"Não
basta interpretar o mundo, nem sequer transformá-lo; antes de começarmos pelo mundo, devemos começar por
nós” - Rob Riemen
José Alfredo Almeida*
Sobre a notoriedade de D.
Branca Martinho escreveu Bandeira de Toro, na monografia O Concelho do Peso da Régua, editada em 1946, as palavras
seguintes:
“O vosso nome (…) perpetuado em obras de
assistência, nas instituições religiosas e de caridade, impôs-se à consideração
e veneração da sociedade reguense. E justo foi o descerramento do vosso retrato
na galeria honorífica da Corporação dos Bombeiros Voluntários e que, quanto
mais não seja, ficará ali presente in aeternum, como símbolo dos vossos benefícios.”
Aquele seu retrato continua
a brilhar desde 1923, primeiro no Quartel que ficava numa
velha casa da Rua dos Camilos e, actualmente, está exposto na galeria dos
benfeitores do Museu dos Bombeiros da Régua, baptizado com o nome de Museu João
de Araújo Correia, ao lado de outras ilustres figuras da sociedade
reguense como Dr. Antão de Carvalho e sua irmã Zélia de Carvalho, Dr. Júlio
Vilela, Jaime Guedes, Cândida Braz Fernandes e
Teófilo Clemente.
Branca Martinho manteve uma
relação de verdadeira veneração com a Corporação dos Bombeiros da Régua que
conheceu desde tenra idade pela experiência do seu pai, Bernardo Lopes Vasques
Osório que, ao lado do Comandante Manuel Maria de Magalhães e outros generosos
cidadãos, fez parte da Comissão Instaladora e foi um dos que, em 28 Novembro de
1880, fundaram a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da
Régua, com fim principal de deter um corpo de bombeiros voluntários.
Bernardo Lopes Vasques
Osório, nascido em Ourense, na Galiza, foi um dos muito galegos que, com os
vareiros de Ovar, nos finais do século XVIII, se estabeleceram na Régua, uns
para trabalhar na vinha e outros fazer negócios. Os vareiros trouxeram o sal e
o peixe para vender. Os galegos saibraram os montes abandonados depois da
filoxera, plantaram vinhas novas e fixaram-se, com as suas novas famílias, no
ramo do comércio, abrindo lojas e tabernas.
Aos vareiros e galegos,
como a família de Vasques Osório, a Régua comercial, de hoje, muito lhes deve.
Os novos empreendedores não vieram para apenas trabalhar e fazer fortunas, ao
criarem laços com a comunidade souberam ser solidários e humanistas. O pai de
Branca Martinho testemunha o exemplo de cidadania dos nossos povoadores
antepassados que estiveram nas origens da associação humanitária dos bombeiros
da Régua. O fim principal foi o de servir a população reguense, zelar pela sua
segurança de vidas e bens e proporcionar-lhe a satisfação de necessidades de
índole recreativa e cultural. Com a sua ajuda do sangue galego e vareiro, os
bombeiros da Régua foram a primeira força de protecção civil e socorro a ser
constituída no distrito de Vila Real.
Nos finais dos anos 20, a
Branca Martinho reforçou ainda mais os laços aos bombeiros da Régua quando o seu
marido Artur Gonçalves Martinho passou a presidir à Direcção da Associação. A
sua ajuda passar a permanente e mais intensa, procurando por todos os meios
auxílios na sociedade para que os bombeiros não tivessem que encerrar as portas
do seu Quartel. A generosidade da viúva Vilela, vareira de sangue, e do
portuense Jaime de Sousa, mais tarde designado Comandante Honorário,
revelaram-se essenciais Foram estes dois empresários que valeram aos bombeiros
quando precisaram de ajuda: a empreendedora do ramo dos transportes de
aquilaria proporcionou gratuitamente uma casa para
instalarem o Quartel e o empresário do Porto presenteou-os com um
pronto-socorro, novo em folha, de marca Buick.
Hoje aquele carro não está no serviço activo, é uma admirável relíquia que ainda
sai à rua nos dias festivos para mostrar a sua elegância conservada no cromados
e no seu vermelho reluzente.
D. Branca Martinho foi uma
grande benemérita dos bombeiros da Régua. À sua maneira, seguiu o exemplo o
exemplo da D. Antónia Adelaide Ferreira, a primeira sócia contribuinte, e de
muitas outras senhoras que prestaram auxilio e devoção à missão humanitária
bombeiros. Era comum afirmar que “queria fazer algo por esta Briosa Corporação, e só um pequeno átomo que
lhe consagro, faço-o por dever e devoção”. Por devoção, fez muito
pelos bombeiros e pela causa do puro voluntariado. Não podemos esquecer que, a
partir de certa altura, os bombeiros precisaram de dinheiro para garantir
prontidão e qualidade nas suas missões de socorro. Quando faltavam subsídios, a
benemérita incumbiu-se de encenar e levar ao palco peças de teatro amador com o
grupo As Andorinhas. Os seus
espectáculos como tinha qualidade eram pelo público e garantiram as receitas
que os bombeiros necessitavam para resolver dificuldades. Não realizou só esse
trabalho, quando os bombeiros precisaram de uma nova ambulância para o
transporte dos doentes, como aconteceu nos inícios dos anos 60, ela escrevia
nos jornais veementes pedidos a entusiasmar a contribuição solidária da
população.
O carinho que Branca
Martinho sempre dedicou aos bombeiros estão explícitos num seu pensamento,
quando disse que associação era a “…mais simpática que existe, e só quem já precisou dos seus sacrifícios
levados ao heroísmo poderá avaliar a nobreza da sua missão e o Bem que ela faz
sobre a humanidade…”.
Os bombeiros da Régua
reconheceram a sua dedicação, a direcção presidida o Dr. Júlio Vilela, advogado de prestígio e um humanista de
sublime sensibilidade cívica, nas cerimónias do 75º aniversário da Associação, em 28 de Novembro de 1955, distinguiu-a como benemérita,
entregando-lhe o título de Sócia Honorária.
Mais
tarde, D. Branca Martinho agradeceu a distinção, aquele genuíno de acto de
gratidão, por escrito numa carta eivada de sentimentos de
ternura e orgulho pela causa dos bombeiros da sua terra, que encontramos
esquecida no arquivo e aqui se revela na íntegra:
“Exmo
Senhor Dr. Júlio Vilela,
Digmo
Presidente da Associação dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua
Faltaria a
meu dever dos mais sagrados se não viesse agradecer ao meu caro amigo, e em si,
a toda a Exma Direcção e Corpo Activo, o diploma e a medalha de sócia honorária
dessa briosa Corporação, aliás, sem merecimento algum da minha parte.
Fiquei
confundida com a lembrança e ao abraça-lo quis ainda dizer que em si abraçava
todos os membros dessa Associação, mas não o pode fazer tal a comoção que de
mim se apoderou.
A festa da
comemoração foi fluida e grandiosa na sua simplicidade e a compreensão do nosso
povo ajudou a torna-la maior e mais bonita! Vi, passar num encanto mágico, os
capacetes doirados pelas ruas da nossa vila; vi mão de crianças e de uma mulher
cobri-lhe de flores. Lembravam estrelas a fulgir em noites quentes de estio.
Não
passará jamais das nossas almas o esplendor deste grandioso dia de festa.
Desde nova
tenho acompanhado esta corporação com carinho, a quem me ligam laços de viva
simpatia e admiração.
Por isso
quero apresentar-lhe com os mais comovidos agradecimentos as minhas calorosas
felicitações pela forma simples e elegante como tudo decorreu.
Engastaram
V. Excias não sem sacrifício e esforço mais um belíssimo diamante na coroa de
louros que souberam conquistar pelo denodo e valentia com que servem a
humanidade. Pedirei a Deus para que esta Associação singre pela vida fora,
servida sempre por homens de acção e de mérito como V. Excia.
São os
votos sinceros da Branca V. Martinho
Régua
6-12-1955”.
Nascida na
Régua, no dia 2 de Janeiro de 1893, onde veio a falecer a 31 de Janeiro de 1964,
com a provecta idade de 71 anos, foi uma mulher de carácter e de crença religiosa
firme que dedicou toda a sua vida a fazer a caridade cristã. Caridade
em nome dos pobres, ao serviço do seu semelhante mais desfavorecido e
abandonado à sua sorte, sem lugar no trabalho e excluído de uma sociedade
impotente para garantir os apoios sociais que não eram garantidos pelo Estado.
Na sociedade do seu tempo, o seu exemplo de partilha, generosidade, solidariedade e de compaixão a sua atitude
cívica marcou a diferença numa causa humanitária que visou o respeito pela vida
e dignidade humana dos pobres.
Os
reguenses chamaram-lhe a Protectora dos Pobres. O Governo concedeu-lhe a Ordem
da Benemerência. A Igreja, pelas mãos do Papa Pio XII, atribuiu-lhe a medalha Pro
Ecclesia et Pontifice. Na homenagem póstuma, realizada nos anos 70, foram enaltecidas
a sua personalidade e a sua obra sublimada pelo dom eloquente da palavra dos
oradores Padre Manuel Sequeira Teles e João de Araújo Correia. O escritor, no seu
livro Palavras Fora da Boca (Imprensa
de Douro, de 1972), imprimiu o discurso que ali proferiu. Com arte literária e
um sentido crítico apurado, enalteceu a D. Branca, como a tratou, a incutir a
ideia que fora sua amiga e contemporânea, admirou os dotes físicos, a beleza do
seu corpo enquanto mulher jovem, enobreceu-lhe o carácter, salientou os
talentos e considerou-a o último símbolo do catolicismo português.
Vale a
pena citar um pouco mais do interessante discurso que descreve a homenageada
com acertadas considerações:
“D. Branca
Marinho foi protectora dos pobres desta vila. Protegeu-os de maneira que a sua
mão esquerda ignorasse o que fazia a sua mão direita? Não foi esse o sistema da
sua caridade. Foi caritativa, mobilizando auxiliares contra a indigência,
batendo ao ferrolho dos cofres ricos e importunando, se assim se pode dizer, os
ouvidos da governação. Horrorizada com os tugúrios onde agonizavam os
pobrezinhos da nossa terra, nunca perdeu o azo de pedir, a qualquer espécie de
mando, a construção de bairros asseados para gente humilde. Nunca foi ouvida.
(…) Dotada
de múltiplos talentos, embora não os granjeasse como se vivesse para os servir,
obrigou-os a servir a sua causa, que foi a do bem-fazer organizado para o
tornar profíquo.”
Há quem
pense que D. Branca Martinho que era assumidamente católica fez uma caridade à
moda antiga. Querem dizer que a sua atitude cívica foi meramente de cariz assistencialista
e que a acção de nada teve de extraordinário, nunca chegou a resolver os problemas
reais das pessoas. Não será esta, seguramente, opinião dominante daqueles que a
conheceram ou apenas dela ouviram falar como uma mulher dotada de rara
sensibilidade para tratar com nobreza as questões da pobreza.
O voluntariado de D. Branca
Martinho seria, neste nosso tempo, reconhecido como de “acção social”,
realizando tarefas básicas de dar comida a quem tinha fome, vestir quem
precisava de roupas, cuidar de doentes, crianças e aliviar a solidão dos idosos. Pode-nos parecer muito
pouco para quem, nos finais dos anos 30, enfrentou problemas sociais delicados,
como elevado o desemprego dos trabalhadores rurais que a própria autarquia
reconhecia ser impotente para resolver e, em desespero, chegou a pedir ao Governo
para que elaborasse um plano de emergência, mas nunca teve qualquer resposta.
Eram tempos difíceis, muitas as famílias conheceram o desemprego e a fome que, sem
meios para o seu sustento, acorriam às cantinas onde era oferecida uma refeição,
a de Sopa dos Pobres. A realidade social era negra, nas ruas gente muito pobre estendia à mão à esmola e à
caridade.
D. Branca Martinho que
pertenceu à alta origem social e possuía fortuna pessoal de valor, podia ter-se
alheado da situação social de pobreza que se passava em sua volta, mas empenhou-se
na acção cívica e procurar encontrar no seio da sociedade civil uma resposta
que aliviasses os principais males de seres humanos que não encontraram nenhum
Estado social que melhorasse a sua condição de vida. Olhou de frente a pobreza
e a miséria e, apoiada na doutrina social da Igreja, através da Conferência de
S. Vicente de Paula, percebeu as fragilidades da sustentabilidade económica da
região da duriense. Afinal, o comércio do vinho do Porto, continuava a ser um
caso de insucesso, não melhorava a vida dos que trabalhavam na agricultura e,
muito pior, não conseguia redistribuir na sociedade reguense a riqueza gerada.
Esta
mulher foi uma figura que marcou fortemente uma época. Quando
morreu com mais de 90 anos de idade, em sua casa na Rua da Ferreirinha, os
jornais locais unanimemente manifestaram o sentir de uma perda de uma vida
humana que reclamou atenção para os problemas de pobreza e desigualdades
sociais. Em sua memória fizeram os maiores elogios, utilizando a imagem de uma
delicada metáfora: “Caíu uma flor… ficou
o perfume”, realçando o seu valor como pessoa altruísta desta forma: “reguenses perdiam a Rainha da Caridade”,
para concluir que o seu exemplo permanecia vivo: “…a Caridade viva, Divina Azul como o Céu, bela como a flor que cai…
Esta a Caridade que a Sr. D. Branca viveu toda a sua vida”. De imediato s autarquia
reconhece o seu valor da benemérita e atribuiu
o seu nome a uma rua.
O seu legado
de humanidade mantêm-se vivo. Lembra D. Cristina Borrajo, voluntária e vicentina
que lhe continuou as incitativas de auxílio aos pobres do nosso tempo.
Confessou que, como a D. Branca o fazia, tem em prática uma intensa acção de
caridade: “Neste momento sabemos que há
muitas necessidades, principalmente, envergonhadas; mas há outros apoios que
não havia no seu tempo e que ela tentava suprir.”
O exemplo
de D. Branca Martinho é um apelo à participação dos cidadãos e da solidariedade
voluntária, cada vez mais necessária para responder aos novos problemas de
pobreza que voltamos a viver. Ao contrário do que se possa pensar, a caridade
nunca acaba.
Clique nas imagens para ampliar. Este texto está também publicado em 2 partes nas edições do semanário regional "O Arrais" de 23 de Fevereiro e 1 de Março de 2012. Texto e sugestão de J. A. Almeida e edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Fevereiro 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Todos os direitos reservados. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos. (Revisto e atualizado em 6JUL2012)
*O Dr. José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também cronicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária e fatos do passado e presente da bela cidade de Peso da Régua.