sábado, 8 de maio de 2010

Cartas de longe: Um pouco mais sobre a origem da Casa do Douro

A Casa do Douro, o Instituto do Vinho do Porto (IVP) e, recentemente, a Comissão Interprofissional para a Região Demarcada do Douro (CIRDD) defendem os interesses do sector vitivinícola da Região Demarcada do Douro.

A Casa do Douro e o Instituto do Vinho do Porto, criados respectivamente em 1932 e em 1933, assumiram um papel relevante na defesa dos interesses dos viticultores, da qualidade e genuinidade do vinho da Região. Com a necessidade recente de dotar a Região Demarcada do Douro de um novo quadro institucional, foi criada uma Comissão Interprofissional – a CIRDD (Comissão Interprofissional para a Região Demarcada do Douro)- que passa a ser o organismo nuclear de toda a Região Demarcada do Douro com competências em todos os seus sectores (Vinho do Porto e outras denominações de origem da Região do Douro). Transitoriamente as competências da CIRDD são relativas ao Vinho Generoso (antes da atribuição da Denominação Porto) na fase da produção, sendo a atribuição da Denominação de Origem Porto e a fase de comercialização, da competência do IVP.

No Douro, produzia-se essencialmente Vinho do Porto; o vinho de mesa era apenas um subproduto resultante do excedente de uvas que não podia ser destinado a mosto beneficiado (para Vinho do Porto). Nos últimos anos, com os diversos programas de reestruturação e a concorrência feroz no sector do Vinho do Porto, a1gumas adegas cooperativas e produtores engarrafadores têm apostado no sector dos Vinhos de Qualidade Produzidos em Região Determinada (VQPRD). Também apareceram, em Trás-os-Montes, novas regiões vitivinícolas (Valpaços, Chaves, Planalto Mirandês, Encostas da Nave, Varosa), graças à aposta do sector na grande diversidade de condições edafo-c1imáticas, de castas tintas e brancas de comprovada qualidade enológica, propícia à oferta de produtos vinícolas diversificados e de qualidade.

RÉGUA - Casa do Douro - Na entrada, um dos três vitrais da autoria do pintor Lino António, acabado em 1945, sintetiza toda a dinâmica e beleza da Região do Douro.

Douro - A designação 'Douro' está reservada aos vinhos, tradicionalmente produzidos na região demarcada do Vinho do Porto. A produção de vinhos nesta região é elevada, e cerca de 50% é destinada à produção de Vinho do Porto. A restante é utilizada para a produção de vinhos de grande qualidade.

Situa-se no nordeste de Portugal, estendendo-se pelo vale do rio Douro e seus afluentes e abrange os distritos de Vila Real, Bragança, Viseu e Guarda.

Esta região, divide-se em três sub-regiões - Baixo Corgo, Cima Corgo e Douro Superior, produzindo cada uma delas vinhos com especificidades próprias.

As entidades que controlam as denominações 'Porto' e 'Douro' são respectivamente o Instituto do Vinho do Porto e a Casa do Douro.

A área geográfica correspondente à Denominação de Origem 'Douro' é a mesma que se encontra demarcada para a produção do vinho do Porto e que abrange: No distrito de Vila Real: os concelhos de Mesão Frio, Peso da Régua e Santa Marta de Penaguião e parte dos concelhos de Alijó, Murça, Sabrosa e Vila Real. No distrito de Bragança: parte dos concelhos de Alfândega da Fé, Carrazeda de Ansiães, Freixo de Espada à Cinta, Torre de Moncorvo, Vila Flor e Mirandela. No distrito de Viseu: parte dos concelhos de Armamar, Lamego, Resende, São João da Pesqueira e Tabuaço. No distrito da Guarda: o concelho de Vila Nova de Foz Coa e parte dos concelhos de Figueira de Castelo Rodrigo e Meda.

Na nova organização institucional (publicada a 6 de Novembro de 2003) redefiniu-se o papel a desempenhar pela Casa do Douro com vista a incrementar a sua natureza associativa e a acentuar a sua vertente de representação dos interesses dos viticultores e de apoio à produção. Assim, a Casa do Douro mantém a sua natureza de associação pública, com inscrição obrigatória dos viticultores, regendo-se pelas normas de direito privado nas suas relações contratuais com terceiros.

À Casa do Douro compete:
a) Manter e actualizar o registo dos viticultores e de todas as parcelas de vinha da RDD no respeito pelas normas que venham a ser emitidas pelo Instituto dos Vinhos do Douro e Porto;

b) Indicar os representantes da produção no conselho interprofissional do Instituto dos Vinhos do Douro e Porto;

c) Apoiar e incentivar a produção vitivinícola, em ligação com os serviços competentes, e prestar apoio e assistência técnica aos viticultores, nomeadamente no domínio da protecção integrada e dos modos de produção integrada ou biológica;

d) Colaborar com o Instituto dos Vinhos do Douro e Porto na execução de medidas decididas pelo Governo no que respeita às regras de comercialização para regularização da oferta na primeira introdução no mercado previstas na organização comum do mercado vitivinícola;

e) Representar e defender os interesses dos viticultores da Região Demarcada do Douro junto das entidades oficiais de âmbito nacional e regional;

f) Prestar às instâncias vitivinícolas nacionais ou regionais a colaboração por estas solicitada no âmbito das suas competências legais, designadamente na interlocução com os viticultores, através da sua sede ou delegações;

g) Promover e colaborar na investigação e experimentação tendentes ao aperfeiçoamento da vitivinicultura duriense;

h) Desenvolver, por si ou por interposta pessoa, planos e acções de formação profissional;

i) Colaborar na defesa das denominações de origem e indicações geográficas da Região, podendo para o efeito intervir como assistente em processos por crimes respeitantes àquelas designações, bem como participar as infracções detectadas às autoridades competentes.
Na orgânica da Casa do Douro pretende-se assegurar o fortalecimento do tecido associativo da RDD e garantir que a composição do seu conselho regional tenha em conta a realidade sócio-profissional da região. Nestes termos, e no respeito do princípio constitucional da organização democrática das associações públicas, a Casa do Douro integra um conselho regional a eleger maioritariamente por sufrágio directo dos viticultores inscritos na Casa do Douro (que disporá de uma comissão permanente a eleger de entre os membros desse conselho), uma direcção e uma comissão de fiscalização eleitas por aquele conselho regional.

O conselho regional é composto por:
a) 75 membros eleitos por sufrágio directo de todos os viticultores inscritos, associados ou não;

b) 50 membros designados em representação das associações de viticultores e adegas cooperativas regularmente constituídas e em actividade na Região Demarcada do Douro. (In Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto)
- In Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto.
- Casa do Douro - Apartado 10 - Rua dos Camilos - 5050 Peso da Régua

(Transferência de arquivos do sitio "Régua" que será desativado em breve)

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Cartas de longe: Um pouco de João de Araújo Correia

Personagem do Douro - Um pouco de João de Araújo Correia

Filho de pais remediados, nasci em Canelas do Douro, concelho de Peso da Régua, na madrugada de 1 de Janeiro de 1899.
Frequentei as primeiras letras e instrução primária na sede do concelho, onde meus pais se fixaram quando completei ou ia completar os meus três anos de idade.
Tinha eu onze anos, fiz exame de instrução primária na Escola Normal de Vila Real.
Estou a ver-me subir e descer uma escadaria de velha casa, que me pareceu muito importante.
Em 1912, fiz exames singulares de Francês e Inglês, quinto ano ou quinta classe, numa airosa sala do liceu de Vila Real.
Com estas habilitações, consegui frequentar e concluir, em três anos, o curso dos liceus.
Frequentei-o na Escola Académica do Porto, donde saí, aos dezasseis anos, para me matricular na Universidade.
Frequentava eu o terceiro ano de Medicina, antes de cumprir os meus vinte anos, quando adoeci gravemente.
Obrigado a interromper o curso, por falta de saúde e mais alguma razão, sobrevinda à convalescença, concluí-o em Outubro de 1927.
Perdi seis anos de frequência escolar. Mas não os perdi de todo...
Passei-os em Canelas sem inacção mental e sem prejuízo do meu tratamento.
Quando me formei, era homem de razoável cultura e muita reflexão, própria de quem foi doente meia dúzia de anos.
Durante a convalescença, publiquei prosa e verso nos jornais da Régua.
Mas, de regresso às aulas e após a formatura, já casado e com dois filhos, interrompi a lide literária para me dedicar ao estudo e prática da Medicina.
Entretanto, sem deixar de querer bem à arte de curar, que nunca abandonei, meteu-se comigo outra vez a vocação literária.
Publiquei, em 1938, o meu primeiro livro, que intitulei Sem Método.
Livro de breves notas, foi elogiado por grandes homens como grande revelação de homem votado à produção literária.
Teve de se cumprir a minha sina - originada em factores ancestrais que mal alcanço.
Apenas sei que meu pai, com estudos oficiais rudimentares, lia e escrevia primorosamente.
De minha mãe, delicado espírito, devo ter herdado uma boa dose de sensibilidade.
Bastarão estes dados para se interpretar a minha alma de artista?
Sei que nasci escritor em casa de lavoura, situada à beira de uma fonte, na antiga vila de Canelas do Douro.
- In "O Mestre de nós todos - Antologia de João de Araújo Correia" organizada por José Braga Amaral.

João Araújo Correia - Centenário de um Grande Escritor Ainda Esquecido - Nascido em Canelas do Douro (Régua), em 1 de Janeiro de 1899, João de Araújo Correia foi desde os Contos Bárbaros (1939) reconhecido pela crítica como um dos maiores contistas portugueses, na esteira de uma declarada herança camiliana, mas ainda hoje, apesar da vastidão da sua obra literária, sobretudo no domínio do conto, o autor de Montes Pintados talvez continue a merecer uma injustificada indiferença dos leitores. E, mesmo no ano em que passa o primeiro centenário do seu nascimento, tal efémeride que deveria ser pretexto para avivar a memória e a importância da obra de João de Araújo Correia não teve o reconhecimento público que se impunha.

No entanto, justifica-se sempre reabilitar perante o público leitor, que se mostra alheado de uma verdadeira perspectiva crítica que o faça entender e ler com outros olhos certos autores que pelos anos fora, sem se saber as razões disso, continuam a ser mal-quistos ou esquecidos, enquanto outros autores, tantas vezes sem a grandeza literária de João de Araújo Correia, recebem os louros e prebendas nem sempre de todo justificadas. E, tendo sido tão vasta a obra literária do autor de Contos Durienses como longa e vivida foi a sua própria vida em mais de oitenta anos bem contados como escritor e médico (e, de passagem, assinale-se que foi sepultado em Canelas do Douro em 1 de Janeiro de 1986, quando completava nesse dia 87 anos de idade), nem por isso a sua criação literária, repartida pela crónica, novela, conto, temas linguísticos, notas camilianas e colaboração regular em jornais e revistas, tem sido alvo de atenção e de estudo, com as excepções que ainda hoje constituem alguns ensaios mais profundos ou biográficos de Amorim de Carvalho, Cruz Malpique, Guedes de Amorim, João Pedro de Andrade, João Bigotte Chorão ou Mário Dias Ramos.

Enfileirando, pois, nessa galeria de "escritores do silêncio", o autor de Folhas de Xisto foi desde sempre considerado como um dos escritores mais puros e classicistas na arte de escrever e de contar. Narrador de excepcional virtuosismo literário, João de Araújo Correia modela em pequenos pedaços de prosa as pessoas, os lugares e as coisas à sua imagem e semelhança. Homem que sempre se manteve ligado ao seu povo duriense, existem na sua obra páginas e páginas de excelente prosa, barroca por vezes, mas por onde perpassa de modo fulgurante laivos de profundo humanismo, porque as suas histórias, folhas caídas de uma árvore que não envelhecera, mantêm essa inconfundível característica de vida vivida em todos os planos: de ambiência pequeno-burguesa, retratando as gentes de uma região que conheceu palmo a palmo nos alargados anos da sua experiência, dela soube desvendar as raízes mais fundas e os seus contos e crónicas falam irremediavelmente do que se passa nos meios de província, mas sem evidenciar em tudo o que narra uma visão provinciana. Na verdade, poucos escritores existem na nossa actual literatura que, com tão largo fôlego estilístico e excepcional poder de criação, tenham construído com uma fidelidade quase obsessiva a obra que João de Araújo Correia nos deixou em mais de trinta títulos de bibliografia activa.

Longe das especulações sem sentido de que certos autores apenas exploram esse mundo rural e de província numa perspectiva etnográfica ou regionalista, a sua obra fala e impõe-se por si mesma na dimensão e força de ser um "bloco" literário há muito reconhecido, para lá de se querer rotulá-la como neo-realista, regionalista ou documentalista. Mas qualquer título serve para definir a obra de João de Araújo Correia e dever ter-se em conta a importância de livros como Contos Durienses ou Folhas de Xisto, sobretudo este último em que, sem dúvida, se demonstra a capacidade de narrar de um escritor que sabe chegar à cidade sem abandonar a terra de origem. E assim a Régua, como toda a região duriense, lhe ficou a dever ter sabido, com engenho e arte à boa maneira classicizante portuguesa, glorificar numa prosa forte e exemplar toda a vida pacata e monótona de uma região fustigada pelas própria condições naturais, num retrato que nos deu há mais de quarenta anos e por isso poder dizer: «Parece-me que foi sobre folhas de xisto, lâminas de alvenaria da minha região, que escrevi estes contos».

Por isso, ler os livros de João de Araújo Correia é, na verdade, sentir a pulsação vibrátil de um povo que faz do seu dia a dia, dos instantes mais desocupados ou preocupados, a "canção da terra" que a terra ensinou a cantar. Médico de província, homem culto e muito ligado às suas gentes, o autor de Contos Bárbaros soube como poucos escritores erguer em forma de homenagem o que a própria vida lhe consentiu pudesse realizar. E, mais à sombra tutelar de Camilo do que de Aquilino, soube afirmar-se como um escritor capaz de ter captado todas as antigas ressonâncias e transmiti-las de modo profundamente reinventado, sem ter de filiar-se em qualquer escola ou corrente estética, mas na certeza, como em tempos declarou Óscar Lopes, de que até o neo-realismo «tinha muito que aprender com a espontaneidade criadora (individual e socialmente criada) da imaginação de casos, coisas e pessoas».

Prosador exemplar e grande contista, no ano em que passa o primeiro centenário do seu nascimento e praticamente quase não comemorado, João de Araújo Correia bem merece que se evoque a sua memória e se enalteça a grandeza de escritor, e assim dar razão a estas palavras que Aquilino pôde pronunciar em 1960 numa homenagem nacional então prestada ao hoje tão esquecido autor de Terra Ingrata:«Não é o mestre da Régua, como se dizia da pintura, no obscuro século de Quinhentos, o mestre de Ferreirim ou de Linhares. Mas o mestre de nós todos, que andamos há cinquenta anos a lavrar nesta ingrata e improba seara branca do papel almaço, e somos velhos, gloriosos ou ingloriosos, pouco importa; mestre dos que vieram no intermezo da arte literária com três dimensões para a arte literária sem gramática, sem sintaxe, sem bom senso, sem pés nem cabeça; e mestre para aqueles que terão de libertar-se da acrobacia insustentável e queiram construir obra séria e duradoura».

Mas é sempre tempo de se elogiar e reconhecer os nossos grandes escritores, de ontem e de hoje, e por isso repetimos que esta efeméride dos 100 anos de nascimento de João de Araújo Correia (1899-1999) poderá ser de facto um bom pretexto para enaltecer junto do público leitor o valor e a importância da sua admirável obra literária realizada em cinquenta anos de ofício e vocação de escritor e quase toda ela reeditada nas suas "Obras Completas" pela Editorial Estampa.
- Por Serafim Ferreira, crítico literário, in "A Página".

O Rei dos Cavadores - O Rei dos Cavadores apareceu-me aqui derrotado - neste consultório.
Diz que não come nem bebe e que passa as noites em claro.
A mulher, que veio com ele, acrescenta que o desinfeliz se levanta da cama em fralda de camisa e se pôe de joelhos a orar diante de um crucifixo.
Pede-me que dê um calmante ao homem, que era um trabalhador de uma cana e agora está um esqueleto.
Reparo na figura da mulher, contraste da figura do marido.
Ela ainda é uma rosa, embora desbotada pelos quarenta anos.
Ele não se pode comparar a nenhuma flor. É um espinho vivo.
Miro-o no fundo ds pupilas e afirmo-lhe à queima roupa:

- Desconfias de tua mulher.

O homem deixa cair os braços com que havia gesticulado as queixas. Abate o magro corpo na palhinha meio espipada de uma cadeira e confirma:

- Desconfio.

O rosto calmo da mulher parece-me inocente. Pouso a mão direita no ombro esquerdo do Rei dos Cavadores e exclamo:

- Não tens razão !

- Que não tenho razão sei eu, senhor doutor. Foi uma cisma que se me meteu na cabeça. Eu nunca me tinha visto ao espelho. Um dia vim à feira e deu-me para fazer a barba numa barbearia a luxo, dessas que por aí há, em que um homem se vê como é nos espelhos da frente e nos espelhos de trás. Cuidei que morria, de feio que me vi. Pensei que os anos me tivessem poupado como à minha Rita. Enganei-me! Tenho uma coroa, no alto da cabeça, maior que a dum bispo. Enquanto que a minha Rita não tem uma branca, as minhas fontes são dois chuveiros delas. E o meu rosto? É um sudário de engrunhas. Fui para casa e entrei em casa muito sossegado. Comemos o caldo em santa paz, eu e a minha. Lembro-me que foi ao alimpar os beiços que eu lhe perguntei:

- Sou feio ou bonito ?

Vai ela dá-me uma risada, coisa que não tem por costume, e responde:

- É feio.

Palavra que tal disseste! Pus-me triste como a noite e nem fui dar a tarde para que estava rogado. Fingi-me doente e botei-me à cama. O que eu quis foi agarrar lá a minha Rita. Dei-lhe mais beijos e mais abraços do que na noite do casamento. A minha mágoa é que recebeu tudo isso, as minhas festas, com a mesmíssima cara que tem agora. Nem o mais pequenino sinal de agradecimento! Punha-se a olhar para mim como se dissesse: estás doido. Fiquei num desespero. Lembrava-me do espelho, e o mais que fazia era chegar-me a ela na esperança de receber da companheira um migalho de refrigério. Era o mesmo que nada. Olhe! Ficava-se com aquele adoairo! Não quis adivinhar que dentro do meu peito havia bicho ruim. Para aumento do meu mal, deu-se lá na terra um acontecimento...porco. A mulher dum compadre meu fugiu para o Brasil com um alfaiate de fora - um rapaz que até parecia maricas. Desde aí é que o meu padecimento se tornou... Aqui o Rei dos Cavadores começou a chorar. Esfregou os olhos à raiz de ambas as mãos e prosseguiu:

- De dia, tenho trabalhado, mas, já não sou o Rei dos Cavadores, como ainda me chamam ricos e pobres. Sou um farrapo. De noite, procuro despertar na mulher, que aí está como uma estátua, alguma piedade, algum consolo, um bocadinho de paz. Vingo-me em na abraçar mais vezes do que as forças e a idade determinam, boto-me de joelhos aos pés de Jesus Crucificado, e esta cabeça, esta desgraça, não tem relego!

A mulher, cujo semblante ficou impassível a esta exclamação, confessou que o seu homem a cometia como doido e era impossível que não estivesse tísico. Auscultei o Rei dos Cavadores e dei-lhe uma receita incapaz de lhe calmar os nervos e de lhe restaurar o peito consumido.
- In O Mestre de nós todos - Contos Durienses, 1941 - Antologia de João de Araújo Correia organizada por José Braga Amaral.

Durius Dulcis

Depois que me senti envelhecer,
Passo horas e horas no meu lar,
De janela em janela, a espreitar
O breve mundo que me viu nascer.

Tem montes que não deixam de crescer,
Videiras que ninguém pode contar,
Oliveiras que vivem a rezar
E um rio que não para de correr.

Este pedaço de viril beleza,
Este painel de rica natureza
Irá comigo para o Além.

Sempre lhe quis e sempre o defendi,
Fui eu até que um dia o descobri...
Não o posso deixar a mais ninguém.

João de Araújo Correia 
ALGUMAS OBRAS PUBLICADAS - Sem Método (1938), Contos Bárbaros (1939), Terra Ingrata (1946), Enfermaria do Idioma (1971), Contos Durienses (1941), Cinza do Lar (1951), Folhas de Xisto (1959), Caminho de consortes (1954), Três Meses de Inferno (1947), Rio Morto (1973), Tempo Revolvido (1974), Outro Mundo (1980), Dispensário Linguístico (póstumo-1999) e outros. Possui mais de quarenta obras publicadas.

(Transferência de arquivos do sitio "Régua" que será desativado em breve)

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Cartas de longe: De Porto Amélia a Pemba - ILHA DO IBO - PERDIDA NO MAR E NA HISTÓRIA

ILHA DO IBO - PERDIDA NO MAR E NA HISTÓRIA, por Camilo de Araújo Correia - Em Porto Amélia raramente se dizia a ilha do IBO; dizia-se, muito simplesmente, o IBO. Foi ao IBO, veio do IBO, vive no IBO...

Naquele falar e falajar do entardecer nas deliciosas varandas coloniais, fui ouvindo história daquela ilha da costa de Moçambique, entre o Lúrio e o Rovuma. O mistério ia, pouco a pouco, aguçando a minha curiosidade. O próprio café do Ibo, que o senhor Ferreira nos servia no «Botão de Rosa», ajudava ao mistério. Era um café delgadinho, acastanhado, de cheiro e sabor muito estranhos. Mas acabamos por gostar dele e precisar dele. Era revigorante e tirava a ideia de deitar em horas de andar a pé. E quem quisesse ler ou escrever pela noite fora, era só tomar um cafézinho do Ibo, depois de jantar. Insónia assegurada.

Quando a curiosidade começou a inquietar-me, não tive outro remédio se não reparti-la com o meu inesquecível companheiro Simões Coelho. O Dr. Manuel Simões Coelho, grande cirurgião e grande pianista, veio a falecer em Portugal, meses depois de ser desmobilizado.

Não foi difícil entusiasmá-lo. Ele também já andava mortinho por conhecer o Ibo. Difícil foi arranjar transporte que nos levasse pela costa acima, até ao ponto da travessia. O jeep do Hospital Militar 338, a que pertencíamos, estava mesmo a calhar, mas a viagem era paisana demais para o podermos usar sem dar nas vistas...

Acabámos por aceitar a oferta de um indiano—um velho Opel sempre a torrar ao sol implacável da Av. Jerónimo Romero. Só depois de aceitarmos, com muitas mesuras de parte a parte, é que soubemos do estado lastimoso do carro. A cor era o menos, mas sempre lhes direi que ia do vermelho alaranjado, nas pregas mais protegidas, ao diospiro podre nas superfícies mais expostas.

Depois de uma revisão que, afinal, só serviu para nos afirmar que era uma temeridade partir, assim, com duas senhoras e duas crianças, lá fomos aos primeiros raios daquele sol que se erguia do lado do mar e se punha do lado da terra.
Logo aos primeiros quilômetros, o Opel triplicou os barulhos da partida e começou a cambar para o lado esquerdo. Por sua vez, as senhoras iam fechando a cara, daquela maneira que só as esposas contrariadas sabem fazer... O que nos valia, a mim e ao Simões Coelho, era a grande satisfação dos nossos filhos, o João e o Jorge. Riam e batiam palmas de cada vez que um macaco-cão atravessava a estrada, solene e atrevido.

— Ó papá, tu não apitas nas curvas?! — estranhou a certa altura o Jorge.
— Ó filho, tomáramos nós encontrar alguém, mesmo contra a mão! — respondeu, galhofeiro, o Simões Coelho.

Naquela fita de terra vermelha, marcada pelas tempestades e pêlos aventureiros, naquela solidão que parecia vir do princípio do mundo, buzinar seria uma ingenuidade e um sacrilégio.

A certa altura o «diospiro» cambou perigosamente para o lado de que vinha a queixar-se desde Porto Amélia — o esquerdo.

— O feixe de molas está a dar o berro! — informou o Simões Coelho, de rabo para o ar, meio metido debaixo do carro.
— E agora? — perguntei com a nítida sensação de ser ridículo naquele ermo.
— Vamos andando devagarinho... Mahate deve estar perto!— sossegou o Simões Coelho a bater as mãos, vermelhas de terra.

Depois de meia dúzia de curvas, dadas de credo na boca, Mahate apareceu como um bocejo da floresta.

Mahate era uma terra pequena e poeirenta surgida, ao que me pareceu com a exploração, naquela área, da companhia algodoeira Sagal.

Para nós foi a Divina Providência que ali instalou umas oficinas capazes de reparar o nosso carrinho cambado e gemebundo. Não seria preciso, mas sempre fomos dizendo que éramos amigos do senhor Eng° Guedes de Paiva, ao tempo, administrador da Sagal em Porto Ameia... Além do préstimo, os mecânicos foram de uma amabilidade inesquecível. Só tivemos de esperar um tempinho bem bom. Fomos passá-lo a uma daquelas lojas que só se encontram na África em pleno mato. Ali se vende de tudo, mas tudo cheira a tabaco e peixe seco.

Resolvemos esperar na varanda, quase ao nível da rua, a uma mesa de tampo coberto de moscas. Daquelas moscas que voltam sempre mal acaba o gesto de as afastar. Ao fundo da varanda bebia cerveja um negro gordalhufo, esgoleirado, mas bem vestido. Limpava, a espaços, um suor azulado e parecia, de olhar fixo, contar as garrafas que já bebera e tencionava beber.

É o doutor do Ibo!... — informou o pretito que nos trazia os pedidos; adivinhando em nós a estranheza de ver ali tal figura.

Ainda pensamos em abordá-lo para lhe dizermos quem éramos e onde íamos, mas o nosso colega parecia estar ao fundo de uma varanda sobre o infinito...

Do outro lado da rua havia um inacreditável campo de futebol. Apenas umas canas espetadas no chão poeirento limitavam o necessário rectângulo em cujas extremidades havia uns paus tortos a servir de balizas. O piso era de terra moída e remoída por mil pés a ir e a vir na mira do golo. Mas o campo tinha uma vaidade que ainda hoje me dói... Por cima da entrada uma tábua ressequida dizia assim numa caligrafia acabada de aprender:

LEÕES DE MAHATE

Quando pensávamos em ir ver se o carro já estava pronto, o «diospiro» apareceu, trazido por um funcionário da Sagal. Vinha todo teso e reluzente de limpeza, íamos batendo as palmas de contentamento. As nossas mulheres sorriram, finalmente. Pareciam já duas noivas em viagem de núpcias...
Dali até ao ponto de embarque para a ilha do Ibo correu tudo bem, mas tudo feito com muito cuidado por causa do piso. Quando menos se esperava surgia um pontão de troncos, ali posto para dar passagem no leito seco de um riacho efémero. Se bem me lembro, só atravessamos um curso de água permanente — o rio Montepuez. Era em Tandanhangue que se embarcava para o Ibo. Não havia povoado, nem havia cais. Apenas uma enseada minúscula acolhia o barco a motor do vai-e-vem. Ao embarcarmos, as senhoras voltaram a fechar a cara e os rapazinhos a ficar mais contentes. Aquele barco pareceu-lhes, certamente, acabado de saltar de um quadradinho de banda desenhada... A mim pareceu-me pequeno para aguentar qualquer espécie de mar. Eu não sabia que no paraíso os barcos não têm tamanho... E foi uma viagem paradisíaca aquela que fizemos, ora quebrando espelhos de mar imaculado, ora atravessando florestas de mangai, de onde se erguiam bandos de pássaros, brancos e silenciosos como a neve.

Talvez influenciado pelas histórias de Somerset, esperava encontrar na Ilha do Ibo um pequeno porto com alguma agitação de gente curiosa e mercadorias pasmadas ao sol. O cais do Ibo não passa de um pequeno patamar com escadinhas a desaparecer na água quieta. À espera, apenas um rapaz de tronco nu, muito lesto nas manobras de atracagem.

Foi esse rapaz que nos levou a casa de Wong Jan, um chinês de hospitalidade lendária por toda a costas de Cabo Delgado e que, em Porto Amélia nos haviam indicado como único sitio do Ibo onde poderíamos ficar.

Wong Jan recebeu-nos com as vénias de todos os chineses a que, ao que me pareceu, juntou mais algumas de homenagem ao Simões Coelho, já famoso por aquelas bandas.

Depois de um banho, tomado a golpes de púcaro pela cabeça abaixo, fomos cervejar para a varanda. Íamos na segunda rodada, quando apareceu o «Madragoa» a esbracejar e a rir de lês a lês no carão moreno. O « Madragoa» era o Administrador da llha do Ibo. Não consigo lembrar-me do seu verdadeiro nome. Aliás, julgo que nunca o soube muito bem... Apesar de muito estimado e respeitado, ninguém a ele se referia de outra maneira.

—  Está cá o «Madragoa»! — anunciava-se, volta e meia, em Porto Amélia.

A simpática alcunha deve ter pegado por excesso de bairrismo do Administrador. Acho que dizia por tudo e por nada:

—  Sou de Lisboa e da Madragoa!

E por ser de Lisboa recordou pela noite fora com o Simões Coelho casos e recantos da saudosa terra de ambos.

Quando as senhoras e as crianças se foram deitar, como autómatos perdidos de sono, ficámos só os três. Melhor, os quatro. Wong Jan andava por ali, discretamente, atento à nossa sede e à nossa fome. A certa altura o Administrador insinuou que «estava mesmo a calhar» um certo pastelão de um certo marisco.

Apesar do marisco me parecer um tanto coreáceo, o pastelão, no seu conjunto, ficou delicioso. Mas esta delícia viria a estragar-me a noite... Não fiz a digestão daquele marisco tão aplaudido. De cada vez que me virava, sentia os pedacinhos inteiros a carambolar no estômago, como bolas de bilhar. E quando pela manhã, ouvi o Simões Coelho a falar no pátio com os criados, berrei-lhe, ainda da cama:

—  Arranja-me um pouco de aguardente!
—  'stá bem... 'stá bem! — respondeu com certa estranheza na voz.

Mas a aguardente nunca mais vinha. Passado cerca de um quarto de hora, voltei a berrar:

—  Então essa aguardente, Simões Coelho!?
—  Andam a tratar disso!... Tu julgas que estás na Régua?

Passados mais dez minutos, um criado bateu à porta.

—  Pronto, patrão! já 'tá — disse, contente, no seu riso de piano aberto.

Intrigado por não lhe ver nada nas mãos, perguntei:

—  Já está o quê?
—  O banho, patrão. Tem muita água!

Está visto que me andou a arranjar água quente em vez de aguardente!... Tomei um delicioso banho de bidom. O único banho quente em dois anos e meio de África.

O pequeno almoço tornou-se de fugida. Não queríamos perder o içar da bandeira naquele domingo passado tão longe.

A cerimónia foi breve mas de uma solenidade garantida pelo rigor militar dos sipaios. Nunca a nossa bandeira me pareceu tão nossa, a tremular assim naquele azul tão forte que parecia pintado.

Começamos a visita à ilha pelo Hospital. Ficava ali mesmo, naquele terreiro de árvores frondosas em redor do mastro da bandeira.

Não voltei a ver hospital tão limpo, tão arrumado e tão deserto. Apenas dois serventes negros nos fizeram as honras da casa, abrindo portas naquela solidão e respondendo baixinho às nossas perguntas. O Hospital pareceu-me apetrechado para o que desse e viesse. Viesse o quê? Apenas dois negros, muito velhos e muito magros estavam internados, mais por caridade que por doença. Nenhum respondeu às minhas perguntas. Nem os olhos mexeram, quando as repeti mais alto. Três mundos: o meu, o deles e o outro.

Ao recordar, agora, aquele deambular pelas ruas do Ibo, recordo paralelamente o percorrer das ruínas de Pompeia, visitadas muitos anos depois. Em Pompeia tudo aconteceu há tanto tempo que nada nos comove. Dir-se-ia que, ali, o Vesúvio e os séculos silenciaram tudo de tal maneira que as nossas almas e os nossos corações já nada podem sentir.

No Ibo o pano parece-nos caído sobre a opereta da grandeza e logo erguido para mostrar o drama da decadência. Entre a descida e a subida do pano, um curto intervalo para a História poder mudar de roupa.

Não pudemos visitar toda a Fortaleza por medida de segurança. Estavam lá prisioneiros muitos negros implicados na guerra, prestes a abrir ao sangue e à intolerância. O que vimos chegou para saber que a Pátria se defendia tão bem e tão longe.

Foi confrangedor passar diante de casas senhoriais, de paredes esventradas, sem telha que as proteja e porta que as guarde. Numa delas, em plena sala de jantar, de paredes apaineladas, crescia uma árvore com indescritível descaramento. Nas fachadas de armazéns arruinados, iam-se apagando os nomes de grandes firmas comerciais e um grande silêncio parecia amarrar-se àquela fiada de argolas de prender os animais de carga.

As casas habitadas eram poucas e dispersas. As pessoas vinham às portas ver-nos passar como fantasmas de um futuro que há-de vir. E ainda não veio.

Ao virar de uma esquina apareceu o nosso simpático Administrador. Vinha num jeep cheio de mossas, roncos de motor e grandes estoiros de tudo de escape. Queria oferecer-se para uma volta mais larga pela sua ilha.

Começou por nos mostrar, muito orgulhoso, um pequeno bairro social de sua iniciativa. As casas eram pequenas, de blocos feitos ali mesmo, sem qualquer estilo, a contar com um clima sem inverno. Foi uma nota de esperança naquela terra em agonia, desde o fim da escravatura. Sim. O Ibo foi próspero, enquanto entreposto de escravos. Ali se fixaram grandes famílias da Europa, vivendo na abastança, da compra e venda de negros.
Lá estão as casas senhoriais de estilo europeu a afirmá-lo e os apelidos nobres a resistir ainda aos humildes nomes indígenas: Ávila... Menezes... Carrilho... Ornelas... Alba... Coutinho... E o sangue? Ohl... o sangue... A garantir a sanidade dos cruzamentos de sangue latino e negro, temos o milagre das «brancas do Ibo». Milagre de brancura, de elegância, de beleza, de jeito de falar e jeito de ser. Iris Maria é uma branca do Ibo. Foi miss Portugal. Não tem havido mais porque o Ibo é longe e mau caminho...

Ao som daquele jeep rebentado percorremos boa parte da ilha com o nosso «Madragoa» a gesticular indicações com o braço livre do volante. Nada me pareceu cultivado com regra ou entusiasmo. Toda aquela agricultura de subsistência tinha o mesmo ar espontâneo do capim, mas toda aquela desolação definitiva não impedia o nosso Administrador de gesticular grandes projectos de abastança. Quando se punha de pé, de braço estendido a traçar lonjuras de cultivo, chegava a ouvi-lo como um eco de D. Quixote...

Por ventura a marca mais profunda que me ficou daquele passeio a esmo pela ilha, foi a visão das sepulturas individuais e familiares que íamos encontrando perdidas no capim. Mal se desligava o motor para irmos ver mais perto, caía sobre elas um silêncio quase doloroso. Que grande senhor negreiro estaria ali comido dos bichos e dos remorsos? Que formosura virginal teria acabado ali os sonhos de donzela?

Um ventinho de murmúrio respondia do infinito. Um grande silêncio respondia a toda a gente.

Outra vez o cais... outra vez o barco... outra vez o mangal no mar quieto... outra vez os pássaros brancos e silenciosos como a neve...

E a Ilha do Ibo lá ficou, perdida no mar e na História.
- Por Camilo de Araujo Correia (extraído de "Recordar é Viver")

- NOTA - Relato que se presume tenha acontecido na década de 1960, quando o médico duriense cumpriu serviço militar em Porto Amélia como diretor do Hospital Militar e publicado em 1991 em Portugal-Peso da Régua, no "livro de Andanças".

- Comentário de Carlos Lopes Bento no ForEver Pemba 3 em 14/09/2004:
Mais uma faceta das terras de Cabo Delgado, desta vez uma viagem por terra e mar. A narração está bastante próxima da realidade. O administrador "Madragoa" e "Malata" era em 1962 Mário Baptista de Oliveira. Escreveu, então, "Monografia Sobre a Ilha do Ibo", dactilograda, não publicada. Parabéns por mais um trabalho sobre as terras de Cabo Delgado, com a narração de uma viagem entre Porto Amélia e Ibo, por terra e mar. Mezungo m'barabara. Enviado por Carlos Bento em setembro 14, 2004 03:43 PM.

(Transferência de arquivos dos sitios "Pemba e Régua" que serão desativados em breve)

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Cartas de Longe: Um pouco mais da Régua - Rebuçados, Antão de Carvalho, Barão de Forrester e a Santa Casa

Um pouco da história dos Rebuçados da Régua
 Olha o rebuçado da Régua... ... Levem o rebuçado da Régua... ... !

Quem chega à Régua de combóio, ou pela sua bonita e centenária Estação dos Caminhos de Ferro, imediatamente a seguir ao ranger das carruagens anunciando a paragem, inevitavelmente, ouve um apelo único de vozes de mulheres de sotaque tipicamente duriense:

- Olha ó rebuçado da Régua, levem rebuçados da Régua
- Ó meu amor não vai uma saquinha ?...

De bata branca e lenço da mesma cor, colocado de forma característica na cabeça, lá estão, ainda hoje, as rebuçadeiras da Régua no Largo e na Gare da Estação, vendendo ao forasteiro que chega ou ao patrício que parte, este ex-libris gastronômico da cidade.

Rebuçadeira é uma profissão que se imagina tão antiga quanto a iguaria, contudo não há ao certo uma data exacta para a origem do fenômeno e do negócio, da mesma forma que cada rebuçadeira guarda o seu segredo de confecção como sendo o tesouro da sua vida.

Os rebuçados da Régua são também centenários, segundo o testemunho de Ermelinda Mesquita - a "Ermelinda Rebuçadeira" - uma das mais antigas e carismáticas rebuçadeiras da Régua, famosa pelos aromas dos seus rebuçados, e que na esmerada cozinha onde tudo acontece, foi deixando as mãos trabalhar e a saudade recordar...

- ...Do que se sabe, primeiro, os rebuçados começaram por ser vendidos nas festas locais e das redondezas; havia dois vendedores muito conhecidos - o "Prosa" e o "Cândido Rebuçadeiro" - e talvez só depois tudo tenha começado".

Aprendiz de D. Maria Adelaide, a Ermelinda Rebuçadeira começou bem cedo, na década de 40, no característico restaurante da gare da Estação...

- À hora dos comboios éramos quatro moças de bata verde (na altura era assim) - uma vendia água em bilha, que custava nessa altura 15 tostões; outra vendia em cantarinha, a copo, e outra ainda andava com o tabuleiro dos caramelos, das bolachas e da fruta, e a última vendia os nossos rebuçados da Régua - 3 pacotes 5$00. Já lá vai muito ano... concluiu a D. Ermelinda com a nostalgia de uma profissão de que se orgulha, apesar de um percurso de vida difícil e marcado no olhar e nas mãos enrugadas de tanto moirejar, mas não sem, entretanto, falar de dentro, recordando...
- Era uma juventude maravilhosa... foram os melhores tempos da minha vida... aos Sábados e Domingos era a correria para o baile dos Bombeiros."...

Depois de o açúcar em ponto com duas cascas de limão e...( o tal segredo) ter passado para a branca pedra de mármore untada com margarina, e daí para o plástico esticado na mesa, ainda a ferver, as mãos, indiferentes à dor, vão cortando os rebuçadso um a um, rápida e habilmente, para depois os embrulhar em forma de autênticos laçarotes que saem das mãos desta senhora, que chegou a ensinar muitas outras da atual geração de rebuçadeiras.

- Hum, que delícia, comentamos, com privilégio de saborear o primeiro a desembrulhar!
- E então diga lá que agora não ficava bem um cálicezinho de vinho fino, ou do Porto?

E rematou, para concluir:

- Ó menino, não leva uma saquinha ...?"
- Villa Regula - Março de 1999 - Texto de José Braga Amaral.

 Figuras Ilustres da Régua
Antão de Carvalho e a criação da Casa do Douro

Em 1931, a lavoura duriense passa mais uma vez por momentos difíceis, não conseguindo controlar o preço do seu vinho, que cai constantemente, e esperando-se a todo o momento uma situação de ruptura.

Era preciso criar um organismo associativo que não só defendesse o vinho e a região, mas também os promovesse.

Aconteceu então que um conjunto de ações foram levadas a cabo por homens destemidos e de muito mérito, como: Carlos Amorim, Joaquim Carvalhais, Dr. Bonifácio da Costa, Dr. Antão Fernandes de Carvalho, Eng. Artur Castilho, estes dois últimos com a responsabilidade de fazerem o "Estatuto do Douro", que viria a ser alterado pelo governo.

Fez-se então um contraprojecto, mais uma vez não só da responsabilidade do Dr. Antão Fernandes de Carvalho, como também do Dr. Camilo Bernardes Pereira e do Eng. José da Costa Lima, e que viria a ser aceite.

E foi assim que, em 19 de Novembro de 1932, o governo, aceitando esse novo projeto do Estatuto do Douro, fez publicar o decreto-lei nº 21883 criando a Federação Sindical dos Viticultores da Região do Douro, hoje Casa do Douro.

A Casa do Douro e esta região demarcada muito devem a homens como o Dr. Antão Fernandes de Carvalho, que com o seu saber, carácter e influência muito contribuíram para a sua criação.

Nasceu no ano de 1871, no lugar de Vila Seca, freguesia de Poiares e concelho de Peso da Régua.

Formou-se em Direito pela Universidade de Coimbra e ocupou lugares de destaque como o de deputado, Presidente da Comissão de Viticultura da Região do Douro, Presidente da Câmara do Peso da Régua, Secretário do Estado do Comércio, sub-Secretário do Estado da Presidência, Ministro da Agricultura, do Comércio e Pescas e outros cargos que seria fastidioso aqui referir.

Veio a falecer em 1948.

Morreu o homem, mas ficou a obra...bem-haja.

Citando Carlos Amorim: "A sua figura máscula, hercúlea, bem vincada, à beira do grande edifício, é como que uma sentinela, sempre firme no seu posto, a vigiar e a guardar."
- In Villa Regula - Março de 2000 - texto de Marco Aurélio Peixoto

O Barão de Forrester

O Barão de Forrester, de nome Joseph James Forrester, nasceu em Hull, na Escócia, a 21 de Maio de 1809.

Veio a falecer, vítima de um acidente de barco, no Cachão da Valeira, em Maio de 1861.

Chegou a Portugal em l830 e dedicou-se desde muito cedo à carreira comercial, ajudado nesse tempo por um tio, grande comerciante na cidade do Porto.

Tornou-se num homem distinto, de grande cultura, deixando-nos uma extensa obra bibliográfica. Também foi poeta, desenhista e aguarelista.

Além do inúmeros mapas da região demarcada, ele foi o autor do importante mapa "O Douro Português", traçando o curso deste rio desde a fronteira espanhola até à foz. Este excepcional trabalho fez com que o governo lhe atribuísse o título de Barão, honraria pela primeira vez atribuída a um estrangeiro.

Como nesse tempo o acesso para o Douro era difícil, mandou construir um barco do gênero rabelo, ricamente decorado e apetrechado, onde oferecia jantares aos seus amigos. A tripulação era muito bem remunerada e magnificamente uniformizada.

Quando se encontrava hóspede de D. Antónia Adelaide Ferreira, veio a encontrar a morte no barco em que se fazia transportar numa viagem de recreio, voltando-se, no traiçoeiro ponto do Cachão da Valeira.

Socorridos por outro barco, salvaram-se todos menos o referido barão, uma criada e um criado.

Dizem que D. Antónia se salvou graças aos seus vestidos, que se comportaram como um perfeito balão, e o barão se afogou porque levava na sua faixa uma quantidade apreciável de moedas em oiro.

Morreu e ficou sepultado no lugar que mais o impressionava, chegando a desenhá-lo por duas vezes. Foi uma perda irreparável.
- In Villa Regula - Dezembro de 1999 - Texto de Marco Aurélio Peixoto.

Santa Casa da Misericórdia do Peso da Régua
A solidariedade por uma vida mais digna
A Santa Casa da Misericórdia da Régua foi criada em Fevereiro de 1928. Ao longo dos tempos viveu fases de grandes carências, mas nos últimos anos cresceu a olhos vistos e atualmente possui uma série de serviços bem organizados e que respondem a praticamente todas as necessidades dos que procuram a sua ajuda.

Gente de todas as idades vem a esta casa em busca de solidariedade e companhia ou para viver em tranqüilidade os dias que lhe restam.

A Santa Casa da Misericórdia possui um centro infantil, freqüentado por 35 crianças dos três meses aos três anos, e um centro de educação pré-escolar com 75 crianças, entre os três e os seis anos. Para além disso, tem ainda salas de apoio ao ensino básico frequentadas por 64 crianças.

A Santa Casa da Misericórdia da Régua alberga, em regime de internato, cerca de 30 jovens com idades compreendidas entre os dois e os 33 anos. A maior parte delas cresceram aqui. Têm uma vida igual a todas as outras jovens e frequentam a escola. João Pereira, provedor desta casa, afirma que "há duas jovens a frequentar cursos superiores e todas elas, desde que o seu comportamento e a sua capacidade o permitam, vão ter essa oportunidade".

SOLIDARIEDADE E LIBERDADE - À partida, a Santa Casa da Misericórdia alberga os jovens até aos 18 anos. Depois, a maior parte delas arranja emprego ou casa-se e segue o seu rumo. De vez em quando regressam para fazer umavisita, recordar velhos tempos e partilhar memórias com a nova família.

No caso de terem dificuldades, as jovens podem continuar a contar com o apoio desta casa.

João Pereira afirma que todas as jovens que vivem na Santa Casa da Misericórdia da Régua estão integradas na sociedade reguense, apesar de uma grande parte delas virem de outras terras, "talvez porque não há na região instituições deste género e porque esta casa já adquiriu um estatuto especial. Toda a gente reconhece a capacidade desta casa na educação e no acompanhamento das jovens", diz João Pereira. Na Santa Casa da Misericórdia da Régua, as jovens têm liberdade para participar em atividades desportivas e culturais noutras instituições e associações da cidade, "para que sintam e saibam que são iguais a todas as outras". Algumas praticam voleibol no Clube de Caça e Pesca, outras praticam dança e algumas estão integradas em grupos da igreja. "No dia 24 de Julho (1999) estiveram todas no estádio Nacional a ajudar a compor o logotipo humano de candidatura de Portugal ao Europeu 2004", conta João Pereira.

UM OMBRO AMIGO - Dentro de casa, todas estas jovens têm o apoio e a ajuda que necessitam, tanto nos estudos como na sua vida pessoal. Ao fim da tarde uma explicadora dedica-se a tirar as dúvidas que ficaram daquele dia de escola, para que todas tenham sucesso nos estudos. E no provedor, sabem que têm um ombro amigo para pôr questões e pedir conselhos sobre tudo. João Pereira está, atualmente, empenhado em conseguir o apoio técnico de uma psicóloga para estas jovens, porque, afirma: "estão na idade da rebeldia, que é perfeitamente natural, e queremos dar-lhes o acompanhamento que merecem se precisarem". Mas orgulha-se do fato de as jovens da Santa Casa da Misericórdia da Régua, rebeldes ou não, terem um comportamento exemplar e nunca terem criado problemas graves.

UM ESTÍMULO PARA OS IDOSOS - Os idosos têm na Santa casa da Misericórdia um abrigo e um estímulo a uma vida útil e saudável. Em regime de internato vivem aqui atualmente 60 idosos e freqüentam o Centro de Dia 10.

A lotação está esgotada, como acontece nas restantes faixas etárias, e há uma lista de espera de mais de 100 idosos para serem acolhidos por esta casa. Aqui, a ocupação dos tempos livres dos idosos está garantida. A maior parte das mulheres dedica-se à execução de rendas e bordados, há quem tenha uma paixão e um talento especial para artesanato e há quem goste de trabalhar e cultivar a terra. Os trabalhos que produzem são exibidos e vendidos em diversas exposições na cidade, para ajudar a pagar as excursões que realizam.

Já foram a Fátima, a S Salvador do Mundo, à Senhora da Lapa e deram um passeio de barco com o apoio do Instituto de Navegabilidade do Douro e da Câmara Municipal. "É uma forma de sentirem que estão capazes e que podem ser úteis", diz João Pereira.

Muitos destes idosos também ocupam os tempos livres em passeios pela cidade e regressam à hora das refeições. Deste modo, mantêm-se integrados na sociedade e preservam os amigos.

CENTRO RENAL - Nos últimos anos, a Santa Casa da Misericórdia da Régua melhorou as suas instalações e os seus serviços. Várias obras foram levadas a cabo com o apoio da Segurança Social, nomeadamente a criação do lar de idosos e a melhoria das condições da sede. Algumas ações legadas por D. Antónia Adelaide Ferreira, conhecida como a "Ferreirinha" e que foi a grande benemérita desta casa, também contribuiram para o investimento.

Para além disso foi ainda construido um prédio de rendimento com dois pisos. No primeiro estão habitações alugadas a casais de idosos com maiores possibilidades financeiras. No rés-do-chão, a Santa casa da Misericórdia fundou um centro renal, inaugurado em Junho passado (1999). "Entendemos que a nossa função não se deve limitar ao apoio a jovens e idosos, mas também aos carenciados em termos de saúde" , explica João Pereira. Por enquanto, o centro renal está a funcionar parcialmente e apenas com doentes da região de Viseu., mas brevemente a população do distrito de Vila Real vai poder contar com este Centro para os seus tratamentos.

MELHORES CONDIÇÕES - Para os próximos tempos, a Santa casa da Misericórdia da Régua tem projetos cujo objetivo é a melhoria crescente das condições de trabalho e de quem aqui vive. Para as crianças está em vista a contratação de um animador desportivo e cultural, a construção de um parque infantil coberto no espaço exterior da casa e a criação de campos de mini-basquete, voleibol e andebol. Além disso, está em projeto a criação de uma biblioteca. Mas os projetos vão mais longe. Um dos edifícios desta casa, contíguo à sede, está a beneficiar da remodelação de todo o seu interior, com vista a melhorar as instalações. João Pereira explica que o edifício "já está velho e além disso as jovens internas, ali alojadas, não tinham privacidade, dormiam em quartos de oito". Quando as obras estiverem terminadas, vai haver um quarto para cada duas jovens, com casa-de-banho privativa, aquecimento e ar-condicionado. Com a remodelação deste edifício vão ser melhoradas também as instalações da secretaria, lavanderia, salão nobre, gabinete da provedoria, cozinha e sala de jantar.

Com o apoio do Instituto do Emprego e da Formação Profissional de Vila Real foi possível arrancar com uma ação destinada a auxiliares de educação das crianças. O primeiro módulo já se concluiu e está agora a decorrer outro até Junho do ano 2000. Estão 15 funcionários da Santa Casa da Misericórdia e cinco de outras instituições amigas e vizinhas a freqüentar esta ação de formação. Posteriormente, vai arrancar um outro módulo para as funcionárias que lidam com os idosos.
- In Villa Regula de Dezembro de 1999 - Texto de Olga Magalhães.

Nota - Face ao tempo passado desde a publicação desta reportagem, fatos, datas, pessoas e acontecimentos poderão ter-se sucedido e alterado. Assim pedimos vossa compreensão, porque o importante é levar ao mundo que a Régua, além do Marão, do vinho, do rio Douro, de suas belezas geográficas e seu povo trabalhador e hospitaleiro, também sabe educar e respeitar as crianças menos favorecidas e acolher e minimizar a solidão de seus idosos. Bem hajam todos que exercem alguma função na Santa Casa da Misericordia da Régua.
- J. Luis Gabão
(Clique nas imagens acima para ampliar. Transferência de arquivos dos sitios "Peso da Régua/Pemba" que serão desativados em breve)