quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

SAUDADE AFRICANA

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Onde está a África da minha saudade que conheci quando ainda não sabia que o futuro nunca é o que sonhamos?

África tão longe e tão longa que a recordação parece não ter contornos e o tempo passado permanece em cada dia que a mágoa nos aleija a alma. Acarto comigo um fardo de angústia que me isola no meio de muita gente, aquela solidão feita da repugnância do que se ouve e vê, da ingratidão que não se merece, da violência dos gestos e das palavras, da profanização sacralizada como se, na vida, só valesse o exponencial de todas as manhas.

É na invocação africana que se me diluem a podridão envolvente, a incapacidade da rotina, os olhares mal encarados, a indiferença das bocas fechadas.

Onde está a África dos meus clamores, das lágrimas escondidas nas sombras das noites de escuta?

África da surpresa por amigos esventrados, estendidos nas caixas dum Unimog ou de uma Berliet, e eu, com o seu fio de ouro nas mãos, sem articular uma frase, garganta presa pela afonia, estômago à beira do vómito, a fugir de ver o sangue e os rostos desfigurados, e os camuflados cheios do esterco da morte inglória, e as botas furadas pelos restos do chumbo, e o cérebro tomado por agulhas a picarem-me por todo o lado, por tudo que é corpo e consciência, e a olhar em meu redor sem uma luz na noite a ensinar-me o caminho, sem um som no fim da terra vermelha para me provocar o andar, sem (meu Deus!) uma esperança de que os mortos inocentes pudessem renascer para o meu convívio.

Onde está a África das cantinas no esconso da selva, das trovoadas e das chuvas apanhando-me nos descampados da savana, das queimadas fantasmagóricas nas noites despertas, perscrutando as curvas e os trilhos da traição, dos luares arrebatadores contemplados por entre os mosquiteiros já gastos pelo uso de muitos rostos, os uivos das hienas, atordoadas pelo cio e pela fome, arrepiando-me todo, acelerando o coração, alagando-me de suor, puxando a G-3, aconchegando o caqui, retesando os nervos com o dedo no gatilho?

Onde está a África das manhãs de maresia nas praias de todas as bandeiras azuis, sem ventos nem garrafões ou ossos de frango nas areias; praias tão quentes e tão finas que até parecia que um homem as pisava pela primeira vez, as suas águas tinham lábios de espuma que nos beijavam sempre em ternuras sem fim, corais como conchas vivas de um sonho irrepetível; palmares enormes como naves de catedrais góticas por onde o sol entrava, coado pelos vitrais da folhagem tão fresca, resplandecente e pura como a virgindade de uma criança?

Onde está a África das presunções fardadas, das madrinhas de guerra, das filmagens da Televisão com «um Feliz Natal e um Ano Novo cheio de propriedades», dos dias de São Vapor com cubas libres e «quem me dera regressar no Pátria!», dos calendários de mulatas nuas repletos de cruzes nos dias já passados, da obrigação de atravessar rios em almadias à procura de esconderijos de armas em ilhas paradisíacas, dos Postos Administrativos onde os sipaios nos deitavam sorrisos pepsodentes, dos funerais com danças de despedida e dos bifes de antílope a enfartaram barrigas vazias de tanta ração de combate?

Onde está a África das noites estreladas num céu tão belo e tão esmagador que dava vontade de ter asas para voar para a lua redonda como uma bola de cristal; noites de ritmos endiabrados, sensuais e espasmódicos, que o sangue fervia nas veias e rejubilava nas têmporas?

Quando o dia clareava e o fogo redondo subia na terra, um feitiço nos ludibriava com a ilusão de paz na vastidão da selva.
- Porto, M. Nogueira Borges - do livro "Lagar da Memória".
  • Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!

A catástrofe das Caldas do Moledo

Encontra-se publicado no Diário do Governo, em portaria de 12 de Março de 1904, o seguinte louvor: “SUA MAGESTADE El-Rei, a quem foram presentes as informações do governador Civil de Villa Real acerca do philantropico procedimento da Câmara Municipal do concelho do Peso da Regoa e dos humanitários e importantes serviços prestados pelos BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS da mesma villa por ocasião da catastrophe que em 10 de Fevereiro se deu na povoação do Moledo: há por bem determinar que seu REAL NOME, sejam conferidos pelo dito magistrado às mencionadas Câmara Municipal e CORPORAÇÃO DE BOMBEIROS os merecidos louvores”-Paço, em 10 de Março de 1904 -Ernesto Rodopho Hintze Ribeiro”.

Em 1904, o Rei D. Carlos concedia este louvor aos bombeiros da Régua como reconhecimento dos seus importantes serviços humanitários, prestados na missão de socorro, realizada no dia 10 de Fevereiro de 1904, nas Caldas do Moledo, numa catástrofe natural, que causou a morte a pelo menos 24 pessoas, que estavam alojadas numa casa da Quinta das Caldas, pertencente à família da D. Antónia Adelaide Ferreira, a Ferreirinha.

Esta catástrofe deu-se com o rebentamento de um tanque de recolha de água, situado em plena encosta, que tinha como finalidade recolher as águas que corriam pela vinha da quinta, donde se escoavam pelo vale até ao rio Douro. Nesse inverno de 1904, em Caldas do Moledo, as chuvas tinham sido abundantes e o tanque não resistiu à força das águas e desmoronou-se com as terras que o envolviam. As águas irromperam pela encosta a baixo, destruindo e arrastando o que encontravam pela frente. Arrancam, na sua passagem, os carris do caminho-de-ferro da linha do douro e destroem a casa construída na berma da estrada nacional. As pessoas que nela se abrigavam foram arrastadas com os destroços para o rio e, apesar das buscas, os seus corpos não foram nunca encontrados. Apenas se salvou uma criança – António Cardoso - devido à “mão de Deus” e à coragem do senhor Delfim de Sousa Mesquita.

Os bombeiros da Régua quando chegaram ao local, pouco tempo depois do sucedido, encontraram uma casa reduzida aos seus alicerces, completamente desfeita num amontoado de lamas e pedras. O seu auxílio foi remover terras e terras, nessa noite e nos dias seguintes, para recuperarem os corpos das pessoas. Nenhum foi sequer encontrado no meio dos destroços.

Na sua monografia sobre a história da Régua, Afonso Soares fez uma breve referência a esta tragédia das Caldas do Moledo. Assinalou-a como uma das mais graves em corpo de bombeiros que, ele era seu comandante (1893-1927), tinha socorrido. Não escreveu nenhum relato do que viu e assistiu, apenas se limitou a transcrever a acta da sessão da Câmara Municipal de 11 de Fevereiro de 1904, onde consta que vereação se preocupou com o desenrolar do acontecimento que enlutava a Régua e aproveitava para distinguir com a aprovação de um louvor a população reguense, os bombeiros e o Sr. Delfim de Sousa de Mesquita pelo “socorro às vitimas de tamanha calamidade”.

Passado mais de um século, a tragédia das Caldas do Moledo encontra-se caída no esquecimento e apagada na memória das actuais gerações. Naquele vale do Tinoco, a vida continuou o seu ciclo, tudo se foi reconstruindo com esperança no futuro: edificaram a casa desaparecida e o tanque no mesmo lugar – é verdade - a linha de água mantém o seu curso normal, retomou-se o cultivo da vinha e a produção de bons vinhos na quinta, as velhas termas edificadas no parque de plátanos, afamadas pelo clima ameno e seco e a curas das suas águas sulfúreas, adquiriam maior movimento com a abertura do hotel, erguido pelo génio da Ferreirinha.

O tempo fez voltar tudo à normalidade, mas até hoje ninguém se lembrou de, nesse lugar das Caldas do Moledo, gravar numa parede uma simples placa a evocar as vítimas que perderam a vida nessa tragédia.

Apenas a literatura de cordel a fez lembrar a sua fatalidade cantada numa poesia que o povo conhecia pelo “Grande desastre acontecido nas Caldas do Moledo”, de Agostinho da Silva Pereira. Numa linguagem comum e com um sentimento religioso foi lembrada assim:

“Foi nas Caldas do Moledo/Aquele depósito arrebentou/Ali tudo se arrazou/ Causa pena mete medo/Ali tiveram o seu enterro/Vejam o poder do Senhor/ Que ali ficaram sepultados/Causa pena mete terror/(…) Só naquele próprio menino/Num berço a dormir foi encontrado/Sobre aquele rio tão valente/ Por os barqueiros foi apanhado/Foi um milagre que Deus mostrou nele devemos pensar/ Esta grande calamidade/Que se vai vendo na nossa nação/Sem ninguém isto esperar/Aquele depósito arrebentou/Dos que andavam a trabalhar/ A vida lhe acabou”.

Uns anos mais tarde, Afonso Soares, velho comandante dos bombeiros já no Quadro de Honra, recordou no jornal “A Região Duriense”, num texto intitulado o “Desastre das Caldas do Moledo”. Como o seu texto não é conhecido pelos entendidos na gestão dos território e pelos agentes da protecção civil, faz-se de imediato a sua transcrição:

“Na noite de 10 de Fevereiro de 1904 uma pavorosa catástrofe enlutava o concelho do Peso da Régua. O rio Douro tinha subido muito e a chuva continuava caindo dia e noite. Na quinta das Caldas do Moledo, pertencente à falecida Sr.ª D. Antónia Adelaide Ferreira, havia acima da linha férrea que atravessava a quinta, um grande tanque construído na divisória dos dois concelhos - Régua e Mesão - Frio. Essa divisão fazia-se e faz-se no vale do Tinoco que na estrada que vai para o Porto tem o marco da divisão concelhia.

Do lado esquerdo desse vale havia uma casa de arrumações pertencente à quinta, com frente para a estrada. Do lado oposto duas moradas de casas que recebiam hóspedes. Nesta casa tinham sido recebidos 24 hóspedes, vindo de fora que ali pernoitavam, fugindo à tempestade.

Naquele pequeno vale a que nos referimos, corria, de vez em quando, água vinda das encostas da montanha. O leito do regato comunicava na altura do tanque com ele e depois de cheio restabelecia-se a saída pelo vale. O tanque estava cheio há muito tempo pois que a chuva fora persistente. Às nove horas e meia daquela noite um enorme estampido sobressalta toda a povoação das Caldas do Moledo.

A parede da frente do depósito tinha cedido e aquela avalanche de água ali represa, salta por ali fora, desenfreada, e apesar de encontrar na sua frente uma baixa grande fechada pela linha férrea, que passava em frente, desfaz o talude do caminho de ferro, arranca rails que retorce e leva diante de si, e cai sobre a casa da quinta, cortando-a ao meio, destruindo a parte mais próxima do vale e precipita-se depois sobre as duas casas fronteiras que apara, como se fosse uma navalha de barba, deixando-lhes apenas os alicerces. Precipita casas com tudo o que tinham na corrente do rio que tudo engoliu, incluindo a vida de 24 pessoas que ali se tinham recolhido e cuja identidade nunca se averiguou, pelo desaparecimento dos cadáveres.

Foi esta tragédia que naquela terrível noite se desenvolveu na povoação das Caldas do Moledo. Chamados os socorros para esta vila, daqui partiu muita gente a prestar os seus serviços numa noite tempestuosa que tornava o trânsito impossível pela estrada. Não faltaram nem podiam faltar a esta chamada os nossos bombeiros que, sem hesitação, para aquela povoação partiram imediatamente”.

A notícia escrita por Afonso Soares, apesar do tempo passado, não podia estar mais actual. Assim, a catástrofe das Caldas do Moledo pode e deve, nos nossos dias, ser entendida como uma boa lição para valorizar mais as matérias de protecção da natureza que, violentadas por incúria e negligência humana, causam quase sempre problemas de segurança e protecção civil às populações.

As condições naturais da paisagem duriense associadas a alterações provocadas pelo homem – como a surgida nas Caldas do Moledo - podem aceleram ou desencadear catástrofes naturais. Só se evitam os infortúnios se houver mais rigor e cuidado nos licenciamentos de obras e construções que se fazem nas encostas do Douro. É importante conhecer a orografia da região duriense e a constituição geológica dos seus solos.
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Em tempos de invernos chuvosos são flagrantes as possibilidades de repetirem, com maior violência, estes fenómenos chamados de “movimentos de vertente”, os perigosos deslizamentos de terras, destruidores de tudo em sua volta e causadores da morte de muitas pessoas, sempre indefesas nestas tragédias.
- Peso da Régua, Fevereiro de 2010, J. A. Almeida.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

A Carta dos Bombeiros Voluntários Lisboneses

Ao vasculharmos os arquivos da nossa Associação não nos passou despercebida uma carta enviada pelo Comandante Tenente José Francisco França de Sousa, dos Bombeiros Voluntários Lisboneses, em 1966, ao director do jornal “Vida por Vida”, órgão oficial da AHBV do Peso da Régua.

Como, quando lhe chegou às mãos, essa carta não passou também despercebida ao Dr. Camilo de Araújo Correia, a quem fora amavelmente dirigida, que lhe reconheceu valor e interesse histórico para a divulgar nas colunas da primeira página do jornal.

Na edição de Janeiro de 1966, com o sugestivo título “Bombeiros Voluntários Lisbonenses” é feita a transcrição integral dessa carta. E, numa pequena nota introdutória, muito pessoal e ao seu jeito e estilo, o director - ilustre médico e escritor infelizmente já falecido - lembrou que, pela satisfação que a tinha recebido, não resistia a tentação – assim mesmo – de a publicar.

Os bombeiros da Régua são pioneiros a estabelecer relações institucionais com as associações congéneres. Faz parte dos genes da sua fundação. Entenderam desde os seus primórdios, que se tornava necessário conhecer o que se fazia de mais avançado nas associações mais preparadas e capazes e para conhecerem as novidades no combate aos fogos e no socorro às populações.

O jornal dos bombeiros da Régua, fundado em 1957, foi um elo de ligação aos bombeiros do país. Serviu para mostrar o trabalho de uma geração de homens que lutou com paixão para manter, com a ajuda de muitos beneméritos – os primeiros mecenas - o associativismo mais activo e um corpo bombeiros melhor preparado para responder às exigências do socorro às suas populações.

Se, no passado recente, existiram contactos dos Bombeiros da Régua com os Bombeiros Voluntários Lisbonenses, o mais certo é terem acontecido em encontros entre os seus directores e seus comandantes. Leva a crer que os comandantes se terão conhecido numa das muitas reuniões ou congressos de bombeiros, para discutirem as preocupações e aspirações do sector, onde teriam participado em nome das suas associações.

Na Régua, o Comandante Cardoso (1959-1990) fazia questão em participar nos debates que iam acontecendo pelo país sobre os desafios que os bombeiros voluntários tinham pela frente, como a definição de regras ordenamento da sua actividade e a afirmação do associativismo no seio da sociedade de que emerge.
Em 1968, os bombeiros da Régua participaram no congresso que teve lugar na cidade de Lisboa. A direcção da Associação, presidida pelo Eng. Abel Osório de Almeida (1966-67) e o Comandante Cardoso mandaram imprimir um folheto para oferecem nessa assembleia magna. Começavam com esta mensagem de saudação: “Os BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS DO PESO DA RÉGUA, saúdam com amizade todos os camaradas portugueses presentes como nós neste XVIII Congresso Nacional, e fazem votos por que os seus anseios e as suas pretensões venham a ser estudadas para bem da Causa que servirmos, o mesmo que dizer para bem de Portugal”. Aproveitavam, nas restantes páginas do folheto, para divulgar, com muito saudável bairrismo, os meios e os objectivos da Associação e para promover a região do Douro - como escreviam única no Mundo - e o seu principal produto, a sua primordial fonte de recursos, o “Vinho do Porto - Orgulho de Portugal”.
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A carta do Comandante Tenente França de Sousa é um precioso testemunho para a história dos bombeiros da Régua. a importância da Associação, reconhecida pelo seu progresso e crescente prestígio, presta uma homenagem ao seu valoroso corpo de bombeiros da década de 60 e faz um enaltecimento da figura do seu Comandante Cardoso, conhecido por viver os problemas da sua corporação como se fossem parte integrante da sua vida.

Esta carta é também uma prova que mostrar que “nesta cruzada de Coragem, Abnegação e Humanidade, também há ainda lugar para radicar e vincar amizades entre todos aqueles que sabe viver e compreender a missão a que devotamente nos entregamos”, como expressava o director do “Vida por Vida”.

Apesar das distâncias que separam as duas corporações, os bombeiros não deixam de comungar os mesmos valores de fraternidade e solidariedade.

As palavras de gratidão do Comandante Tenente França de Sousa, servidor leal e competente, que deixou marcas indeléveis nos Bombeiros Voluntários Lisboneses e na sua prestigiada Associação, este ano a comemorar o seu centenário, podem servir de motivo para aproximar as duas instituições, cheias de glorioso passado, numa união de vontades e de partilha dos novos desafios exigidos ao voluntariado do séc. XXI.

Não queremos deixar esquecida a carta do Comandante Tenente França de Sousa que deve ser relida com a devida atenção, pelo que a melhor homenagem lhe prestamos, agradecendo o seu nobre gesto, é de voltar a fazer na íntegra a sua transcrição:

“Exmo Senhor
Director do Jornal “Vida por Vida”:

Apresentando os meus mais sinceros cumprimentos a V. Exª, venho gostosamente saldar uma dupla dívida, que desde alguns meses tinha para convosco.

A primeira, de agradecer o envio mensal do vosso jornal “Vida por Vida” para esta Corporação da Capital, que dista algumas centenas de quilómetros da vossa, atitude que sinceramente, tanto a mim, como aos 80 homens do meu Corpo Activo bem funda ficou gravada nos nossos corações e, que embora com o pouco contacto que tem existido entre estas duas corporações, me permite afirmar que é a única compreensível entre Soldados da Paz!

A outra dívida que tinha para convosco, é de agora lhe confessar quanto me satisfaz e aprecio verificar através do vosso jornal, como a Vossa Associação está em progresso e grande prestígio que ela tem dentro dos meios ligados à causa do Voluntariado, situação atingida mercê da acção dinâmica dos seus Corpos Gerentes e da muita dedicação dos seus valorosos elementos do Corpo Activo bem comandados por um comando que vive os seus problemas da sua Corporação, fazendo dela parte integrante da sua vida.

Para a briosa corporação nortenha do Peso da Régua, vai o meu apreço e abraço amigo dos vossos camaradas “Lisbonenses”, na certeza, que embora distantes, aqui sentiremos igualmente as vossas horas más que possam surgir, regozijaremos como os vossos momentos de esplendor, com as vossas alegrias, saudando pelo vosso progresso!

Com os meus melhores cumprimentos, sou de V. Exª”.

Quantas vezes mais lemos esta carta, sentimos que o Comandante Tenente França de Sousa nos emociona e faz sentir mais orgulho pelo passado feito por muitas gerações de bombeiros e dirigentes, sempre motivados e com uma única preocupação, a elevar sempre o prestígio da Associação, seguindo os ideais consagrados pelo primeiro dos fundadores, o brioso Comandante Manuel Maria de Magalhães (1880-1892).
- Peso da Régua, Fevereiro de 2010, J. A. Almeida.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

O último discurso do Comandante Cardoso

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Durante a sessão solene do 119º aniversário da AHBV do Peso da Régua, que ocorreu no dia 28 de Novembro de 1999, o Comandante Cardoso (1959-1990) recebia a condecoração máxima da Liga dos Bombeiros Portugueses, o Crachá de Ouro.

A estrutura nacional dos bombeiros portugueses reconhecia-lhe o mérito pessoal e profissional, ao longo de 31 anos ao comando dos bombeiros da Régua, depois de ter recebido a Medalha de Prata de Mérito Municipal, em 1984, na passagem dos seus 25 anos de serviço nos bombeiros reguenses.

Na sua homenagem de despedida, com a passagem ao quadro de honra, realizada em 1990, o Eng. Álvaro Mota, propôs à Câmara Municipal a que presidia a atribuição da Medalha de Honra da Régua. Por razões que ninguém entendeu, essa distinção foi-lhe negada pela maioria dos vereadores. Perdiam a oportunidade de agradecer a um homem que tanto serviu e honrou a terra onde nasceu, trabalhou, viveu e veio a morreu.

Num artigo de opinião, o Dr. Alcides Sequeira registou a flagrante injustiça dos políticos para com o Comandante Cardoso. Era esse o sentimento de quem conhecia o lamentável sucedido, até hoje nunca corrigido. Observava e lamentava esta incompreensão, dizendo que o Comandante Cardoso teve uma homenagem merecida mas incompleta, por esta simples razão: “se a população da Régua soube agradecer-lhe os seus desinteressados serviços, a Câmara Municipal não correspondeu do mesmo modo”.

Enaltecia-lhe o ilustre causídico o seu carácter humano desta maneira: “Há homens e …homens! Há homens que olham predominante para a sua própria pessoa. São egoístas, os narcisados, aqueles que se revêem nos seus méritos, mas que os não têm e, por isso, são considerados seres …inferiores.

Há, porém, homens que só se sentem bem a praticar o bem, que trabalham para todos os outros homens, com dedicação e com o intuito de serem úteis ao corpo social em que se integram!

E quando o trabalho deles é gratuito, este desapego deixa de ser dedicação para passar a ser devoção.

Está neste último caso Carlos Cardoso dos Santos, o ex-comandante da benemérita Corporação dos Bombeiros Voluntários da Régua!”.

A ele, o caso, nem o afectou nem o diminuiu perante os seus concidadãos, que continuaram a reconhecê-lo como um homem de raras qualidades, que não trabalhou para homenagens ou benesses. Sem nunca o ouvirmos queixar-se, a desconsideração entristeceu-o. A sua vida tinha sido dedicada aos bombeiros por paixão. A simplicidade e a modéstia foram uma constante na sua vida, orientada por altos valores morais. Sabia que tinha cumprido uma missão com altruísmo. Os afectos da esposa, D. Cândida Cunha, dos familiares mais próximos e dos velhos amigos deram-lhe sempre força para viver e ser feliz.

A atribuição do Crachá de Ouro foi uma proposta da direcção presidida por José Alfredo Almeida (1998) e do comando. Mereceu o apoio incondicional de Rodrigo Félix, também seu amigo e admirador, presidente da direcção da Federação dos Bombeiros de Vila Real, que considerava o Comandante Cardoso como um dos melhores do seu tempo.

Com regozijo pela notícia da atribuição desta condecoração, o Dr. Camilo de Araújo Correia numa crónica intitulada “Um dia, nome de rua”, publicada no “Jornal de Matosinhos”, em 17 de Março de 2000, reconhecia-lhe os elevados méritos e concedia-lhe um magnífico louvor:

“A notícia da atribuição do Crachá de Ouro ao Comandante Carlos Cardoso dos Santos, por parte do Conselho Executivo da Liga dos Bombeiros Portugueses, não me surpreendeu. Teve, sim, o condão de me comover, ao ponto de cerrar os olhos por uns instantes. Instantes que chegaram para recordar 45 anos de amistosa relação com o Senhor Carlos Cardoso dos Santos.

(…)

Não conheci tão de perto o mérito do senhor Carlos Cardoso dos Santos, como devotado Comandante dos Voluntários da Régua. Mas como reguense, atento e orgulhoso dos seus Bombeiros, posso testemunhar que nunca a nossa Corporação conheceu tão áureo período de eficiência, disciplina, diplomacia e expressão humanitária.

A Liga dos Bombeiros Portugueses deixa na honrosa farda do senhor Carlos Cardoso dos Santos um crachá de ouro. Cada reguense, ao abraçá-lo, lhe deixa no peito um crachá de fraternidade e gratidão”.

Este testemunho insuspeito, por sinal de alguém que também foi presidente de direcção da associação, revela o valor do Comandante Cardoso. Conhecemos, por estes e mais depoimentos, o que tantos pensaram sobre ele. Só que pouco sabemos do que ele próprio pensou desta sua missão. Assim, como temos em mão o seu discurso manuscrito que leu na cerimónia a agradecer a distinção da Liga dos Bombeiros Portugueses, faz todo o sentido transcrevê-lo na íntegra:

“Cerca de dez anos volvidos depois da minha passagem ao quadro honorário do Corpo de Bombeiros desta Associação, sou surpreendido com a atribuição do mais alto galardão que a Liga dos Bombeiros Portugueses concede aos homens e mulheres merecedores de tal distinção.

Mas a mim, velho comandante que serviu activamente mais de 30 anos, nunca considerei a Liga devedora desta insígnia.

Quem me conhece, sabe que nos diversos cargos que desempenhei em instituições da nossa terra, nunca procurei obter homenagens ou benesses. Tive sempre a preocupação de me referir no plural às realizações levadas a cabo por essas instituições. Parece-me que nunca disse: eu, só pelo facto de ser comandante ou ser presidente. Tinha cuidado de sempre dizer: nós.

Mas aconteceu que durante o meu comando se passaram factos que serão eternos marcos no historial dos bombeiros da Régua e projectaram a associação por este país fora.

Iniciou-se o reequipamento do Corpo Activo, realizou-se a ampliação do quartel-sede, construiu-se um bairro de 36 habitações, celebrou-se com brilhantismo o centenário da fundação da Associação e a Régua foi sede do 24º Congresso Nacional dos Bombeiros Portugueses, onde se tomaram decisões que se repercutiram nos congressos seguintes.

No mês de Setembro de 1980, a Régua foi o centro das atenções do país, com o decurso de quatro dias festivos e onde se realizou uma das maiores concentrações de bombeiros de Portugal.

Até no aspecto operacional surgem no meu comando duas periódicas catástrofes que mau grado todos os esforços oficiais envolvidos ainda não se conseguiram debelar: as cheias no rio Douro e os fogos florestais.

As cheias iniciam-se, com a maior até ao presente, em 1962. A última aconteceu em 1990. Até quando?

Os fogos florestais começam também a deflagrar naquela data. A acção dos bombeiros não se poupa a sacrifícios – até de vidas – e o governo equipa o melhor possível os respectivos corpos de bombeiros mas a luta tem sido desigual. Quando terminará este flagelo?

Em todos os factos que referi fui constantemente parte activa na sua organização e execução e foi sempre minha, com a colaboração dos mais graduados, a direcção de todas as acções dos nossos gloriosos e heróicos bombeiros.

Cumpri dentro das minhas capacidades uma missão que arrebata e empolga quem a desempenha. Testemunho desta afirmação são estes homens bombeiros aqui presentes que se transformam, ao frémito da sirene ao seu chamamento, acorrem céleres e ansiosos no seu cem por um, segundo lhes ocorrer o perigo a que poderão ser sujeitos para salvar.

Como afirmei, a Liga dos Bombeiros Portugueses nada me devia. Nem tão pouco a nossa Associação. Desempenhei funções. Cumpri e quando a idade e motivos de saúde me aconselharam, solicitei passagem ao quadro honorário. Venci a dor deste gesto, mantinha a saudade serena, que está a ser acordada dolorosamente com a concessão deste galardão.

Não vou cometer a estultícia de o recusar agora, porque, apesar de tantas e gratas recordações que desperta, é para mim uma grande honra e motivo de orgulho ser possuidor desta bela insígnia.

Muito obrigado. Vivam os bombeiros da Régua”.

O Comandante Cardoso entendeu não escrever as suas memórias. Se o fizesse ter-nos-ia legado informações preciosas de três décadas de história da Associação e do Corpo de Bombeiros, essenciais para se compreender a vocação do voluntário na Régua, os planos de reequipamento com material e carros de socorro, os apoios dos beneméritos, os modelos de formação e a evolução do movimento associativo e da estrutura operacional.

Apenas deixou escrito este testemunho, um resumido balanço dos objectivos conseguidos nos seus anos de comando. Ao mesmo tempo, revelou-nos a sua personalidade reservada e humilde, que o fez um homem admirado, mesmo por quem dele não tenha gostado, um brilhante comandante dos bombeiros.

Como escreveu o Dr. Duarte Caldeira, no prefácio para o livro da sua biografia - “O Comandante Carlos Cardoso” (2009), do Prof. Damas da Silva, é “um cidadão de medida grande”.
- Peso da Régua, Fevereiro de 2010, J. A. Almeida.