terça-feira, 1 de julho de 2008

Antão de Moraes Gomes - O poeta nas mãos de Deus.

(Clique na imagem para ampliar. Imagem original daqui.)
.
Por José Alfredo Almeida
.
Deve ter acabado de chover nesta terra adormecida na borda d’água deste rio de mau navegar. Da terra molhada levantam-se aromas de vida e dos plátanos majestosos caiem gotas cristalinas que me entram pelos olhos adentro. É tempo de espreguiçar a alma... Assim falou o misterioso viajante, segundos antes de adormecer no único banco do Moledo aonde o Sol da tarde ainda conseguia chegar.
Como ali tinha ido parar, ou porquê, não se sabe muito bem, mas isso era algo que o não importava... pensou, imediatamente antes de ouvir o sussurro das águas apressadas que o transportavam ao barulhento e majestoso Salão de Festas do Hotel Gomes.
Entre o Grande Hotel das Termas, a Estalagem do Almeida, o Petit-Hotel e o famoso Vilhena, passeavam os sapatinhos balneares das senhoras aquistas, protegidas pelas sombrinhas à brasileira, ora pela manhã, ora ao fim da tarde de regresso dos sulfurosos banhos. Ansiosas pela reconfortante refeição, com serviço de mesa recomendado com credenciais da monarquia, e à espera do “corte-e-costura” de língua que lhes animavam as noites de rescaldo duriense, enquanto os seus extremosos maridos se deleitavam nos prazeres de jogos, proibidos ou não, entre fumaças de charuto que condimentavam cálices de vinho fino.
E eis que outra vez a fachada do Hotel Gomes regressa ao espelho subconsciente do misterioso viajante para lhe trazer um sorriso balzaquiano capaz de atazanar as mais sossegadas almas.
Enigmaticamente por entre eminentes juristas em fim de carreira e bonacheirões comerciantes, deambulava o nosso viajante em busca de um lugar onde pudesse escrever um tranquilo postal. E, descobriu bem perto um harmonioso jardim de hortênsias floridas e esplendorosa begónias, sobranceiro ao rio. Faltava um tinteiro que um criado de invejável delicadeza rapidamente pousou a seu lado.
Finalmente escreveu: “Caldas do Moledo, 28 de Julho de 1925- Minha muito querida. Cheguei ontem à noite e apesar do isolamento e da falta do bulício é um encanto onde se passa dias admiráveis. O vale enorme que tem por sopé o Rio Douro, constituído por uma escadaria de parreiras e enorme vegetação. Não calculas querida amiga que ao admirar estas belezas só tenho em pensamento o não poder transformar em realidade o sonho que há tantos anos me traz absorvido”.
Era aqui a pouco menos de uma légua da então importante vila da Régua, viviam-se contrastes que oscilavam entre o borbulhar da natureza e os trompetes da noite e que tudo transformava em poesia.
É neste ambiente, encaixilhado num recanto do Douro – as Caldas do Moledo – que às oito horas da tarde do dia 15 do mês de Março do ano de 1902 nasce o filho dos donos do célebre Hotel Gomes, Antão de Moraes Gomes, filho legítimo de António Augusto Gomes e de Dona Sara de Moraes Gomes.
Assim reza o seu verdadeiro assento de nascimento, com o n.º 20 desse ano emitido pela Conservatória do Registo Civil de Peso da Régua. (Quatro dias antes daquele que muitos dos seus admiradores afirmaram e até escreveram).
Ninguém diria que aquela criança, que como todas se pressupõe bonita e rechonchuda, viria a deixar este mundo tão brevemente, com apenas vinte e quatro anos, vítima de meningite tuberculosa que o transportou até às trevas do Granjal, em Sernancelhe, a aldeia natal de seu pai. Todavia, foi enorme o seu curto percurso pela efémera vida terrena: «Devido ao seu temperamento irrequieto e anseios de independência absoluta, chegou por vezes a lutar com a miséria, que procurava ocultar estoicamente, até aos seus mais íntimos, que teriam um prazer imenso em afastar-lhe da vista esse negro espectro..» - afirma com propriedade e conhecimento o abade José Castro.
- Eu sou Antão: - Fui santo e fui pastor,
Voltei de novo, ao mando do senhor,
Tanger as vossas almas para o Céu

Assim se definiu o poeta, e bem, dirá a nossa assumida humildade, sem contudo deixar de concordar com João de Araújo Correia que na sua voz autorizada afirma: «Santo e Pastor? Poeta é o que fio o Antão de Moraes Gomes. E mereceu o título...». Esta sábia observação é tanto mais lapidar quanto se observa o facto de o poeta o ter conseguido ser com apenas uma obra publicada em vida - «Antão era Pastor», que a Companhia Portuguesa Editora Lda, do Porto, arriscou publicar, em data incerta, apenas se sabendo desta aventura três pormenores de vulto.
Não confiando no tipógrafo, Antão decidiu ditar ele próprio o livro, soneto a soneto. De todos os originais conhecidos, todos se encontravam escritos asa lápis. O seu conteúdo foi gerado entre 1920 e 1923.
Depois de ler «Antão era Pastor» ficam os traços bem definidos da poesia, do poeta e do seu estilo, da sua musicalidade e do seu conteúdo metafísico e espiritual? Pergunta-se. Chegará este livro para definir a alma do poeta?
Independentemente da natural ingenuidade que o leva a escrever aos catorze anos a célebre lírica de inocentes sextilhas « A Mariquinhas», não é possível analisar o peso do conteúdo de Antão de Moraes Gomes sem digerir os cerca de trinta sonetos inéditos que após a sua morte deram à página pela mão de um Abade de Tarouca – José Castro – que os fez publicar no semanário “Bandarra” de Lisboa.
Contudo, já antes o tinha descoberto o então célebre poeta da capital Afonso Duarte, numa sua visita às termas, fazendo disso referência em carta dirigida ao mestre Osório de Oliveira, de Coimbra, escrevendo a dado passo: « ... e os que morreram os vinte anos, como esse extraordinário moço que eu conheci numas termas do Norte, no Moledo, quasi desprezado de todo o convívio, o meu querido Antão de Moraes Gomes. Que galeria de mortos, amigo e de um real valor eu tenho aqui na minha estante- os meus mortos sem que eu saiba ou possa falar deles!».
Ao encontro deste lamento compreendido vem João Araújo Correia, ao referir-se ao poeta na relação com o seu tempo e lugar: « ... passou despercebido no seu berço... a Régua se reparou em Moraes Gomes, foi devido a umas gravatas berrantes ou coletes de alta fantasia que levava ao cinema...» para mais adiante salientar: «... Antão de Moraes Gomes, com gravatas e coletes, cometeu o pecado de Balzac em ponto pequenino».
Assim enquanto no seu livro único, e por detrás de uma descrição eivada de algum bucolismo, o poeta retrata as suas preocupações quotidianas, ambiências terrenas e as liga sempre ao fenómeno sagrado, chegando a dialogar de perto com a morte, nos seus poemas soltos e inéditos do Bandarra, o nosso esquecido Antão despe-se completamente, e deixa transparecer paixões enigmáticas e valores, resumos de vida e certezas de morte, que a cada passo se encontram em versos e estrofes:

Quando vem Maio, com seu ar de festa,
Em ti negra saudade se adivinha:
E a tua sorte bem igual à minha,
Já dos nosso bons tempos nada resta

Ou então, a tal paixão proibida, ou impossível...

Meu Amor, um perfume como o teu,
Mal posso imaginar donde provem...
Certo, não vem da Terra, é odor do Céu
O perfume, que a tua carne tem
A mensagem quase premonitória da morte, a ligação panteísta da imagem humana e terrena ao divino, a mãe natura que o rodeia e a paixão inconfessável e enigmática, são, definitivamente, os temas recorrentes na poesia de Antão de Moraes Gomes, sem contudo deixar de ir ao encontro do pensamento poético- filosófico da sua época.
É neste conturbado rio de correntes e redemoinhos que o poeta Antão se encontra com aquilo a que mais tarde Adolfo Casais Monteiro viria a designar por “ libertação da palavra”. Aqui está o que melhor conseguiu o nosso poeta, que como diria o Abade José Castro « ... bem nítida ressaltará sempre a maneira original, inconfundível das suas poesias, todas inspiradas no meio ambiente. Idealiza muito, escrevendo pouco».
Restam contudo algumas questões que por certo valerá a pena deixar ecoar no salão da especulação poética. Qual seria o enigma de Antão de Moraes Gomes? Seria um pacto com Deus, ou simplesmente um olhar de Deus visto em cada uma das suas criações? E sendo assim porque deparamos com os enlevos de paixões tão ardentes como desconhecidas?
Para este poeta, para este homem de poucos rastos, volto aos pensamentos do Abade: «Deus o tenha agora à sua mão direita ... Do Céu nos fale o ilustre morto!...».
É aqui que o súbito toque de um sino distante que ecoava por todo o vale nos faz regressar ao misterioso viajante, perdido na famosa avenida dos fabulosos plátanos, entre os grandes edifícios das termas e as calmas águas do rio.
Nas suas mãos, podia ver-se ainda um postal ilustrado, meio por escrever, mas que agora seria bastante pequeno para este enorme infinito duriense de memórias, de intensos aromas e de poesia.
A esta hora, já o rio respirava a bom dormir e a cálida noite esfriara. Havia uma penumbra envolta nas coisas, enquanto alguém passeava, devagarinho por entre as sombras dos enormes plátanos, olhando para a outra margem, com um livrinho de poemas para ler.
Acreditem ou não, ainda hoje não tenho a certeza, de quem ali teria estado, sem pressa de chegar à eternidade.
Se fui eu num regresso feliz aos lugares da minha infância, ou se o próprio poeta, que ali continuava, à procura de todos nós.

28 de Julho de 2000.
José Alfredo Almeida
Peso da Régua

terça-feira, 24 de junho de 2008

Tédio de Verão

(Imagem original daqui)
.
Por Mário Mendes
.
O tempo arrasta-se,
lento, pesado, sufucante,
na modorra dos dias iguais.
O calor sufoca.
Na rua, magotes
em loucura coletiva,
"fazem" férias.
Não fazem mais nada.
Com tanto calor
nem férias deviam fazer
(ou fariam férias
só depois das férias).
O Verão é de consumo obrigatório,
como são os casamentos no Verão.
Como o regresso dos emigrantes,
as estradas apinhadas,
as mulheres bronzeadas,
as praias super lotadas,
as festas, as romarias,
as procissões,
os sorteios, as rifas,
as camionetas de melões,
o fogo de artifício,
o mau cheiro e os encontrões.
Fujo,
através do meu copo de cerveja
que, previsivelmente,
deveria estar gelada.
Só,
bebo no extremo da esplanada.
O ruído é ensurdecedor.
Há silêncios que deseperam...
.
Título: A pena, que apenas...
Autoria: Mário Mendes
Edição: Garça Editores, Lda. e Mário Mendes
Copyright 2003 Garça Editores, Lda.
Rua dos Camilos, 201 3o. Esq. - Peso da Régua

quinta-feira, 19 de junho de 2008

O Natal do Brasileiro.

(Imagem original daqui.)
.
Por Camilo de Araújo Correia
.
Em quarenta anos de Brasil, João Patrício nunca tivera possibilidades de vir a Portugal. A príncipio, por falta de dinheiro, depois, por falta de ocasião. Na verdade, os primeiros quinze anos tinham sido duros como caixeiro apagado ao fundo de um grande estabelecimento de secos e molhados.
Por morte dos donos, em desastre de viação, viu-se repentinamente guindado a gerente daquela grande nau comercial. Os filhos dos patrões, uns médicos, outros engenheiros, avessos ao comércio, cedo lhe venderam a firma, nas melhores condições, por muito acreditarem na sua competência e experiência.
Bem se saíu João Patrício do pesado encargo. Ao fim de quarenta anos, tudo era seu, desde o barril do vinagre à tabuleta do neon. Não ficou por aí. Os tempos de prosperidade pareciam querer vingá-lo dos tempos de mesquinhez. Em cada ano abria um novo estabelecimento. Acabou por ter uma cadeia de supermercados, respeitável nos bancos onde o seu dinheiro se multiplicava e que eram quase todos os do seu Estado.
Apesar de rico e feliz com sua numerosa família, nunca outra coisa sonhou João Patício que não fosse vir a Portugal, à sua aldeia nas faldas da Serra do Milhafre. Os ruídos, as luzes, os hábitos da grande cidade jamais lhe perturbaram a visão exacta da sua terra. Como que repousava o pensamento naquelas casinhas humildes de pedra nua em redor da única vaidade - a igreja branca e majestosa de Nossa Senhora das Aves. Quantas vezes adormeceu, cansado do balcão, a imaginar-se de opa vermelha rutilante, ao sol de um domingo de Páscoa, na companhia do senhor abade? Nem ele sabia...
Naquele ano, João Patrício pôde vir a Portugal. Aí por alturas de Março começou a pensar nisso sem nunca esmorecer por mais contrariadades que a vida lhe trouxesse.
Como a chegada calhasse em pleno Dezembro, concebeu um sonho maravilhoso e tratou de lhe dar realidade. Comprou lembranças que chegassem para toda a gente, um manto novo para Nossa Senhora das Aves e mil e um enfeites para engalanar a aldeia no dia de Natal. Duas bandas de música seriam rogadas na devida altura.
Porém, uma grande tristeza o invadiu quando, ainda de longe, avistou a sua terra. Pareceu-lhe uma grande tela de pintor louco perdida na montanha. As casas iam do rôxo ao verde salsa sem passar pelo branco. A própria igreja perdera majestade apesar de continuar branca e digna no meio daqueles estilhaços de arco-íris.
Entrou na aldeia cabisbaixo. De longe em longe levantava os olhos à procura dos alpendres onde deixara velhinhas a fiar. Nem um. Tinham sido substituídos por varandas de cimento armado, compridas e ventrudas. Por toda a parte onde houvesse um palmo quadrado de superfície lisa cartazes pôdres e ameaças de morte, escritas a pincel nervoso.
Sem família a quem se dirigir, procurou o abade. Encontrou um velho desiludido numa casa desiludida. Rápidamente lhe descreveu a sua vida e lhe contou a sua intenção de oferecer à sua terra um Natal farto e alegre.
- Sabe, reitor, a gente lá morre de saudades. Só pensa mesmo na sua terra...
- Muito me custa desiludi-lo, senhor João Patrício... mas, esta gente não compreenderia a sua boa fé e as suas saudades. O senhor já não é, sequer, um brasileiro a querer botar figura na sua terra. Passaria por um ricaço a julgar toda a gente pobrezinha. Duvido mesmo que arranjasse quem lhe deitasse os foguetes...
- Não diga mais, reitor. Compreendi e muito lhe agradeço ter-me salvo da última desilusão. Hoje mesmo regresso a Lisboa.
- Isso é que não vai! Desde já o convido para passar o Natal comigo. Anda por aí uma velhota, meia tonta, mas com grande dedo para a cozinha. Quem vai dar as ordens é o senhor. Tenho um vinho de estalo e a conversa nunca falta. O senhor o que precisa é de conversa e de um vinho desta terra que cá o chamou.
- Nunca aceitei um convite com lágrimas nos olhos, reitor. Não repare nelas, mas acredite nelas, reitor.
Naquela noite de consoada os dois velhos, depois de muito conversarem, ficaram a dormir no preguiceiro. A fogueira com os seus cinzéis de luz foi esculpindo na pedra da noite um baixo relevo para o museu da Eternidade.
.
Título: Histórias do Fim do Ano
Autoria; Camilo de Araújo Correia
Ediçao: Brasília Editora - Porto
Primeira edição: Dezembro 2001
Execução gráfica: martins & irmão - Porto

terça-feira, 17 de junho de 2008

O Contador de Histórias Dos Jardins Suspensos,

(Clique na imagem para ampliar. Imagem criada por Fernando Guichard e que consta da publicação "O Contador de Histórias Dos Jardins Suspensos" de autoria de José Braga-Amaral em primeira edição de 2004 da Associação dos Amigos do Museu do Douro.)
.
Por José Braga Amaral
.
Olá. Imagino que vos perguntais: Quem é ele? - quem sou eu - Pouco importa...Sou apenas um velho rio, nascido por entre as fragas da serra de Urbion. Alimento-me do tempo e adormeço por entre as brumas. Acorda-me, desde sempre, a respiração dos homens, que ora trabalham as encostas em que medito, ora me acariciam com os cascos dos barcos em que se transportam sobre a água de que é feita a minha pela. Sinto-os e conheço-os desde que o acaso ou a história os pôs de ferro em punho a abrir caminho pela pedra adentro, à procura de um berço para as cepas onde nascem as pérolas cultivadas nos chãos de xisto - as uvas.

Chamam-me Durius - o Mago. Mas prefiro ser um velho contador de histórias, que passou o tempo a ouvir e a observar os homens e as mulheres que fazem a história.

Que idade tens? - apetece-vos perguntar. Não tenho idade! E não têm conta as camadas de pele, que é como quem diz, as águas que por mim correram... Sei apenas que, até onde a memória me deixa recuar, vão mais de vinte séculos! São imensas as histórias - lendas ou verdades - que nos ajudam a viver desde a antiguidade até aos nossos dias.

Título: O Contador de Histórias dos Jardins Suspensos
Autoria: José Braga-Amaral
Ilustração, capa e desenhos: Fernando Guichard
Paginação e Design: Helena Lobo Design, Lda.
Rua dos Camilos – Edifício Casa do Douro, 4º Piso, 5050-272, Peso da Régua - Portugal
Tel.: 254 324 320; Fax: 254 324 321;