sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

No regresso de Porto Amélia

“A verdadeira generosidade para com o futuro consiste em dar tudo ao presente” - Albert Camus.

Contava com humor fino, numa das suas deliciosas crónicas que publicava no jornal “O Arrais”, que é certo que neste mundo é que elas se pagam…que Deus, na sua finita ironia, o tinha acabado por fazer bombeiro, tendo vindo a ser Presidente da Direcção da AHBV do Peso da Régua (1964-1965) por entusiasmo e crédito de um punhado de amigos.

Estamos a evocar, para quem não teve a sorte de o conhecer de perto, o Dr. Camilo de Araújo Correia. Quem foi ou é leitor das suas fantásticas crónicas, sabe que tinha por hábito historiar episódios passados ou observados ao longo da sua vida.

Pela sua passagem nos bombeiros da Régua deixou-nos interessantes e antológicas memórias que permitem perceber a sua paixão pelos soldados da paz remonta ao tempo da infância ou, como ele diz, à idade dos seus primeiros raciocínios. Desde então, passou a admirar-lhe as suas fardas, o seu esforçado trabalho e, de nas suas histórias, contar casos de pitorescos bombeiros, o que permite reconstituir os seus passos até chegar aos destinos da presidência da prestigiada e secular associação.

A sua primeira entrada no quartel dos bombeiros deveu-se ao Dr. Júlio Vilela e a Alfredo Baptista que o convidaram dirigir a redacção de um pequeno jornal, o “Vida por Vida”. Aceite o desafio, o seu nome apareceu no cabeçalho do título e, no dia 1 Agosto de 1956, começava a regular publicação deste órgão oficial da associação.

Cumpriu religiosamente até meados de 1961 a árdua tarefa de pôr, mensalmente, o jornalzinho dos bombeiros na rua, ao encontro dos associados e dos leitores que soube conquistar. Com colaboradores como o escritor João de Araújo Correia, seu pai, conseguiu conquistar a simpatia e o agrado. O jornal ganhou raízes, reconhecimentos e justas condecorações. Alcançou em pouco tempo um sucesso editorial inédito. Mas, uma mobilização para cumprir serviço militar no Hospital Militar 338, de Porto Amélia, em Moçambique, obrigava-o a deixar a direcção do jornal por algum tempo.

Na hora da partida, o “Vida por Vida” fazia a notícia “com mágoa e júbilo”. Dava conhecimento que eram os “altos deveres que cada cidadão tem com a sua pátria.”. Lamentava que “não são só os bombeiros a sentir a sua falta” mas era a própria terá que lhe servia de berço “que ficava a sentir uma vaga que dificilmente preenche”. Concluía o seu autor, à boa maneira transmontana, com um voto de “boa sorte, Dr. Camilo e até breve. Nós não o esquecemos e todos os meses lhe batemos à porta com o Vida por Vida.”

Assim aconteceu, nos dois anos e meio seguintes, o tempo em que esteve destacado, o jornal “Vida por Vida” passou a ser enviado para a sua residência militar, em Porto Amélia, quase como uma garantia que os laços à terra e aos bombeiros nunca se perderiam.

Os laços afectivos não se perderam como até se fortificaram. Ele fazia questão em manter as suas amizades que deixará nos bombeiros. Lembrava os velhos amigos e não deixava de se corresponder por cara com os mais chegados. Estes quando tinham motivos, por mais pessoais que fossem, faziam questão em noticiá-los nas páginas do jornal. Convencidos da sua importância, não deixaram de publicar em forma notícia, os elogios de um louvor atribuído pelo General Comandante da Região Militar, a distinguir-lhe as suas funções como médico e o seu carácter humano.
Alguns tempos antes de acabar a mobilização militar, os amigos tudo fizeram para que aceitasse presidir à direcção da associação dos bombeiros. A prematura morte do Dr. Júlio Vilela (1964) deixara um enorme vazio, como o seu estatuto social e dinamismo, não se encontrava no meio alguém que o pudesse substituir. Fizeram-lhe o pedido e convenceram-no a dar o seu consentimento. O resto que havia a fazer, concluíram à sua maneira e de acordo com os estatutos, convocando a realização das eleições para os órgãos sociais. Como não se apresentaram candidaturas concorrentes, os resultados não tiveram influência. Apenas, tiveram de contar os dias para o seu desejado regresso à Régua.

Em 4 de Julho de 1963, escrevia uma carta ao seu amigo Alfredo Baptista, reguense apaixonado e influente director dos bombeiros, a dar resposta às amostras do muito apreço que lhe faziam manifestar. Estando para breve o seu regresso, os amigos elaboravam planos para o receber num ambiente de honras militares. Esta proposta era compreensível na largueza da amizade, mas era pouco recomendável para agradar a sua maneira de ser. Sem nenhuma hesitação, de imediato, e ainda à distância, recusou-as com palavras elegantes e de fina ironia.

Há muito perdida nos arquivos, entre os bolorentos relatórios de contas e orçamentos de contas apertadas às necessidades de cada ocasião, encontrava-se uma sua carta, manuscrita numa caligrafia inconfundível, que pelo assunto versado é digna de ser desvenda. Essas suas palavras vão fazer sorrir e pactuar com a sua atitude.
Convenceu e desmobilizou os amigos com uma grande simplicidade. Assim mesmo:

“Meu Caro Baptista: Muito me sensibiliza a vossa ideia de me receberem com honras militares…mas não poso aceitá-las. Imediatamente a seguir ao pousar da mobília em Lisboa me transformo no pobre médico da Régua… que sou! As melhores honras que me podem prestar serão as manifestações de alegria pessoal de cada um ao encontrarem-me como um homem da rua…De mim terão todos a continuação de uma grande estima. Vim aqui conhecer todos os ambientes de bairrismo… Sou pela Régua como muito tipos são pelo Salgueiros! As grandes distâncias dão destas doenças…

Um grande abraço do seu velho e certo amigo Camilo.

PS - Mais lhe agradeço que faça uma distribuição de abraços a todos os amigos.”

Dito e feito, os amigos desistiram de lhe fazer as honras militares. A sua opinião não mereceu desrespeito. Ficaram então de organizar uma excursão com os carros dos bombeiros, para o irem esperar a Coimbra. De maneira arrebatada e comovida conseguiram mostrar-lhe uma especial dedicação e amizade, reforçada pelo tempo da sua ausência.

As marcas do reencontro não mais se lhe apagaram das suas memórias. Estas não se fixavam em glórias ou brilhos pessoais. A sua primazia era para os elementos pitorescos, humorísticos e humanos que se sucediam no seu dia a dia. Sem nunca o dizer, ele era naquele momento o presidente de direcção dos bombeiros da Régua. Faltava-lhe apenas tomar posse no cargo, o que aconteceria no dia 12 de Agosto de 1964.

A cerimónia da posse, reconhecendo-a como importante, não a valorizou em demasiada. Assumiu o cargo como um exercício natural de cidadania e com uma preocupação de não ter tempo que a medicina lhe absorvia. Adivinhava-se que na cerimónia da posse, a posse como presidente da direcção dos bombeiros, não fosse um dos momento da sua vida escolhido para ser evocado na cerimónia de uma homenagem promovida, em Julho de 2007, pela Câmara Municipal da Régua.

No majestoso Salão Nobre da Casa do Douro, depois de recordar as muitas voltas e reviravoltas do seu labor de médico e escritor nas horas vagas, foi buscar ao museu das sua memórias, com ternura e indisfarçado humor, o episódio da recepção amistosa dos bombeiros, a meio da sua longa viagem de regresso à Régua.

Do seu belo discurso de agradecimento, mais tarde publicado no jornal “O Arrais”, com o metafórico título “De flor ao peito”, destacamos essa inesquecível passagem:

“Já depois de escrever estas linhas me saltou na memória um episódio que não resisto a contar, nesta hora de fraternidade entre os reguenses.

Faz este Maio 43 anos que regressei de Moçambique, depois de cumprir dois alargados anos de mobilização. Foram de grande reconforto os abraços, beijos e as mil perguntas dos familiares que me foram esperar ao barco que me trouxe.

Não menos reconfortante foi a surpresa que um grupo dos nossos bombeiros me fez, indo me esperar a Coimbra. Foram tão calosos os nossos abraços, que nunca me pareceram tão reluzentes os metais e tão vermelho o carro que os levou. Era, tão efusivos os seus cumprimentos de boas-vindas que cheguei a recear que tocasse a sirene.

Os carros da família e dos bombeiros logo organizaram uma pequena caravana que veio por aí acima, a contar as curvas e as contracurvas de uma estrada do princípio de Portugal.

Entre Moimenta e Lamego, novo e simpático encontro me surpreendeu num dos trechos mais ermos da estrada, esperavam-me um grupo de funcionários do nosso Hospital, onde sobressaíam duas freiras de hábitos a esvoaçar. Por momentos, senti que estava a Régua toda.

Afinal, o ermo em que se deu este encontro, não era assim tão ermo. Quando nos dispúnhamos a partir, demos conta de um homem a gatinhar pelo talude da estrada. Mal Chegou acima, tirou o chapéu, limpou a testa e perguntou espavorido:

-O que foi?!!...O que foi?!!...

Partimos, depois de o sossegarmos com uma breve explicação. O homem lá ficou na beira da estrada, a rodar o chapéu encardido nas mãos que nunca perdem o jeito da enxada.

Apesar de conhecer bem as razões das honrosas presenças neste sempre acolhedor Salão Nobre da Casa do Douro, não resisto a imitar o cavador da estrada de Moimenta:

-O que foi?!!...O que foi?!!...”

Como o seu sentido de humor sempre presente, fez para os presentes, na grande maioria seus velhos amigos, um pequeno esboço do seu auto-retrato. As honras e as homenagens eram o menos importante, não cabiam na dimensão da sua generosidade e no seu feitio humilde, de todo igual à simplicidade do pobre cavador, que o fez sentir-se um homem realizado e feliz até ao fim da vida.

A tempo, a Régua soube agradecer-lhe pelo que fez como médico que tratou e salvou vidas, como escritor de magistrais crónicas, contos e memórias de grandes momentos do Douro, a região demarcada, o rio antes e depois de ser navegável, os seus queridos barcos rabelos em viagens reais e imaginadas com o velho arrais Passarada ao leme, e como um cidadão que serviu voluntariamente a mais nobre das causas humanitárias.

Os bombeiros da Régua, podem dizer com orgulho, que foi um deles, mesmo sem apagar fogos…! Esteja onde estiver, junto Deus, só pode estar acompanhado dos seus velhos amigos bombeiros e dos heróicos e ilustres comandantes, consagrados pelos ideais do altruísmo, caminhando entre o infinito azul e a luz da Eternidade.

No caso de voltarem a precisar da sua ajuda, os bombeiros sabem que responderá imediatamente: -Presente!
- Peso da Régua, Janeiro de 2010, J. A. Almeida.
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sábado, 23 de janeiro de 2010

O jornal “Vida por Vida”

Começava a 1 de Agosto de 1956: “Aqui tem o primeiro número do boletim dos Bombeiros da Régua. A ideia de o realizar vem sendo amadurecida há longos meses para que, uma vez saído do prelo não viéssemos a arrepender do seu carácter. Ao princípio era nosso intento fazer dele apenas um mensageiro das actividades da corporação junto dos sócios. Mas, pensando melhor, concluímos que a escassez do assunto viria fatalmente transformá-lo em publicação monótona. (…) Tomando neste aspecto, o Boletim apenas dará vulto aos acontecimentos que dele necessitem para beneficio da Régua, reflectindo-os sem os desvirtuar. Desta maneira, não haverá espaço para tribunas alheias ao aspecto que vimos focando. (…) incluiremos sempre que seja, possível uma página de sabor literário. Um conto, uma crónica ou uma biografia, jamais estragaram um serão…”

Eram estas as primeiras palavras do editorial, intitulado “Certidão de Nascimento”, do número um do jornal “Vida por Vida”, que nesse ano passava a ser publicado como o órgão oficial da AHBV do Peso da Régua, com o objectivo de servir de elo de ligação dos bombeiros aos seus associados e benfeitores.

Teve como primeiro director o Dr. Camilo de Araújo Correia. Depois dele, por se ter retirado pelos seus afazeres de médico, seguiram-lhe nessa função o Dr. Júlio Vilela, Alfredo Baptista, Dr. Vieira de Castro e o Dr. Aires Querubim Meneses.

O seu aparecimento deve-se a uma ideia de Alfredo Baptista, dinâmico e empenhado director, que exerceu vários cargos na Direcção liderada pelo Dr. Júlio Vilela. A ele se deve a ideia e, sobretudo, o muito trabalho para que o jornal vingasse nos seus primeiros anos de vida. Publicou-se entre 1956 e 1974. Tinha distribuição gratuita entre os associados, amigos e benfeitores e todas as associações humanitárias de bombeiros a nível nacional.

Ao longo de 18 anos, o “Vida por Vida” saía uma vez por mês e, em momentos especiais, fez suplementos de assuntos importantes. Era composto e impresso nas oficinas gráficas da Imprensa do Douro.

Teve uma longevidade ainda razoável parta as dificuldades que atravessou. Apenas as circunstâncias históricas impediram-no de atingir a maturidade. Mas, em vida criou fortes raízes na massa associativa, benfeitores e admiradores. Sendo os seus responsáveis amadores, foi graças ao seu esforço e sacrifício que, conhecendo a realidade, conseguiram ter uma vitória sobre o tempo. Se em cada ano saíam doze números do “Vida por Vida” em cada número venciam as dificuldades sem número. Além de que, os textos publicados tinham de ser visados previamente pela censura.

No terceiro aniversário do jornal, o director resumia o seu bom estado, ao dizer de forma humorada que “nascido de um sonho, tem sido este jornalzinho uma espécie de filho enfermiço de quantos o amparam. Da sua educação se encarregam desinteressadamente os colaboradores, com as suas roupas de menino pobre, mas limpinho, sem tem preocupado o brio dos tipógrafos; comerciantes e beneméritos têm conseguido todos os meses dar-lhe força para sair à rua”. Com este espírito de missão e colaboração a saída do jornal era bem sucedida.

Não admira que o “Vida por Vida” tenha sido um dos boletins que prestava melhor informação sobre a actividade dos bombeiros e da causa do voluntariado. Nas suas quatro páginas, tratavam-se de assuntos de interesse nacional, destacam-se as orientações dos congressos, as festas dos aniversários, as obras no quartel, a aquisição de novos equipamentos, a ocorrências dos sinistros mais graves e as cheias no rio Douro, e de assuntos de carácter técnico. Havia ainda lugar para os assuntos citadinos e para as crónicas e histórias literárias. Tinha vários e prestigiados colaboradores, como Dr. Manuel Braz Magalhães, os jornalistas Rogério Reis e Manuel António, os escritores João Bigotte Chorão e Cruz Malpique, o poeta Adolfo Leitão, o Comandante Carlos Cardoso, Manuel Montezinho, António Rodrigues Coutinho, Alberto Valente, Manuel Blanco Pires, Prof. Eurico Patrício e muitos mais.

Entre essa plêiade de nomes, salientava-se o médico e grande escritor reguense João de Araújo Correia. A secção literária era quase da sua responsabilidade. Escrevia a “Enfermaria do Idioma” para ensinar o uso correcto da língua portuguesa, que assinava com o pseudónimo de Constâncio de Carvalho e as deliciosas crónicas, sobre diversos temas da vida e da história local, mais tarde editadas no livro”Pátria Pequena”.

O escritor duriense na introdução ao seu livro, publicado pela Imprensa do Douro, em 1977, não esqueceu a importância do “Vida por Vida”, ao lembrar a tristeza que sentiu com o seu desaparecimento:

“As notas que constituem este livro foram publicadas quase todas sem o meu nome no boletim Vida por Vida.


Mas que é lá isso do boletim Vida por Vida? Responderei a esta pergunta, que o menos curioso das letras me faça, dizendo que o boletim Vida por Vida foi órgão da quase secular Associação Humanitária dos Bombeiros do Peso da Régua.


Publicou-se entre 1956 e 1974 Depois, deu-lhe o tranglomanglo. Morreu em flor. Não chegou a dar fruto.


Chama-se o tranglomanglo ao mau-olhado das bruxas e duendes, seja o que for de maligno, que não deixe ir vante, nos meios pequeninos, qualquer iniciativa útil ao comum. Nesta vila do Peso da Régua, tem assento e quartel esse mau privilégio. Sopra a qualquer lamparina acesa de oratório intelectual.


Compare-se com uma luzinha o boletim Vida por Vida. Veio o tranglomanglo, com boca de raia e pernas de rã, abafou-lhe! Deu-lhe o ar – como se diz, entre comadres, quando se fala de sopro ruim, inimigo do bem e da claridade.

As notas que lancei no Vida por Vida foram variações de temas gratos à minha índole. As menos doces foram setas de papel disparadas pelo meu arco sempre insofrido, contra fealdades e vícios de cunho provinciano. Pouco adiantei com os disparos, porque as setas foram de papel. Mas, sosseguei o arco e a mim me sosseguei no fim de cada arremesso.

Impôs-me a obrigação de publicar este livro uma senhora que aprecia quanto escrevo.

(…)

Não é nebuloso o título do livro, A minha Pátria Pequena é a vila e o concelho do Peso da Régua. Aqui nasci, aqui vivo e aqui morrerei sem espírito provinciano. Sinto-me livre de semelhante espírito, que até nas cidades é empecilho do homem.”



O “Vida por Vida” também não passou despercebido no seio dos bombeiros. Com a devida atenção foi lido de norte a sul do país e mesmo nas ex-colónias portuguesas. Chegou a ter um número elevado de fiéis de leitores, que faziam chegar os seus comentários elogiosos. Através dele, os bombeiros da Régua serviam-se para mostrar a sua imagem de modernidade e de afirmação como um dos melhores e mais e mais eficientes corpos de bombeiros do norte, preparado e instruído pelo Comandante Carlos Cardoso.

O jornal “Vida por Vida” atingiu rapidamente prestígio e notoriedade. O Comandante Manuel Augusto Rodrigues de Amorim, dos Bombeiros Voluntários de Arrifana, apresentou no Congresso dos Bombeiros Portugueses, realizado em Matosinhos (1966), uma proposta para a atribuição de uma Medalha de Ouro, da Liga dos Bombeiros Portugueses, para o jornal. De forma inédita, e pela primeira vez, a magna assembleia aprovava-a por unanimidade e, assim, manifestava o reconhecimento e a importância dos órgãos de comunicação oficiais dos bombeiros portugueses.

Em 1969, o colaborador Rogério Reis expressou num dos seus brilhantes artigos a ideia de que “está por fazer a antologia dos melhores trechos aqui publicados mas não se pode ter-se uma visão exacta do Alto Douro e dos seus problemas sem se atender aos depoimentos neles arquivados”. Na verdade, temos que concordar que “pelas singelas colunas desfilaram mestres da cultura e do bairrismo, como das missões humanitárias que estão na essência dos bombeiros” e ficaram registados diversos “depoimentos aliás sinceríssimos de quem viveu e sofreu o drama das aspirações das criaturas, da economia e de tudo o que interessa a uma causa afinal comum.”

Nos nossos dias, o “Vida por Vida” revela-se um documento histórico com interesse para queira conhecer um pouco melhor a sociedade reguense nas últimas décadas do passado século. A moderna história da Régua não pode dispensar a consulta deste periódico dos bombeiros da Régua. O investigador atento vai descobrir que o fluir da vida da associação se cruzou com alguns dos principais acontecimentos que mudaram os horizontes da cidade e do concelho nos seus aspectos sociais, culturais e humanitários, onde se revelaram cidadãos exemplares com uma especial atitude abnegada e de cidadania, que procuraram valorizar a sua sociedade do tempo, na construção de futuro melhor para todos.
- Peso da Régua, Janeiro de 2010, J. A. Almeida.
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terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Figuras da Régua - Recordando CESÁRIO BONITO


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Cesário Bonito nasceu no dia 1 de Agosto de 1909 em Peso da Régua.

Foi o 25º Presidente do Futebol Clube do Porto. Presidiu o clube em três períodos diferentes: de 1945 a 1948, de 1955 a 1957 e de 1965 a 1967.

A sua ligação ao FC Porto começou quando ainda era criança já que jogou futebol na equipa de infantis. Seguiu depois os caminhos da medicina para ser Médico de profissão.

Em 1943 assume o cargo de vice-presidente, e dois anos depois assume pela primeira vez o cargo de presidente do clube.

Foi durante esta sua primeira passagem pela liderança dos destinos dos Dragões, que se deram importantes avanços para a construção do Estádio das Antas. Havia na altura as hipóteses de se construir o estádio em Vilarinha, ou nas Antas. Cesário Bonito sempre defendeu a segunda hipótese, e foi o responsável pela compra dos terrenos em 1948.

Depois da sua primeira passagem pela presidência, passou a relator, e em 1950 a Presidente da Assembleia Geral.

Em 1955 foi de novo eleito para Presidente. Neste seu segundo mandato, viu o FC Porto a sagrar-se Campeão Nacional, após um jejum de 16 anos, e a vencer também a Taça de Portugal. Uma equipa que era orientada por Dorival Yustrich. Foi ainda neste seu segundo mandato que foi inaugurado o Lar do Jogador.

Outro caso que ficou marcado neste período foi o adiamento de parte da FPF de um jogo disputado no Estádio das Antas entre o FC Porto e o Sporting. Porque o jogador leonino, José Travassos, tinha ficado retido no aeroporto de Madrid devido ao nevoeiro. O Dr. Cesário Bonito revolta-se e protesta indignado. A Federação Portuguesa de Futebol irradia-o e suspendeu por 3 anos outros elementos da Direcção. Mas nem assim o Presidente do FC Porto se calou e como o escândalo começou a ter repercussões até no estrangeiro, a FPF recuou, levantou os castigos e assim acabou por ser imposta a justiça.

Cesário Bonito voltou a liderar os destinos do clube entre 1965 a 1967, passando depois a Presidente do Conselho Fiscal.

Em 1952 foi agraciado com o título de Sócio Honorário do FC Porto e em 1983 recebeu a mais importante distinção do clube que foi de Presidente Honorário.

Faleceu no dia 4 de Setembro de 1987.
- Publicada por Paulo Moreira in blog “Estrelas do F C P" - Sugestão de nosso Amigo e colaborador J. A. Almeida.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Um incêndio no concelho de Santa Marta de Penaguião

“É-me agradável saborear o espectáculo dum incêndio, sem a possibilidade duma queimadura e sem a mortificação duma ajuda para o sinistrado. Deixo o caminho desimpedido ao meu representante, o bombeiro voluntário” – Miguel Torga, in A Terceira Voz.

Foi em 19 de Dezembro de 1957… no concelho de Santa Marta de Penaguião, mais precisamente na freguesia da Cumieira que ocorreu um violento incêndio numa casa de habitação da Quinta da Portela, pertencente aos herdeiros de D. Zulmira Leite Pedroso. Estiveram presentes os bombeiros da Régua e das duas corporações de Vila Real. Aqui nesta fotografia vêem-se os bombeiros da Régua no serviço de rescaldo. Empunhava a agulheta o José Almeida Macedo, tendo como seu espia o Joaquim Sequeira Teles e, na escada depois de auxiliarem a subida da mangueira (60 mm), estava o José Melo Júnior e o Alberto Coutinho.

Com o passar dos anos, é natural que não existam no lugar nenhumas marcas visíveis do incêndio. A casa ardida foi reconstruída, a vida ali não deixou de continuar, ninguém cruzando os braços perante o desânimo e a desgraça. Daquelas ruínas e cinzas, tudo recomeçou com mais energia e determinação, novo esforço e uma esperança renovada em melhores colheitas da vinha e produção de bons vinhos. Parece que serão poucas as pessoas que conseguirão recordar esse dia de fatalidade. Não deve ser fácil encontrar alguém ainda vivo que o tenha presenciado.

Decorridos 56 anos, o tempo não apagou todas as memórias desse incêndio. Resistem algumas, como esta fotografia publicada no jornal “O Primeiro de Janeiro” que mostra uma parte da tragédia. Sobrevive, pelo menos, um dos bombeiros da Régua que foi chamado para combater o fogo. Pode dar o seu testemunho o senhor Joaquim Sequeira Teles, ou como o tratam os amigos, o Quim Teles. Como tocasse numa ferida, lembra com pormenores e nitidez as fases do socorro a esse incêndio, a dor das pessoas, o serviço de rescaldo e as ruínas que restaram da habitação.


Foi bombeiro no corpo activo até ao limite de idade. Não chegou a integrar o quadro honorário, por erro ou lapso de alguém, mas isso não o impediu de voltar a entrar no quartel sempre que entendesse, em especial nos aniversários da associação, revivendo o genuíno voluntariado. Contagia conversas com sua simplicidade e afabilidade. É um homem simples e generoso. Escutam-se-lhe atentamente histórias impressionantes da sua vida, na qual diz ter apreendido tudo o que sabe. Para muitos, é já um reguense ilustre.

Conta 79 anos de vida (nasceu a 18 de Abril de 1930). Como sócio, trabalhou na desaparecida firma “A Construtora do Douro”, onde os operários eram quase todos bombeiros e, quando tocava a sirene, algumas obras paravam para irem para o fogo. Hoje fala-se mais dele pela sua notoriedade como dirigente da arbitragem e do futebol. É por todos estimado, bem como toda a família, os Teles, reconhecidos pela sua dedicação ao próximo e pelo trabalho social e humanitário. A começar, pelo seu irmão Manuel que é padre no Vidago - autor de irreverentes crónicas “Pontas de Fogo”- depois a conhecida Irmã Rosinha – que já celebrou 50 anos de vida religiosa como freira – conhecida pela seu trabalho com as crianças no Patronato de Godim - e o falecido Carlos, que também foi bombeiro. São pessoas de referência e exemplos de bondade para a Régua. Não foi só nesta missão que o Joaquim Sequeira Teles serviu o bem colectivo. Dedicou quase toda a sua vida a fazer o bem dos outros e à sua terra. Com justiça se diga, isto faz com que seja credor da nossa admiração e reconhecimento.

A generosidade humana de um homem que se faz bombeiro está realçada num excelente texto intitulado “O bombeiro e a religião”, assinado pelo Padre Luís Marçal, arcipreste da Régua, na revista do centenário da associação, onde vincou estas importantes reflexões:

“São três as palavras que identificam o bombeiro com o cristão, que exprimem a afinidade de objectos, a comunhão de ideais: “Vida por Vida”.

Vida por vida – é a divisa do bombeiro, é o seu dever a cumprir.

Vida por vida – é o sinal do cristão, o seu divino mandamento.

(…)

Amor universal, total, gratuito – eis o amor de Cristo que deverá ser o amor do cristão. Não é assim o amor do Bombeiro?

Ao toque da sirene não procura saber quem o chama: se amigo ou inimigo pobre ou rico, conhecido ou desconhecido. Vai porque é universal no seu gesto.

O bombeiro não condiciona o seu serviço, não põe limite algum na sua acção. Esvazia-se dos seus problemas para viver os problemas dos outros. Sai de casa e não sabe se regressa: não sabe se será o último beijo ou olhar com que se despede dos seus. Vai pôr a vida ao serviço de outras vidas: é total na sua entrega.

O bombeiro não exige e nada espera pelo seu trabalho: é voluntário na sua resposta.
Quando o bombeiro descobre no silvo da sirene a voz de Deus que o chama e no irmão que socorre a pessoa de Cristo a sofrer, o seu gesto que é senão de AMOR.”

Lembrava nas suas memórias o chefe António Guedes que, durante muitos anos, os bombeiros da Régua tinham a responsabilidade de zelar pelo socorro e a sua assistência dos bens e vidas das pessoas também em Mesão - Frio, Santa Marta de Penaguião e Armamar. Devia-se ao facto de não terem sido constituídos os corpos de bombeiros nesses concelhos vizinhos, o que fazia com que a tarefa recaísse na corporação de bombeiros que estava mais próxima. Pelo que, durante muitos anos, os bombeiros da Régua tiveram de prestar serviços de socorro a fogos e acidentados fora do seu concelho. Em muitos sinistros, os bombeiros da Régua mostraram a sua coragem, abnegação e valentia, praticando mesmo actos de grande heroísmo, que evitaram tragédias e perdas de vidas.

Assim aconteceu no incêndio que atingiu a casa da Quinta da Portela. O fogo chegou a provocar pânico. Segundo se consta terá tido causas de origem criminosa. Parece que teve uma rápida propagação e, quando chegaram os bombeiros da Régua, já as chamas tinham destruído grande parte da habitação. Tinha decorrido muito tempo desde o sinal de alerta. Depois, a distância do quartel até ao lugar era longa, o que não permitiu que tenham chegado a tempo de a salvar, mas não deixaram que o fogo causasse maiores danos. A casa ficava reduzida às suas paredes, pelo que os proprietários contavam que os danos eram avultados, contabilizando um valor de cerca de 1.300 contos. Os bombeiros ainda conseguiram precaver todo o vasilhame com vinho das últimas colheitas, guardado no armazém. O objectivo foi alcançado graças ao trabalho desenvolvido pelo piquete sob o comando do bombeiro de 1ª classe Joaquim Pereira Laranjo (um dos melhores bombeiros da sua geração, mais tarde promovido a chefe), que trabalhou com uma importante força de água captada a mais de 300 metros de distância.

Não são raras as vezes que tudo se perde num incêndio. As chamas, num instante, levam tudo em sua volta. São as pessoas que morrem São os bens ganhos com o custo do suor e sacrifício do trabalho que desaparecem. Não se recuperam mais as coisas preciosas, os objectos simbólicos e de recordações familiares. O incêndio, qualquer que seja, aos olhos de alguns pode ser um deslumbramento, mas na realidade deixa para contar histórias de angústia e sofrimento de pessoas.

Não é de admirar que um incêndio fascinasse o poeta Miguel Torga apenas pela sua beleza e espectáculo da natureza. Para o apagar era um daqueles que não avançava. Sentia-se melhor quando a missão passava a ser desempenhada pelos únicos homens que o enfrentam de frente, o bombeiro voluntário, o seu representante, a quem lhe deixava o caminho desimpedido. Com o seu pensamento, o poeta elogia a acção e a humanidade dos bombeiros. Admira-lhe o seu espírito de sacrifício e de coragem.

Percebemos agora e melhor, o que os bombeiros significam quando somos vítimas de incêndios, acidentes, tragédias e catástrofes. Para nos salvarem, não esperamos por mais ninguém, a não ser pelos bombeiros, os semi-deuses possíveis, em quem acreditamos, mesmo parecendo impossível, que façam verdadeiros milagres.
- Peso da Régua, Janeiro de 2010, J. A. Almeida. 

Obs. -  Joaquim Sequeira Teles, apesar dos seus quase 80 anos, é ainda dirigente da arbritragem na Federação Portuguesa de Futebol... Endereçamos, em nome de J. A. Almeida, autor do texto acima, no meu nome e de minha Família, um abraço aos irmãos Teles e demais estirpe. 
- J. L. Gabão.