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sexta-feira, 4 de junho de 2010

RETALHOS DE UM DIÁRIO - Capítulo I

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Capítulo I

Aqui estou, estranhamente sereno, no meu camuflado ainda de goma, quase plástico, com galões dourados a simularem-me o indulto da contrariedade, esperando a chegada de um velho General que se levantou tarde ou se esqueceu de mais um embarque para despachar. Aqui estou cheio de sono, com a noite anterior passada a beber cervejas e a apalpar mulheres, Lisbon by night, as meretrizes da Avenida, a pancada do Cais do Sodré, os Cafés do Chiado cheios de fumo das conspirações escancaradas para a Pide se entreter, as chagas prostituídas do Intendente, o Tejo sem os meninos do Soeiro Pereira Gomes ou os Gaibéus do Alves Redol; em S. Bento a teimosia guardada de um ditador e, sob a ponte com o seu nome, nem um barco de liberdade. Berrei, naquelas horas, a tentativa do esquecimento. Coimbra estava longe e, pressentiu-se-me, irremediavelmente perdida; as serenatas uma saudade de alma a sangrar. Coimbra parara num guarda-vestidos da velha casa onde nasci com uma capa negra à minha espera. Os livros na estante do meu quarto, vazio durante dois anos, resistiriam à humidade de dois invernos porque havia sempre dois verões para os secar. Minha Mãe frequentaria a Igreja com a devoção redobrada, de preto vestida como um luto de morta-viva, sem sorriso, os olhos de vermelho escuro. As flores, na Primavera, desabrochariam sem a satisfação do meu olhar e o jardim cresceria à medida da minha ausência. A aldeia não me veria a cara, os caminhos e as ervas dos vinhedos não sentiriam os meus passos, a luz continuaria a faltar, a água seria promessa renovada, a fome espreitaria alguns lares pobres, os meninos deles brincariam descalços e o meu Avô continuaria lá adiante, no Espírito Santo, à minha espera.

Saí cedo do quartel, os Unimogues e as Berlietes a esmurrarem os olhos da noite, repletas de caixotes, sacos e homens-crianças de estômagos enfartados de pão e leite misturado com mentol. A cidade, uma sombra enorme: grupos de operários, de marmitas nas mãos, a dirigirem-se para a cintura das chaminés gigantes que nunca paravam de vomitar labaredas como vulcões em ressaca; Vila Franca lá atrás, tapada pela Siderurgia e perdida na lezíria; na auto-estrada da Encarnação os primeiros carros corriam, ainda à vontade, de faróis acesos.

Gostava que alguém trouxesse o General para acabar com esta palhaçada e os soldados terminarem os abraços e secarem os olhos. Eu não choro. Já me chegou a despedida no fim daqueles amargurados doze dias que me deram de licença como se fosse a última vontade de um condenado. Por muitos anos que viva, jamais esquecerei aquele aperto de minha Mãe: tinha o sangue do cordão umbilical, o despedaçar de um coração único. Julguei morrer ali, envolto naqueles braços, amortalhado por aquelas lágrimas, aquele pranto do fim do mundo, enfiados num quarto feito dispensa da casa secular em que nasci. Disse para comigo: «NÃO VOU!». Os gajos que me viessem prender, que me arrastassem para onde quisessem. Afinal, por que me separavam da minha Mãe? Com que direito? Ao mando de que razão? Plantassem as cruzes noutro cemitério, medalhassem peitos nas praças imperiais, o meu só queria a liberdade e o amor. Mas estou aqui, sem fugir para Genebra, sem inventar úlceras, miopias ou pés chatos, sem cunhas para me livrarem da tropa; estou aqui, cobarde da minha revolta, mas, certo de que ninguém me chamará desertor, com este magote que enerva, à espera - repito - de um velho General desocupado que finja que passou revista ao atavio do batalhão, devidamente filmado por uma câmara para à noite abrir o telejornal e mostrar à Nação mais um contingente a marchar rumo a África «no cumprimento do dever». O barulho é uma inércia auditiva. Olho as estátuas, sem heráldica, da Polícia Militar, e dão-me pena, pena não, desalento, é isso, um imenso desalento como quem é obrigado a conviver com a inutilidade. Apetecia-me ir embora, mandar bugiar isto tudo, voltar a Coimbra, ao bar das Letras, tomar um café para ver aqueles borrachos a mostrarem as coxas, os mamilos a esticarem as blusas, e, eu, tímido, fingindo descontracção, pagaria a conta, desceria à Baixa, ali pelo Quebra-Costas, daria meia volta até à Sofia e subiria Sá da Bandeira. Na Praça da República, num banco virado para o Mandarim, faria horas para o almoço na Associação, passando os olhos pela Vértice ou pelo Via Latina. Mas não, estou aqui, ensonado, farto de esperar, ansioso que estas cenas acabem, com o olfacto saudoso dos cheiros das vinhas e da cozinha da minha casa. Ao lado, o Niassa com a escada do portaló descida e alguns tripulantes debruçados na amurada, curiosos por coisas diferentes de outros embarques.

- Meu Alferes, o nosso Capitão está a chamá-lo – diz-me o Cabo Álvaro sem expressão na voz.
- O meu Capitão chamou-me? – apresento-me, erecto e militarão, como me ensinaram em Mafra.
- Silvestre, arranje-me uns homens do seu pelotão para levarem uns caixotes para bordo. Estão junto daquele – apontando com o indicador direito - jeep da PM – ordenou-me o capitão Silveira.

Chamei o Furriel Manso para escolher seis homens e disse-lhe o que deviam fazer. Vi-o chamar o Cabo Álvaro e constatei a eficiência da hierarquia militar.

De repente, um tremor a despertar modorras, toda a gente começa a correr. Ouvem-se vozes de comando meio baralhadas, repetem-se despedidas, os comandantes das Companhias mandam formar. Acho que é, agora, finalmente, que o General vem. Os tipos da televisão erguem as máquinas de filmar. O meu pelotão está pronto. Os familiares dos militares acotovelam-se e o varandim da Rocha de Conde de Óbidos está à cunha. Há toques de clarim e ruídos de portas de carros a bater, continências a torto e a direito, risos nervosos e apertos de mãos para a chapa. Em posição de à vontade, tenho atrás. O pelotão com o Silva a fungar, o Dias a insultar o Cubano e este a responder-lhe à letra, o Luís a ajoelhar o traseiro do Dionísio que esperneia caneladas, o Álvaro a assoar-se. Viro-me para amainar o temporal.

- Nosso Alferes! - gritou-me o Capitão Silveira. – O seu pelotão está pronto?
- Sim, meu Capitão! Terceiro pelotão pronto! – disparei, lembrando instruções de ordem unida.

Pousou um silêncio de começo de Missa. Com todo o corpo militar em sentido, surge, ao fundo, o General de estrelas brilhantes, novinhas como se tivesse sido promovido no dia anterior. A banda toca a marcha Angola é Nossa. O velho Oficial inicia a inspecção às tropas no ritmo apressado de quem se quer desembaraçar de uma chatice. Olho o céu e ninguém me traz a alegria e a paz, sou prisioneiro dentro deste espaço, com fé, mas sem profetas; o sol não anuncia que a guerra vai acabar e os anjos não nascem na ilusão de quem não lhe apetece partir. Acabada a revista, a Alta Patente calhou postar-se diante de mim, esperando o desfile em continência. Tem uma cara de rugas em cortinas e um nariz absurdamente elegante no meio de uns olhitos inócuos que observam encobertos por umas grossas lentes de miopia anciã.

Os militares, à medida que o desfile se desenrolava, subiam para o barco. Apressei-me quando chegou a minha vez. Não tinha ninguém a quem acenar; pedira para que me poupassem a repetição do afastamento. Ainda não alcançara o tombadilho, ouço uma voz a chamar-me. Volto-me. Vejo o Jorge, grande amigo feito em Mafra, no empedrado, a gesticular e a gritar: «Vou amanhã para a Guiné!» Sorrio e desejo-lhe boa sorte. Debrucei-me na balaustrada, enquanto ainda desfilava um resto, mas a PM, imperial nos seus lenços amarelos, afastou-o sem parar de acenar.

Era uma coisa indescritível: gritos, berros, choros, gemidos, apelos, recomendações, lenços agitados, crianças apavoradas, Mães desfalecidas e, também, carpideiras avençadas. Parecia o desespero de um Povo a clamar uma orfandade colectiva. Então, invadiu-me uma tristeza tão grande e tão forte que não segurei o choro, qual um rio a romper o dique da minha impotência de não conseguir dizer NÃO, de estoirar com a chantagem da deserção, da coacção do anti-patriotismo.

O barco apitou. Muito devagarinho, como se quisesse desamarrar sem se notar, o Niassa separou-se do cais. Da banda militar, irromperam, inesperadamente, os acordes do Hino Nacional. Estremeci, o sangue a ferver, os pêlos a roçarem a farda, as lágrimas em cascata. Meu Deus!, aquilo soube-me a traição sem dicionário, exploração sentimental, alibi de uma infracção, um recurso cruel para o inabdicável. A terra ia ficando longe. Junto a mim, um soldado, de cerveja na mão, perdido de bêbedo, espumando palavras sem nexo, «Haja alegria! Haja alegria!», ria, ria alarvemente.

Lisboa manchava-se no horizonte. Lisboa capital de uma Pátria que espalhava a sua juventude pelos matos da guerra, sem um esboço de paz, sem uma esperança de que o sofrimento valesse para alguma coisa.

O terraço de Alcântara era um lenço gigante ondulando às tágides, soprando velas e espargindo lutos. O soldado bêbedo, enrodilhado no chão, como uma criança a quem arrancaram um presente, gemia: «Eu quero a minha Mãe! Eu quero a minha Mãe!» Levantei-o, nem sei se com piedade ou raiva, e chorámos os dois como choram dois irmãos verdadeiros: agarrados um ao outro.

Os alto-falantes anunciam: «O almoço começou a ser servido. Oferecemos, entretanto, um programa de música seleccionada.» Os sons tristes de La poupée qui fait non acompanham-me até à sala de jantar. Como só fruta. A cabeça entontece-me. Os soldados, de pratos nas mãos, não sabem para onde ir. É um ambiente desorganizado, de começo. A diferença das águas do Mar da Palha para as do Atlântico acentua-se: mais azuis e movimentadas. Lisboa é, agora, uma pincelada de névoa sebastiânica. Uma lancha junta-se ao barco para recolher o piloto que vai descendo pelos degraus do portaló. Aquela apita forte, trocam-se votos de boa viagem, e, acelerando os motores, afasta-se. À distância regulamentar, uma fragata escolta-nos. Gaivotas elevam-se sobre os mastros para depois picarem em voos razantes. Um ar pesado de enjoo envolve o quartel flutuante. Debruçados nas amuradas, homens vomitam o almoço e olham para o sítio de onde partimos. Dói-me a cabeça, pareço andar à roda. Deambulo pelos decks, vejo gente que não conheço, absorta, de olhos inchados, caras perdidas.

Navega-se, moderadamente, por entre babas de espuma, sem nada já ao longe, uma solidão infinita, um desamparo que atordoa, um abandono irremediável. Chegam os primeiros radiogramas. Antes não viessem: «Todos estão contigo. Felicidades e um regresso rápido.» Está bem, um regresso rápido para quem acaba de partir. Procuro conhecidos para mastigar palavras, mas eles e elas enclausuraram-se. Os relógios são atrasados uma hora e à meia-noite terão igual recuo. Não suporto a dor de cabeça, sinto uma estranha sonolência de delíquio. Vou para o camarote e deixo-me embalar por este berço gigante.
Continua...

- Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória. M. Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua.
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