quarta-feira, 9 de junho de 2010

RETALHOS DE UM DIÁRIO - Capítulos II, III e IV

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Capítulo I
Capítulo II

Eram nove horas quando passámos as Canárias. Foi o primeiro sinal de terra depois de Lisboa: sombras longínquas emergindo na imensidão, ponteadas por silhuetas de casario, rapidamente engolidas pela fita do horizonte.

Regressámos, após o aturdimento, aos lugares de rotina, aos cigarros, aos livros, às conversas do mais-valia-estares-calado, à modorrice das cadeiras de lona, ao anedotário forçado, à cegueira do mar.

Gastam-se, nos bares, os escudos em pulseiras, isqueiros, mas, principalmente, em muita cerveja.

O Pimentel, meio careca, olhos encovados, nariz de periquito, lábios talhados a navalha, queixo caindo desajeitadamente, falar nervoso, empurrando constantemente os óculos para cima, manifesta a sua nevrose ulceróide.

- Esta comida mata-me. Trago uma tonelada de medicamentos, mas não me vão valer um corno. Só a leite não me safo.
- Admira-me como estás aqui.
- Não tive empenhos de ninguém. No hospital da Estrela disseram-me que a tropa cura tudo. Nem a uma Junta Médica me propuseram. Chegando lá, vou direitinho para o hospital. Nem que me faça de doido.

Majores e Capitães discutem, em grupo, a fazerem horas para a segunda mesa que é às dezanove e trinta. Distingo pequeninas luzes, pirilampos sobre o mar. Estamos a entrar no golfo da Guiné, o calor é sufocante. A nossa posição está afixada no átrio da primeira classe: latitude – 27 06º norte; longitude – 15 21º oeste; distância percorrida em 24 horas – 377 milhas; a navegar – 3339 milhas; velocidade – 15,7 nós.

Hoje há cinema. O écran é um pano branco preso ao mastro da ré, onde o Kirk Douglas vence leões perante o ar desolado de um deprimente Calígula.

Visito a casa das máquinas: seis cilindros trabalham incessantemente, os êmbolos sobem e descem em tão impressionante velocidade que os julgamos parados; um moço guedelhudo, com óleo a brilhar em todo o corpo, é incansável na limpeza, fazendo rodopiar o desperdício. Umas escadas abaixo, o circuito emaranhado de tubos não deixa perceber o princípio e o fim daquilo. Peço uma explicação a um homem de meia idade, responde-me seco e rápido, mal o escutando no meio daquele barulho gigantesco. Ofereço-lhe o ouvido e vira-me as costas. Não entendo como ele compreendeu a minha pergunta. A certeza de que, onde estou, já é dentro de água, sufoca-me. Fujo cá para cima. Na proa, deixo-me vergastar pelo vento e pelas gotículas de espuma que se elevam do refluxo das vagas.

Capítulo III

A vaga larga deixou-nos, regressaram as ondas pequenas como bichos carpinteiros. Aparecem, por onde passo, manchas de vómitos que dão uma imagem de náusea, de ruínas, de vida destoante, de apetites estragados. A enfermaria já tem doentes e os médicos que vão a bordo dão consultas em qualquer ponto de encontro. O calor aperta mais, abafa num cheiro de mistura de suor, restos de comida e pestilência latrinária que umas breves bátegas graúdas não desfizeram, pois o sol, escaldante, seca tudo mais depressa do que demora a dizer.

O barco está a andar menos; o mar, mais cavado, não ajuda; a ventania sopra forte de caras à proa; as ondas, arredadas para os lados, sobem mais que o normal. Quem estiver na vante, suportando o terrível balanço, e olhar para a torre de comando, vê-a desaparecer e aparecer num movimento de mandíbula gigante. Peixes voadores, em volúvel desafio, acompanham-nos durante algum tempo. O céu, sem princípio nem fim, de uma chocante amplidão, reduz-nos a um ínfimo incontrariável; a lua, de um limpo imaculado e definível, consente-nos um deslumbramento; as estrelas, débeis e humildes, ameaçam apagar-se à mais pequena aragem, embora tenham um brilho de gelo.

Passei no hospital, em cuja morgue o corpo de um velho tripulante – de coração gasto por tantas viagens - aguarda a chegada a Luanda para depois regressar ao chão da sua origem. Nos porões, os soldados são obrigados a dormir nus para melhor resistirem ao calor que nem uns tubos de pano enfunados conseguem amaciar.

Atravessou-se o Equador às quatro da manhã com o barco envolto no sono, sem as costumeiras festas comemorativas. Ainda bem, detesto alegrias preparadas e bebedeiras gratuitas. Não durmo. Estou recostado numa cadeira do deck-A, olhando a escuridão uivante, os salpicos do mar a caírem-me aos pés, uma desumanidade sinistra. O baloiçar lembra-me um carro numa estrada de lombas, a proa e a popa jogam o tu-cá tu-lá, ora é esta a levantar e aquela a afocinhar ou vice – versa. Aqui vou eu, neste túmulo enorme, numa submissão compressora, só mar e céu, longe de tudo, dos meus, dos afectos, das fragrâncias dos vinhedos, do suor dos cavadores, do ar suspenso no cair do dia, dos ecos dos remoques, do ladrar dos cães aos ébrios da noite.

As ondas vergastam o casco, entoam como murros de raiva, metem medo; o vento, de leste, nem deixa acender um cigarro. Recolho-me ao beliche com a preocupação de não acordar o parceiro do lado.

Capitulo IV

Informam-nos que já se passara S. Tomé e Príncipe sem avistar vivalma.

A nossa posição: latitude – 08 22º Sul; longitude – 12 40º Este; distância navegada nas últimas 23 horas (resultante do adiantamento de uma): 344 milhas; velocidade: 15 nós; a navegar (até Luanda): 46 milhas.

Na noite anterior, quando dávamos mais uma volta aos ponteiros dos relógios, vimos, a uma alegre distância, os holofotes da fragata que nos começou a escoltar. Os seus sinais de luzes foram correspondidos com uma algazarra que mais parecia um grito de libertação. A ansiedade tomou conta de todos e o resto da noite foi um prolongamento daquela.

Ao meio-dia arrearam a escada do portaló. Há um frémito de emoção. Na lonjura, uma mancha escura surge por entre uma neblina refractada. A orquestra de bordo toca. Os bares não têm descanso: pedem-se martinis e cubas libres atulhados de gelo, bebem-se as cervejas pelo gargalo, há muitas asas e muitos grãos, berros avulsos de nervosismo. Penduram-se, ao pescoço, máquinas vulgares e outras sofisticadas, lembram-se parentescos a viver em Luanda e arquitectam-se barrigadas de camarão. A fragata apita, corre paralela, deixa-se retardar, os marinheiros perfilam-se e acenam com os bonés. Um prazer de companheirismo flutua no mar. Vamo-nos aproximando de Luanda. O Niassa tem os varandins repletos, nem uma nesga por onde os atrasados possam espreitar. Dois gasolinas, um cheio de raparigas esplendorosas, outro com um careca de barriga inchada, aceleram e afastam-se. A lancha dos pilotos esfaqueia as águas. Ouve-se, distintamente, a desaceleração do navio. A escada desce, ainda mais, quase roçando as águas. O Comissário, na plataforma da ponte, de rádio na mão, transmite instruções, recebe o piloto que guiará o barco até à acostagem. Dois rebocadores, o Quitexe e o Bero, contornamnos e colocam-se a bombordo. O piloto, na torre de comando, dá àqueles, por intercomunicador, ordens de marinhagem. O Quitexe dirige-se, então, para a popalado-bombordo e encosta, suavemente, a bossa. O Bero, por sua vez, apressa os motores, lançando uma fumarada espessa, dirige-se para a frente da proa, dois negros atam o cabo à amura, e aquele afasta-se, esbaforido, como se receasse ser esmagado pelo Niassa. O Quitexe, esse, continua, na ré, a empurrar, comprimindo a bossa contra o costado.

Entre os militares, a bordo, e algumas pessoas que estão no cais, iniciam-se reconhecimentos recíprocos; é uma confusão sem domínio, parece que tudo acabou aqui. A amarração está feita. Rondas de polícias militares, garbosos, de camuflados passados a ferro e lencinhos ao pescoço, erectos e peneirentos, fazem a segurança na zona do paredão. Começa a descida, os cartões de autorização amarrotados nas mãos.

Percorro a meia lua da marginal de lindas palmeiras. À sombra destas alinham-se bancos para saborear a brisa. Gozo, ao fim de tantos dias, o caminhar sobre a terra, meio tonto, desabituado, lançando, em redor, os olhos esfomeados. Não há um táxi; continuo a pé. Observo os prédios airosos, geométricos e alinhados; carros descapotáveis no passeio domingueiro, cabelos ao vento como se quisessem despegar-se das cabeças. Não é possível! Onde está a guerra? Nos sinais: jeeps cheios de camuflados e G-3 cruzam-se no à vontade de terra vigiada, olham-nos trocistas, com aquele ar superior de velhice guerreira.

- Leve-nos à baixa – todas as cidades têm uma baixa -, peço ao condutor, finalmente conseguido, um mulato corpulento que sorri à solicitação.

Quinze angolares saldam a corrida. Entrámos, eu e os meus acompanhantes, num restaurante com nome transmontano. O empregado que nos atendeu, quando soube de onde éramos, confessou-se:

- Vim para cá em 63, estive no Norte, e, quando estava para embarcar, resolvi ficar. Gosto disto, mas já tenho – pondo a mão no peito- um aperto aqui. Talvez vá lá no Natal.

Pagamos a conta e despedimo-nos. Em novo táxi, fomos para a Ilha: barracas, numeradas a cal, ladeiam a estrada da restinga; velhos, de barbicha branca, defumam a idade; na areia, sob a chapada do sol, crianças brincam com pneus lisos; nas esplanadas, barbecus domingueiros incendeiam o ar com aromas de churrascos; trinca-se, na espera, marisco acompanhado com uísques e cervejas geladas num deguste vagaroso; vivendas luxuosas, com espampanantes carros à porta, dão um tom de capitalismo ávido, a que não falta o moleque de uniforme branco; nas ruas, alcatroadas ou de terra batida, gingam negras de filhos às costas e sorrisos de neve.

Regressei ao Centro do trânsito caótico. Fui aos Correios mandar um telegrama para casa, olhei a Fortaleza, não dava para lá ir, imaginei os caminhos do Grafanil, lugar lendário da tropa, e dirigi-me para o morro dos musseques onde havia zaragatas no ar, procuras de sexo, olhares suspeitos, correrias persecutórias, odores intensos de catinga e petróleo queimado, uma viração deletéria.

O Niassa desamarraria pelas duas da madrugada. Relanço um último olhar a Luanda, aos seus lambrequins arquitectónicos em que, diante de uma baía serena como um lago, se misturam as origens lusas e as raízes naturais numa garridice cativante.

Subi para o barco numa desilusão de fim de festa. Ainda vi meter o caixão, com o tripulante falecido, num Land-Rover com as cores e o nome da companhia de navegação a que pertence o Niassa. Fui-me deitar, não querendo, sequer, escutar o urro que o barco dá ao partir.
Continua...

- Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória. M. Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

D. Antónia Adelaide Ferreira (A Ferreirinha)

A primeira sócia – contribuinte.

Dois séculos depois do nascimento da D. Antónia Adelaide Ferreira (1811-1896), na rua Direita (a actual rua Custódio José Vieira), no Peso da Régua, a famosa e mítica Ferreirinha”, a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua, não pode deixar de evocar esta figura ímpar da história do Douro não só como um símbolo do empreendedorismo, mas também do altruísmo e da generosidade para com as instituições e obras de assistência social e caridade, como hospitais e asilos e, sobretudo, de muitas pessoas pobres ou doentes.

Quando, em 28 de Novembro de 1880, assinou o “Livro dos Estatutos da Associação e inscripção dos sócios contribuintes”, a Ferreirinha, tinha 68 anos, vivia na Quinta das Nogueiras, em Godim e acabava de enviuvar de Francisco Silva Torres. Já era considerada uma grande proprietária vitícola, dona de um vasto património de mais 20 quintas, espalhadas por toda a região duriense, onde trabalhavam mais de um milhar de jornaleiros, e mantinha em actividade uma empresa comercial de prestigio e solidez financeira invejável, administrada por dois fiéis e experientes colaboradores, como era António Claro da Fonseca (administrador no Porto) e Francisco Correia Monteiro (administrador na Régua).

A inscrição da benemérita empresária Ferreirinha, na qualidade de primeira associada contribuinte dos bombeiros voluntários da Régua prova que se disponibilizou para os ajudar ainda durante o período da fundação. Certamente como estava na presença de uma organização com fins humanitários em proveito da comunidade e, conhecendo da sua necessidade e importância, deve ter-lhe manifestado o seu incondicional apoio.

A primeira sócia contribuinte foi, portanto, uma benemérita. Disso não parece não haver dúvidas, apesar de nada ter legado em testamento à instituição, quer bens, que valores da sua fortuna pessoal.

Mas, a Associação ainda possui algo imaterial da Ferreirinha que, não sendo valioso, tem um significado especial e honra a sua história. Orgulha-se, pois, de guardar no livro onde foram exarados os primitivos estatutos, a assinatura de tão conterrânea, feita pelo seu próprio punho.

Não existem documentos que permitam saber se a D. Antónia aderiu por sua iniciativa própria ou, pelo contrário, terá surgido de pedido de pessoa amiga e influente. Há motivos para pensar que o convite tenha partido de Francisco Correia, administrador da empresa na Régua, uma vez que este seu funcionário se inscreveu como contribuinte da Associação (está registado no livro no vigésimo terceiro lugar). Só outra pessoa, porém, pode ter convidado a Ferreirinha para contribuinte dos bombeiros, o fundador e Comandante Manuel Maria de Magalhães, escrivão de direito, com que ela terá mantido contactos, nas idas ao Tribunal da Régua, para prestar declarações no inventário por óbito de seu primeiro marido, António Bernardo Ferreira.

Desconhece-se o valor da jóia nem da quota que a Ferreirinha pagou. Embora não sendo relevante, admite-se que o seu contributo monetário tenha chegado para a compra de alguns equipamentos destinado ao serviço de incêndios.
Outra virtude do génio da Ferreirinha, no contexto dos bombeiros da Régua, deve ser distinguida. Sendo uma figura prestigiada da sociedade local e mesmo nacional, como sua primeira sócia contribuinte soube dar um exemplo cívico e, ao mesmo tempo, demonstrar a sua solidariedade aos homens bons e generosos que, haviam decidido entregar-se à suprema missão da defesa de bens e vidas.

A sua adesão ao movimento associativo dos bombeiros revela que era uma cidadã atenta e interessada pelos problemas da sua comunidade. A D. Antónia foi uma personalidade humana, generosa, solidária com os mais desfavorecidos, e sempre disposta, como aconteceu ao longo da sua vida, a acarinhar e proteger as obras de interesse e vocação social.

A empresa comercial da Ferreirinha teve sucessos financeiros, ganhou prosperidade, mas alguma da riqueza gerada, serviu para fomentar a coesão social na comunidade. Através do mecenato permitiu que as instituições de solidariedade social, religioso e humanitário que, privadas de subsídios públicos, realizassem aquilo que seria um dever fundamental do Estado.

Assumiu, deve salientar-se, desafios que, actualmente, se entendem como ser de responsabilidade social. Com a promoção dos valores de filantropia contribuía para a qualidade de vida das pessoas numa pequena terra do interior, como era a vila da Régua, que procurava na agricultura e comércio a sustentabilidade do seu desenvolvimento económico. De alguma maneira, terá sido esta a melhor resposta que a Ferreirinha encontrou para atenuar os efeitos da miséria que afligia a sociedade em que viveu. Deve ter pensado, e bem, que a prática de liberalidades e actos de beneficência não eram incompatíveis com a obtenção de lucros das vendas dos vinhos de qualidade produzidos nas suas quintas do Douro!

Bem inseridos na comunidade e não menos bem identificados com a realidade socio-económica da região, os bombeiros voluntários do Peso da Régua tomaram, por vezes, posições públicas em defesa de causas e interesses dos lavradores do Douro, manifestando-se SOLIDÁRIOS SEM LIMITES. Uma delas consta da sessão extraordinária realizada a 7 de Maio de 1893, que reuniu com a finalidade de aprovar medidas de apoio aos pequenos lavradores de algumas freguesias do concelho da Régua, a quem um temporal tinha causado elevados prejuízos nas suas vinhas:

“Pelo director Sousa Pinto foi dito que pediu a convocação extraordinária dos directores desta Associação para um fim altamente humanitário. Parecia-lhe que esta casa humanitária como é não podia ficar indiferente às desgraças causadas aos lavradores deste, digo de algumas freguesias deste concelho pelo temporal do dia 7 e propunha que esta Direcção tomasse a iniciativa de minorar os sofrimentos de muitos desses desgraçados, oficiando a Sua Majestade a pedir para serem sustadas as execuções fiscais e à Câmara deste concelho a pedir a sua coadjuvação para ser atendido este pedido. Propor o director-comandante que não só oficiasse a El-Rei e à Câmara, mas também ao deputado por este círculo a pedir o concurso para este fim, e abrir uma subscrição pública para socorrer os lavradores mais necessitados. Propor o director Martins que também oficiasse a Sua Majestade a Rainha D. Maria Pia. Todas estas propostas foram aprovadas por unanimidade.

Alberto P. Rolla,
José Avelino C. P. Almeida,
Joaquim Sousa Pinto,
Camilo Guedes,
José Afonso de Oliveira Soares”.

Se a D. Antónia pudesse hoje voltar à Régua e ao Douro encontrava o “país vinhateiro” e o centro de negócios do vinho do Porto muito transformados.

Desde logo, podia constar que o comércio do vinho do Porto se tinha concentrado num pequeno grupo de empresas exportadoras (só uma é de origem portuguesa), que controlam cerca de 80% do comércio. E verificar que os exportadores do vinho do Porto continuam a aumentar a produção própria (atingiu já cerca de 20%), o que há cem anos não acontecia. As principais casas exportadoras de vinho do Porto, eram as maiores clientes da casa da Ferreirinha e, apreciavam, ao que sabe, a inconfundível qualidade dos seus vinhos.

Mas o Douro de hoje, apesar de ter recebido o estatuto de património da humanidade, como paisagem cultural evolutiva viva, o seu futuro está numa encruzilhada. Os tempos não vão de feição para o vinho do Porto. As vendas, no ano passado, recuaram em volume e em valor. Há uma tendência negativa que não pode ser explicada pela recente crise mundial.

A paisagem da vinha também mudou. A imagem tradicional dos velhos anfiteatros de socalcos deu lugar aos patamares e de “vinha ao alto”. A área de cultivo de vinhos aumentou em mais cerca de 40 mil hectares de área de cultivo de vinha. A regulação da produção e comércio vivida pela Ferreirinha que oscilou entre o proteccionismo estatal e a liberdade comercial, com o poder centrado na majestática companhia pombalina, evoluiu para um modelo institucional de orientação interprofissional.

A D. Antónia teve de enfrentar o pesadelo e angústia do flagelo de graves pragas nas videiras das vinhas – o oídio e a filoxera – que destruíam a capacidade produtiva, mas não nunca desistiu de plantar novas vinhas, como a do Vale Meão, podia constar mudanças radicais no cultivo da vinha, no sistema de vinificação e nos vinhos produzidos.
Apesar de tudo, o Douro na identidade histórica permanece imutável…Os ideais da Ferreirinha e dos bombeiros da Régua, alicerçados na obstinação, esforço e solidariedade humana, na sua forma mais simples, continuam a ter sentido na construção do futuro do Douro, que só existe com pessoas como nós.

Alguém, disse um dia, que o Douro não “precisa de nada universal, além, do sol, da chuva e vento. O que precisa é de leis universais que protejam, ao mesmo tempo, o lavrador e o cavador”. Nada mais certo…!
- Colaboração de J A Almeida para "Escritos do Douro". Peso da Régua, Junho de 2010.
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sexta-feira, 4 de junho de 2010

RETALHOS DE UM DIÁRIO - Capítulo I

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Capítulo I

Aqui estou, estranhamente sereno, no meu camuflado ainda de goma, quase plástico, com galões dourados a simularem-me o indulto da contrariedade, esperando a chegada de um velho General que se levantou tarde ou se esqueceu de mais um embarque para despachar. Aqui estou cheio de sono, com a noite anterior passada a beber cervejas e a apalpar mulheres, Lisbon by night, as meretrizes da Avenida, a pancada do Cais do Sodré, os Cafés do Chiado cheios de fumo das conspirações escancaradas para a Pide se entreter, as chagas prostituídas do Intendente, o Tejo sem os meninos do Soeiro Pereira Gomes ou os Gaibéus do Alves Redol; em S. Bento a teimosia guardada de um ditador e, sob a ponte com o seu nome, nem um barco de liberdade. Berrei, naquelas horas, a tentativa do esquecimento. Coimbra estava longe e, pressentiu-se-me, irremediavelmente perdida; as serenatas uma saudade de alma a sangrar. Coimbra parara num guarda-vestidos da velha casa onde nasci com uma capa negra à minha espera. Os livros na estante do meu quarto, vazio durante dois anos, resistiriam à humidade de dois invernos porque havia sempre dois verões para os secar. Minha Mãe frequentaria a Igreja com a devoção redobrada, de preto vestida como um luto de morta-viva, sem sorriso, os olhos de vermelho escuro. As flores, na Primavera, desabrochariam sem a satisfação do meu olhar e o jardim cresceria à medida da minha ausência. A aldeia não me veria a cara, os caminhos e as ervas dos vinhedos não sentiriam os meus passos, a luz continuaria a faltar, a água seria promessa renovada, a fome espreitaria alguns lares pobres, os meninos deles brincariam descalços e o meu Avô continuaria lá adiante, no Espírito Santo, à minha espera.

Saí cedo do quartel, os Unimogues e as Berlietes a esmurrarem os olhos da noite, repletas de caixotes, sacos e homens-crianças de estômagos enfartados de pão e leite misturado com mentol. A cidade, uma sombra enorme: grupos de operários, de marmitas nas mãos, a dirigirem-se para a cintura das chaminés gigantes que nunca paravam de vomitar labaredas como vulcões em ressaca; Vila Franca lá atrás, tapada pela Siderurgia e perdida na lezíria; na auto-estrada da Encarnação os primeiros carros corriam, ainda à vontade, de faróis acesos.

Gostava que alguém trouxesse o General para acabar com esta palhaçada e os soldados terminarem os abraços e secarem os olhos. Eu não choro. Já me chegou a despedida no fim daqueles amargurados doze dias que me deram de licença como se fosse a última vontade de um condenado. Por muitos anos que viva, jamais esquecerei aquele aperto de minha Mãe: tinha o sangue do cordão umbilical, o despedaçar de um coração único. Julguei morrer ali, envolto naqueles braços, amortalhado por aquelas lágrimas, aquele pranto do fim do mundo, enfiados num quarto feito dispensa da casa secular em que nasci. Disse para comigo: «NÃO VOU!». Os gajos que me viessem prender, que me arrastassem para onde quisessem. Afinal, por que me separavam da minha Mãe? Com que direito? Ao mando de que razão? Plantassem as cruzes noutro cemitério, medalhassem peitos nas praças imperiais, o meu só queria a liberdade e o amor. Mas estou aqui, sem fugir para Genebra, sem inventar úlceras, miopias ou pés chatos, sem cunhas para me livrarem da tropa; estou aqui, cobarde da minha revolta, mas, certo de que ninguém me chamará desertor, com este magote que enerva, à espera - repito - de um velho General desocupado que finja que passou revista ao atavio do batalhão, devidamente filmado por uma câmara para à noite abrir o telejornal e mostrar à Nação mais um contingente a marchar rumo a África «no cumprimento do dever». O barulho é uma inércia auditiva. Olho as estátuas, sem heráldica, da Polícia Militar, e dão-me pena, pena não, desalento, é isso, um imenso desalento como quem é obrigado a conviver com a inutilidade. Apetecia-me ir embora, mandar bugiar isto tudo, voltar a Coimbra, ao bar das Letras, tomar um café para ver aqueles borrachos a mostrarem as coxas, os mamilos a esticarem as blusas, e, eu, tímido, fingindo descontracção, pagaria a conta, desceria à Baixa, ali pelo Quebra-Costas, daria meia volta até à Sofia e subiria Sá da Bandeira. Na Praça da República, num banco virado para o Mandarim, faria horas para o almoço na Associação, passando os olhos pela Vértice ou pelo Via Latina. Mas não, estou aqui, ensonado, farto de esperar, ansioso que estas cenas acabem, com o olfacto saudoso dos cheiros das vinhas e da cozinha da minha casa. Ao lado, o Niassa com a escada do portaló descida e alguns tripulantes debruçados na amurada, curiosos por coisas diferentes de outros embarques.

- Meu Alferes, o nosso Capitão está a chamá-lo – diz-me o Cabo Álvaro sem expressão na voz.
- O meu Capitão chamou-me? – apresento-me, erecto e militarão, como me ensinaram em Mafra.
- Silvestre, arranje-me uns homens do seu pelotão para levarem uns caixotes para bordo. Estão junto daquele – apontando com o indicador direito - jeep da PM – ordenou-me o capitão Silveira.

Chamei o Furriel Manso para escolher seis homens e disse-lhe o que deviam fazer. Vi-o chamar o Cabo Álvaro e constatei a eficiência da hierarquia militar.

De repente, um tremor a despertar modorras, toda a gente começa a correr. Ouvem-se vozes de comando meio baralhadas, repetem-se despedidas, os comandantes das Companhias mandam formar. Acho que é, agora, finalmente, que o General vem. Os tipos da televisão erguem as máquinas de filmar. O meu pelotão está pronto. Os familiares dos militares acotovelam-se e o varandim da Rocha de Conde de Óbidos está à cunha. Há toques de clarim e ruídos de portas de carros a bater, continências a torto e a direito, risos nervosos e apertos de mãos para a chapa. Em posição de à vontade, tenho atrás. O pelotão com o Silva a fungar, o Dias a insultar o Cubano e este a responder-lhe à letra, o Luís a ajoelhar o traseiro do Dionísio que esperneia caneladas, o Álvaro a assoar-se. Viro-me para amainar o temporal.

- Nosso Alferes! - gritou-me o Capitão Silveira. – O seu pelotão está pronto?
- Sim, meu Capitão! Terceiro pelotão pronto! – disparei, lembrando instruções de ordem unida.

Pousou um silêncio de começo de Missa. Com todo o corpo militar em sentido, surge, ao fundo, o General de estrelas brilhantes, novinhas como se tivesse sido promovido no dia anterior. A banda toca a marcha Angola é Nossa. O velho Oficial inicia a inspecção às tropas no ritmo apressado de quem se quer desembaraçar de uma chatice. Olho o céu e ninguém me traz a alegria e a paz, sou prisioneiro dentro deste espaço, com fé, mas sem profetas; o sol não anuncia que a guerra vai acabar e os anjos não nascem na ilusão de quem não lhe apetece partir. Acabada a revista, a Alta Patente calhou postar-se diante de mim, esperando o desfile em continência. Tem uma cara de rugas em cortinas e um nariz absurdamente elegante no meio de uns olhitos inócuos que observam encobertos por umas grossas lentes de miopia anciã.

Os militares, à medida que o desfile se desenrolava, subiam para o barco. Apressei-me quando chegou a minha vez. Não tinha ninguém a quem acenar; pedira para que me poupassem a repetição do afastamento. Ainda não alcançara o tombadilho, ouço uma voz a chamar-me. Volto-me. Vejo o Jorge, grande amigo feito em Mafra, no empedrado, a gesticular e a gritar: «Vou amanhã para a Guiné!» Sorrio e desejo-lhe boa sorte. Debrucei-me na balaustrada, enquanto ainda desfilava um resto, mas a PM, imperial nos seus lenços amarelos, afastou-o sem parar de acenar.

Era uma coisa indescritível: gritos, berros, choros, gemidos, apelos, recomendações, lenços agitados, crianças apavoradas, Mães desfalecidas e, também, carpideiras avençadas. Parecia o desespero de um Povo a clamar uma orfandade colectiva. Então, invadiu-me uma tristeza tão grande e tão forte que não segurei o choro, qual um rio a romper o dique da minha impotência de não conseguir dizer NÃO, de estoirar com a chantagem da deserção, da coacção do anti-patriotismo.

O barco apitou. Muito devagarinho, como se quisesse desamarrar sem se notar, o Niassa separou-se do cais. Da banda militar, irromperam, inesperadamente, os acordes do Hino Nacional. Estremeci, o sangue a ferver, os pêlos a roçarem a farda, as lágrimas em cascata. Meu Deus!, aquilo soube-me a traição sem dicionário, exploração sentimental, alibi de uma infracção, um recurso cruel para o inabdicável. A terra ia ficando longe. Junto a mim, um soldado, de cerveja na mão, perdido de bêbedo, espumando palavras sem nexo, «Haja alegria! Haja alegria!», ria, ria alarvemente.

Lisboa manchava-se no horizonte. Lisboa capital de uma Pátria que espalhava a sua juventude pelos matos da guerra, sem um esboço de paz, sem uma esperança de que o sofrimento valesse para alguma coisa.

O terraço de Alcântara era um lenço gigante ondulando às tágides, soprando velas e espargindo lutos. O soldado bêbedo, enrodilhado no chão, como uma criança a quem arrancaram um presente, gemia: «Eu quero a minha Mãe! Eu quero a minha Mãe!» Levantei-o, nem sei se com piedade ou raiva, e chorámos os dois como choram dois irmãos verdadeiros: agarrados um ao outro.

Os alto-falantes anunciam: «O almoço começou a ser servido. Oferecemos, entretanto, um programa de música seleccionada.» Os sons tristes de La poupée qui fait non acompanham-me até à sala de jantar. Como só fruta. A cabeça entontece-me. Os soldados, de pratos nas mãos, não sabem para onde ir. É um ambiente desorganizado, de começo. A diferença das águas do Mar da Palha para as do Atlântico acentua-se: mais azuis e movimentadas. Lisboa é, agora, uma pincelada de névoa sebastiânica. Uma lancha junta-se ao barco para recolher o piloto que vai descendo pelos degraus do portaló. Aquela apita forte, trocam-se votos de boa viagem, e, acelerando os motores, afasta-se. À distância regulamentar, uma fragata escolta-nos. Gaivotas elevam-se sobre os mastros para depois picarem em voos razantes. Um ar pesado de enjoo envolve o quartel flutuante. Debruçados nas amuradas, homens vomitam o almoço e olham para o sítio de onde partimos. Dói-me a cabeça, pareço andar à roda. Deambulo pelos decks, vejo gente que não conheço, absorta, de olhos inchados, caras perdidas.

Navega-se, moderadamente, por entre babas de espuma, sem nada já ao longe, uma solidão infinita, um desamparo que atordoa, um abandono irremediável. Chegam os primeiros radiogramas. Antes não viessem: «Todos estão contigo. Felicidades e um regresso rápido.» Está bem, um regresso rápido para quem acaba de partir. Procuro conhecidos para mastigar palavras, mas eles e elas enclausuraram-se. Os relógios são atrasados uma hora e à meia-noite terão igual recuo. Não suporto a dor de cabeça, sinto uma estranha sonolência de delíquio. Vou para o camarote e deixo-me embalar por este berço gigante.
Continua...

- Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória. M. Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua.
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segunda-feira, 31 de maio de 2010

Cruz de Ouro

Os bombeiros da Régua, desde a sua criação, tiveram como missão principal o socorro às populações, em incêndios e outros sinistros, o que consta dos primeiros estatutos, elaborados pela Comissão Instaladora, liderada pelo Comandante Manuel Maria de Magalhães.

Com o decorrer dos tempos, a Direcção e o Comando depressa se aperceberam de que havia carências no socorro aos doentes e sinistrados. Faltava uma estrutura de serviço de saúde para responder às maiores exigências de assistência às pessoas.

Por volta de 1900, foi organizado um serviço de saúde, integrado no seio do Corpo de Bombeiros, com a designação de “Cruz de Ouro”. Compunha-o pessoal voluntário que trajava uniforme próprio, mas estava sujeito às ordens e regras disciplinares do Comandante. Este serviço de saúde respondia às exigências de assistência à população, cada vez maiores e mais frequentes.

Não temos informação segura sobre a escolha do nome de “Cruz de Ouro” para este serviço de saúde, até porque as corporações de bombeiros de Vila Real adoptaram respectivamente o nome de Cruz Verde e Cruz Branca. Pensamos não andar longe da verdade ao admitir que o serviço de saúde dos bombeiros da Régua, que usavam cor de ouro em volta da cruz, terá aparecido como ideia alegórica à região e do rio Douro, onde se situa o concelho da Régua.

O primeiros dois quartéis dos bombeiros da Régua – o do Largo dos Aviadores e o da Rua dos Camilos - por se encontrarem estabelecidos em velhas casas de habitação e comércio, nunca reuniram as condições mínimas para instalação dum posto médico fixo.

O serviço de saúde, a “Cruz de Ouro” dos bombeiros da Régua, começou por estar equipado com um serviço de macas que serviram para transportar os doentes para as instituições hospitalares. Mais tarde, avançou para macas rodadas, que marcavam uma evolução considerável nos equipamentos usados e maior rapidez e eficiência no socorro. Em 1928, o progresso traduzia-se na primeira auto-maca, uma ambulância de marca Rolly-Pillan e, em meados dos anos 30, na moderna e mais bem equipada Ford V8 (actualmente peça de museu).

Nas suas memórias, o Chefe António Guedes, alistado no Corpo de Bombeiros da Régua, em 3 de Outubro de 1911, filho do distinto Comandante Camilo Guedes Castelo Branco (1927-1499), revela-nos que este serviço de saúde foi altamente eficaz na luta contra a epidemia da gripe pneumónica, em 1918. A colaboração com as autoridades de saúde local não se ficou pelo transporte dos doentes infectados. Para cuidar dos tratamentos foi montado um “hospital” provisório, no Asilo José Vasques Osório, dirigido por um médico dos bombeiros.

Mas acabamos de encontrar documentos inéditos, de grande valor histórico, que permitem saber como, depois de 1928, o serviço de saúde passou a funcionar no Corpo de Bombeiros da Régua. Esses documentos provam que a Direcção, já nesse tempo, levava muito a sério a instrução - ao que hoje se chamaria formação - dos seus bombeiros voluntários.

Na verdade, hoje como antigamente, a formação dos bombeiros voluntários continua a ser de grande importância para o competente desempenho profissional em qualquer missão de socorro.

Na sessão de 10 de Novembro de 1928, a Direcção da Associação entendendo que havia deficiências no serviço de saúde, analisada toda a situação, e já que iria proceder a alterações, deliberou realizar um “Curso de Instrução para o Serviço de Saúde”. A frequência era obrigatória para os patrões – actuais chefes - e facultativa para os restantes bombeiros do corpo activo.

Na opinião do médico Mário Bernardes Pereira, também Vice-Presidente da direcção, encarregado de organizar e de preparar o programa das lições teóricas do curso, destinava-se “a tornar útil o auxilio dos bombeiros nos primeiros socorros a sinistrados, feridos e doentes de urgência, tornando eficaz o seu transporte, permitindo acudir aos mais iminentes perigos, e bem assim facilitar o papel que a instituições desta natureza está reservado durante as epidemias e alterações da ordem”.

Na primeira aula teórica seriam abordados as situações, em que o serviço de saúde de bombeiros é chamado a intervir, ideias gerais sobre o tipo de transporte, à mão - vulgo na cadeirinha - nas macas improvisadas, macas de ombros e mão, macas rodadas e ainda nas moto-macas e auto-macas.

No fim do segundo capítulo do programa, o médico fazia a observação ainda actual no nosso tempo: “a velocidade não deve ser uma preocupação sistemática: só as condições especiais do momento a podem regular”. O capítulo seguinte era relativo à matéria da entrega dos clientes no hospital, que concluía com este aviso: “a assistência dos bombeiros mantém-se até que o médico a dispense”.

Por fim, o programa teórico encerrava com o tema do valor do bombeiro durante as epidemias e alterações de ordem pública e lembrava um princípio sagrado e universal de ajuda a qualquer pessoa que esteja doente ou ferida: “Vão-se buscar os feridos onde eles estiverem. A colocação de braçal apaga do espírito toda a noção de partidarismo; socorre-se o semelhante sem atender às ideias que o moveram. A caridade não conhece partidos nem sentimentos individuais de indiferença ou ódio”. O aproveitamento fazia-se com o nível de assiduidade às aulas teóricas e práticas.

Este valioso documento dá-nos a saber que a Direcção aproveitava também o momento para remodelar profundamente o serviço de saúde no corpo de bombeiros.

Assim, tendo em conta certamente motivos de ordem operacional e eficácia, tomava a decisão de suprimir o serviço de saúde como uma secção autónoma, que tinha a graciosa designação de “Cruz de Ouro”. Desde então, os membros que faziam parte exclusiva do serviço de saúde ingressavam no quadro activo, ficando a haver, dentro da Associação, um só uniforme. No entanto, a Direcção admitia que aqueles que frequentassem o curso com aproveitamento poderiam vir a usar um distintivo especial, “que consistirá num emblema sobre cuja natureza a Direcção oportunamente decidirá”.

A “Cruz de Ouro” tinha assim o seu fim, mas o serviço de saúde não deixaria de existir nos bombeiros da Régua. Começa um tempo de mudança que impunha alterações ao seu funcionamento, que era melhorado com uma ambulância. A “Cruz de Ouro” deixava de ser o emblema dos primeiros serviços nos bombeiros, contudo, como precursora, o seu nome acabou por não se perder. Definiu um serviço muito importante para as pessoas, a sua assistência na saúde e transporte, o que hoje constitui uma das maiores missões, sempre em crescimento, que os bombeiros da Régua desempenham, quer na área dos transportes de doentes programados, quer na área dos doentes de emergência pré-hospitalar.
Foi pena que os bombeiros da Régua afectos ao transporte de doentes tenham deixado de usar nos seus uniformes o distintivo da “Cruz de Ouro”!

Apesar das mudanças e evoluções surgidas, os bombeiros não podem esquecer que esse sinal marca uma identidade própria da sua história, com um significado que a corrosão do tempo não conseguiu apagar, pelo que seus directores e comandantes bem podem decidir, um dia, fazer ressurgir, no seu moderno e cada vez mais equipado serviço de saúde, a antiga e singela “Cruz de Ouro”.

Pode ser um bom exemplo, um símbolo que marque mais o futuro da associação, e seja uma razão de esperança que volte a reluzir para todos os doentes que precisem dos bombeiros.
- Colaboração de J A Almeida para "Escritos do Douro". Peso da Régua, Maio de 2010
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