueses, não só pelo que ao longo de todo o caminho percorrido souberam realizar, mas também pela certeza que me acompanha de que irão prosseguir na rota do progresso e da causa humanitária a que se votaram e já tanto prestigiaram.
E a esta minha modesta e singela homenagem eu quero juntar uma outra, vibrante e grandiosa, dos BOMBEIROS DO DISTRITO, entre os quais dos Voluntários de Vila Real e Cruz Verde, que, porque irmanados pelo mesmo sublime ideal, se afirmam presentes e felicitam os seus companheiros neste limiar de um novo século ao serviço da Humanidade.

Parabéns, pois, e honra aos VOLUNTARIOS DO PESO DA RÉGUA para honra e glória dos BOMBEIROS DE PORTUGAL.
* Antigo Presidente da Federação dos Bombeiros do Distrito de Vila Real e da Presidente da Direcção da AHBV de Vila Real e Cruz Verde.

Notas:
  1. Em memória do Sr. Rodrigo Félix deve dizer-se que começou como dirigente da AHBV de Vila Real e Cruz e Verde, sendo eleito Secretário da Direcção em 23/3/1957, onde se manteve até ser eleito Presidente da Direcção; em 20 de Janeiro de 1975 é eleito Presidente da Direcção, onde se manteve até 19 de Janeiro de 1996; em 20 de Janeiro de 1996 é eleito Presidente da Assembleia-geral, mantendo-se nessa função até ao seu falecimento em 15/2/2005; fez ainda parte do Conselho Geral da Associação por inerência do cargo de Presidente da Assembleia-geral; foi um dos fundadores da Federação dos Bombeiros do Distrito de Vila Real, criada em 15/9/1978, sendo eleito seu primeiro Presidente de Direcção, onde esteve durante vários mandatos; foi Membro da Assembleia de Delegados da Liga dos Bombeiros Portugueses; fez parte dos Órgãos Sociais eleitos da Liga dos Bombeiros Portugueses e foi Conselheiro Regional da Inspecção Regional dos Bombeiros do Norte.
  2. Este seu magnífico texto encontra-se publicado na revista comemorativa do 100º Aniversário da AHBV do Peso da Régua, publicada em 1980. As fotografias registam algumas das cerimónias dos bombeiros da Régua – a festa despedida do Comandante Cardoso, a tomada de posse do Comandante Fernando Almeida e a imposição de uma medalha de mérito num bombeiro – que tiveram lugar no Quartel Delfim Ferreira, onde o Sr. Rodrigues Félix interveio na sua qualidade de Presidente da Direcção da Federação dos Bombeiros do Distrito de Vila Real.
 - Colaboração de José Alfredo Almeida*, Peso da Régua, Agosto de 2010.
  • *José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também crónicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária, fatos do passado da bela cidade de Peso da Régua de onde é natural e de figuras marcantes do Douro.
Jornal "O Arrais", Sexta-Feira, 24 de Dezembro de 2010
Uma homenagem aos bravos “Soldados da Paz” do Peso da Régua - Que mais será preciso dizer?
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Uma homenagem aos bravos “Soldados da Paz” do Peso da Régua

A Magia Acrobática no dia do Bombeiro - no Arrais

Publicação de "O ARRAIS"
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