terça-feira, 30 de novembro de 2010

A MÃE DE TODOS

Alice deixou um dia a aldeia entre as montanhas durienses para servir na casa de um Senhor Doutor do Porto, levando consigo a ilusão de um sonho. Ainda foi à terra, duas ou três vezes, mostrar a roupa da cidade e os brincos que a patroa lhe oferecera. Hoje, porém, talvez já nem saiba como se toma o comboio. Enterrada a Mãe, que o Pai nem conhecera, vendida a leirita de uns almudes, fez um risco no calendário da sua recordação. Gastava as tardes domingueiras no jardim diante da casa onde fazia a comida e as camas, aspirava a alcatifa e sacudia as carpetes, limpava as pratas e entretinha adolescentes rabugentos, até achar o companheiro da sua sina. Afeiçoou-se por um mecânico e foi viver para uma casita mal alevantada dos subúrbios.

Começou cedo a criação; enquanto as marés sobem e descem, viu-se com uma ranchada de filhos. Dava umas horas como mulher-a-dias com a sogra na guarda da canalha. Passava muito tempo no hospital, nas consultas de pediatria, e dava-se, por isso, com enfermeiras e médicos com o à vontade consentido de tantas idas e vindas numa preocupação aflitiva por quem levava ao colo e pelos que deixava sob o olhar da segunda Mãe. Já nem precisava de papel ou de espera, todos lhe toleravam a prioridade, que a uma Mãe procriadora não é só o respeito a mandar, mas, também, uma admiração condoída. Vinha do fim da cidade onde a auto-estrada se estende numa fita preta que se perde, ao longe, com os carros disparados a afundarem-se nas lombas.

O rosto de Alice mostrava canseira, envelhecido antes da razão; as pregas nos olhos e nos cantos da boca traduziam embaraços e noites mal dormidas. Quase que não tinha peitos, chupados pelas bocas da inocência sem culpa de terem nascido a eito. Contudo, por cima desse espelho de privações, um sorriso bonito, muito bonito, tornava-a simpática e afável; era um daqueles sorrisos de quem logo se gosta por não enfatizar as desgraças. Acarinhava os filhos sem pieguices ou obsessões. Sempre «lavadinhos e arranjadinhos», não se escusava de, em pleno átrio, desnudar um seio mirrado para o meter na boca de um mais apressado pela hora do sustento.

Joaquim sujava-se na oficina e em biscates de fim-de-semana para sustentar a prole. Não era gastador nem seroava nos Cafés. Viciado, só no tabaco e no futebol, mas, até nestes, se moderava: fumava Definitivos e o seu clube militava numa distrital sem nome nos jornais de segunda feira. Ia sempre como um fuso para casa, sem o fastio dos casamentos arrastados. Quando a mulher se demorava, esperava sempre que a porta se abrisse. Os vizinhos da ilha não lhe ouviam um ralho ou uma descompostura e, como «casal que não se insulta não se ama», julgavam que apenas se toleravam.

Um dia, porém, as horas passavam e a Alice não chegava. Sabia-a numa consulta com «o mais novinho, de seis mesinhos». Combinou com a Mãe a continuação da vigília e meteu-se a caminho. Encontrou a Mulher na paragem do autocarro, diante do hospital, com dois bebés, um em cada braço.

- Então o autocarro não vem, é?... Estás à espera do 99 como o Samora?!... – troçou.

- Quantos já passaram!... – retorquiu a Alice.

- Espera – espantou-se -, de quem é esse bebé?!

- Foi uma senhora que me encontrou à saída e pediu-me para lhe ficar com ele.

Disse que era só tempo de ir ali, não sei onde, fazer umas compras, já lá vão mais de duas horas e não aparece. Estou preocupada...

- Oh! Mulher... Ela não volta mais! Não vês que o abandonou?!... Deixa lá!... Quem cria nove também cria dez! Vamos embora!

E lá foram, cada um com o seu filho, no autocarro apinhado, a caminho da casita mal erguida nos confins da cidade para continuarem a servir o futuro do mundo.
- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Comemoração do 130º aniversário dos BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS DO PESO DA RÉGUA

(Clique na imagem para ampliar)
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O convite de 28 de Novembro de 1880
Quando se celebram as cerimónias do 130.º aniversário da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários recorda-se o convite manuscrito pelo punho do Comandante Manuel Maria de Magalhães dirigido aos Sócios Activos para comparecerem aos festejos da inauguração da Associação Humanitária "Bombeiros Voluntários do Pezo da Regoa" que teria  lugar, pelas 10.00 horas da manhã, na casa da extinta Associação Comercial, sita na Rua da Boavista - hoje a actual Rua Serpa Pinto - para dali saírem fardados em formatura, dirigindo-se à Igreja Matriz, onde assistiriam a uma missa que "há-de celebrar-se para comemorar o acto da inauguração e a benção das bombas".

O resto do programa festivo do 28 de Novembro de 1880 havia de ser apresentado aos mesmos sócios durante a reunião. Só é pena não o conhecermos para aqui o recordarmos como um dia em que a sociedade civil reguense de mão dadas com o poder autárquico, souberam criar uma "instituição tão civilizadora, humanitária e útil"  para a protecção e socorro das pessoas do concelho da Régua, como bem salientou numa intervenção pública o ilustre presidente da Câmara, Dr. Joaquim Claudico de Morais, nesse longínquo tempo.

Conhecido é o convite festivo do 130.º aniversário da Associação que se comemora no próximo dia 28 de Novembro de 2010 e que se dirige a  todos os sócios. Do programa elaborado, a Direcção e o Comando da Associação dos Bombeiros da Régua pedem aos sócios que participem em todos os actos e, em especial, na celebração da Missa a realizar-se na Igreja Matriz, pelas 10.30 horas, em memória de todos os bombeiros e directores que serviram devotadamente a nobre causa do voluntariado.

Será, assim, uma boa maneira de lembrarmos o histórico convite do Comandante Manuel Maria de Magalhães e, o que ele e os restantes 27 sócios fundadores, nos legaram para futuro como grande  exemplo de generosidade.
- J. A. Almeida, Peso da Régua, 24 de Novembro de 2010.
(clique na imagem para ampliar)

CONVITE
A Direcção e o Comando da Associação Humanitária dos Bombeiros
Voluntários do Peso da Régua têm a honra de convidar V. Ex.ª a
participar nas comemorações oficiais do 130.º aniversário, de acordo
com programa abaixo (27 e 28 de Novembro de 2010):
(Dê duplo click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)
Comemorações do 130º Aniversário dos BVPeso da Régua - Convite

O meu barquinho

(Clique na imagem para ampliar. Imagem composta em PhotoScape com fotografia original do Dr. Camilo de Araújo Correia e desenho de um barco rabelo de autoria de Fernando Guichard.)

Por Camilo de Araújo Correia
De tanto lhe namorar o barco, da cada vez que o via, o meu amigo acabou por me dizer: - Se gostas tanto desse barco, podes levá-lo! Ele, afinal, é mais teu do que meu, desde que lhe puseste a vista, em cima...

Um barco rabelo maravilhoso, com a silhueta que tantas vezes ainda pude ver recortada nas águas e nas margens do Douro, quando fugia da escola para me extasiar com o tráfego do rio, no cais do Régua. As mãos que o construíram não quiseram faltar-lhe com a mínima verdade dos rabelos grandes. Todas as tábuas do casco harmoniosamente imbricadas, segredo da resistência do barco que é preciso, respeitar. Espadela e mastro nem mais nem menos compridos que a distância que vai da ponta da proa à ponta da popa. Os ventos e os rápidos, ou pontos, foram ensinando que teria de ser assim. A apegada também exige dimensões e colocação exactas. Lá no alto o arrais tem de movimentar-se no espaço cinético do rabelo, se quiser vencer as fúrias do vento e do rio.

O meu barquinho vinha carregado de pipas e não lhe faltava qualquer apetrecho de navegação e subsistência. Cordame de andar à sirga, remos, varas, caixa do pão e do sal e, à proa, um pote com as tigelas alinhadas para a distribuição do caldo.

Talvez se possa dizer que não há rabelo sem senão. O meu também o tinha - a vela. Não passava de um trapo, sem forma e sem vida, pendente da cruz do mastro. Tão morta que me parecia o sudário de quantos arrais morreram a subir e a descer o rio. Se Joane, o doido da Barca do Inferno, a tivesse visto, não deixaria de dizer na sua linguagem vicentina:

- Caga na vela!

Aquela vela foi, durante muitos anos, o desgosto do meu cantinho etnográfico. Da croça à podoa, da trouxa ao cesto vindimo, do copo de prova ao canado, do argau à tomboladeira do pote às tigelas da aguilhada ao carro de bois, do almude à angoreta, da enxada ao chapéu de palha, do… ao bordão de um mendigo que viveu da caridade das quintas, tudo autêntico, tudo perfeito menos o diabo da vela!

O desgosto acabou, há dias. O meu velho amigo Artur Joaquim (Calceteiro), que andou no rio até lhe escapar por uma unha negra, alegra a sua reforma construindo barcos rabelos à porta de casa. Miniaturas encantadoras do barco que o ia matando lhe saem, agora, da memória e do coração.

Levei-lhe o meu rabelo como quem leva um aleijadinho a urna romaria de fé. Veio curado curado. O meu barquinho tem agora uma vela moldada pelo vento, cheia de sol e de rio.

Peso da Régua, Julho de 1986

Com a arte de mestre Artur Joaquim julguei tratado o último rabelo aleijadinho. Muito me enganei. Se voltasse a este mundo, não lhe faltaria clientela.

Com o desenvolvimento do turismo fluvial, molham agora a barriga nas águas do rio Douro uns rabelos (?) verdadeiramente monstruosos. No espaço que dantes era das pipas, há agora um grande salão, com janelas e cortinas. A apegada parece a torre de comando de um transatlântico. E, ridículo dos ridículos, a espadela parece o rabo cortado de um cão de luxo.

Moliceiro é moliceiro, fragata é fragata, carocho é carocho, saveiro é saveiro… rabelo é rabelo.

O rabelo morreu como um velho a contar os séculos no seu rosário de medos e glórias. É hoje um honroso e comovente símbolo da primeira Eternidade do nosso rio. Não merece que façamos dele uma deprimente fantochada.
- Colaboração de J. A. Almeida para "Escritos do Douro" em Novembro de 2010.
(Clique na imagem para ampliar - imagem recolhida na internet livre.)

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

PRECE

Volta Jesus Cristo!

Volta a este mundo de sacripantas,
De escárnio e mal dizer.
Volta a esta terra de vaidade,
De desamor e egoísmo,
Fria e vazia como um poço abandonado,
Repleta de Sanhedrins da corrupção
E de Zerahs gananciosos.

Volta Jesus Cristo!

Volta à medula das nossas misérias
Para curares as chagas da inveja,
Perdoar com a serenidade de quem ama,
Limpar todas as Jerusaléns do nosso tempo.
Volta depressa às nossas consciências,
Aquecer a indiferença que nos rói,
Gritar uma esperança para amanhã
- Para sempre -
Não morrermos sozinhos e tristes.

Volta Jesus Cristo!

Vem dar força aos Nicodemus sinceros,
Encorajar os Josés de Arimateia verdadeiros,
Julgar todos os Tibérios modernos
Desprezar todos os Pilatos covardes,
Apontar os Barrabás perdidos.

Volta Meu Senhor e Meu Profeta!

Vamos falar aos que morrem de ambição,
Pregar a doutrina que nos salvará,
Escorraçar os que comem na opulência,
Agasalhar as crianças que tremem de frio,
Sem carinho, abandonadas como destroços.

Volta Jesus Cristo!

Para devolveres às pessoas o riso da vida,
Amar os que nada têm,
Ensinar de novo o que todos esqueceram.
Volta para me enxugares os rios da tristeza,
Nas angústias dos fins de tarde
E me abraçares nas horas de desassossego.

Volta Mestre!

Vamos berrar contra a alegria falsa,
Contra o sorriso falso,
Contra a amizade falsa,
Contra os irmãos falsos,
Contra os políticos falsos,
Contra toda a falsidade.
Quero ir contigo entoar a nossa Fé,
Derrubar os déspotas com a nossa Cruz,
Correr do Poder os que mandam sem saber.

Volta Jesus Cristo!

Eu quero abraçar-Te!

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

A Evocação do Dr. Mário Bernardes Pereira

Quem se interessa pelos bombeiros habitou-se a estar atento ao que faz município reguense na área protecção civil para garantir a segurança da sua população, dos seus bens e vidas em situações de riscos, acidente e catástrofes naturais. Actualmente a Autarquia assume esta responsabilidade como se fosse uma das tarefas básicas e essenciais, para o que assegura o bem-estar colectivo de quem vive e visita a região como lugar turístico e património da humanidade. Para que nada falhe, a Autarquia organizou os serviços municipais e definiu e programou algumas acções de planeamento e de emergência. A primeira intervenção de socorro está confiada ao corpo de bombeiros. Com a direcção da Associação estabeleceu uma relação de cooperação e de parceria. As ajudas concedidas são para garantir um nível de prontidão e uma eficácia elevada nos serviços prestados pelos bombeiros. Além dos diversos apoios institucionais, a Autarquia paga metade dos salários de uma equipa permanente de cinco bombeiros e concede um subsídio anual de montante significativo que permite investir mais na formação pessoal, na aquisição de equipamentos de protecção individual e de veículos e na modernizações das instalações.

Mas, houve tempos em que este não era o normal relacionamento da autarquia com os seus bombeiros. Até ser eleito em 1930, o Dr. Mário Bernardes Pereira, conhecido médico e também escritor, como o Presidente da Comissão Administrativa, os bombeiros voluntários estavam dependentes da sorte e da contribuição da população reguense, sempre disposta a ajudar quando eles mais precisavam e sentiam dificuldades económicas.

Este autarca reguense foi o protagonista de uma reviravolta nas medidas e apoios que até então a câmara municipal dava aos seus bombeiros para se organizarem como uma estrutura de socorro municipal.

Antes de ser eleito como autarca, o Dr. Mário Bernardes Pereira tinha exercido o cargo de presidente da Direcção dos Bombeiros da Régua. No seu curto mandato não pode deixar, como quereria, uma obra vistosa. Ao tempo, a Associação era uma casa pobre. Sobrevivia com fracos recursos financeiros e das muitas ajudas dos sócios contribuintes e de beneméritos. Os bombeiros mantiveram os seus primeiros quartéis em casas velhas, sem o mínimo de condições. Os meios materiais eram escassos, para trabalho diário havia uma ambulância velha e, para o combate aos fogos urbanos, um único pronto-socorro. Sem subsídios do governo nem do município, estiveram à beira de se extinguir, mas um grupo de grandes e dedicados bombeiros tudo fez para evitar esse fim inglório. Sobreviveram com a carolice popular, a ajuda de beneméritos, como D. Branca Marinho, Manuel de Carvalho, Feliciano Monteiro Guedes, José Vasques Osório, D. Cândida Braz Fernandes e marido Dr. Antão de Carvalho, Zélia de Carvalho, viúva Vilela, Dr. Bernardino Zagalo, João Coelho da Silva e Jaime de Sousa, da angariação de fundos através da realização do bazar, peditórios, sorteios, espectáculos de teatro, recitas culturais e da organização de bailes. Acontecia que o Estado não os financiava e o apoio concedido pela câmara era de pequeno valor, insuficiente para manter operacional o corpo de bombeiros.

Nesse período, entre 1910/40, a actividade dos bombeiros voluntários, se era qualificada de utilidade pública, não tinha um regime financiamento público definido. Durante a primeira república, o Estado tinha legislado um modelo que permitia que os municípios cobrassem às companhias de seguros um prémio dos seguros contra incêndios contratados com as pessoas dos seus concelhos (no valor de 2% a 3% nos municípios de 2ª e 3ª Classe), para assim poderem financiar os corpos de bombeiros. Porém, ao que sabe, nem todos os municípios faziam, na prática a aplicação desta lei e nem sequer garantiam aos bombeiros as condições de resposta, de acordo com as necessidades locais.
O início dos anos 30, na região do Douro foi de fome e de miséria para a maioria dos pequenos viticultores, originada pela baixa acentuada do preço do vinho, resultante da depressão económica mundial. O município da Régua sentiu as consequências nefastas dessa grave crise. Apesar de tudo, o Dr. Mário Bernardes Pereira definiu como uma prioridade do seu mandato dotar os bombeiros com instalações novas e conceder-lhes subsídio maior que satisfizesse as condições de operacionalidade. Conhecedor da realidade em que se encontravam, da falta de condições e meios, aquela débil organização tinha de ser apoiada pela autarquia de forma mais empenhada, para que a população beneficiasse de uma estrutura de socorro preparada e eficaz. Pertenceu ao vogal Jaime Guedes, também antigo director dos bombeiros e filho do Comandante Camilos Guedes Castelo Branco, a iniciativa de elaborar uma proposta para câmara deliberar o aumento do subsídio mensal – passava a ser do montante de 50 mil escudos anuais – e de se fazer de imediato a doação de uma parcela terreno com cerca de 200m2, que teve de ser expropriada na Av. da Liberdade – a actual Av. Antão de Carvalho – para que os bombeiros edificassem um quartel de raiz.

No país, a situação politica não era nada favorável aos bombeiros. Num governo saído da ditadura de 28 de Maio de 1926, o Ministro do Interior, António Lopes Mateus pensava fazer a militarização de todo o serviço de incêndios, o que por variadas circunstâncias não se concretizou. A vereação do Dr. Mário Bernardes Pereira mostrou-se indiferente a estas ideias absurdas e adoptava uma posição mais adequada à realidade, que via os bombeiros voluntários como a principal estrutura de socorro. A sua análise está fundamentada num texto de memórias que intitulou de “Evocação” - escrito em 1958 no jornal Vida por Vida - que pelo seu valor pedagógico e interesse histórico, se transcreve na íntegra:

“Movimento por longe minha vida, com as satisfações e as amarguras que o poder do tempo me atribui.

Trouxe comigo, no meu ser, laços espirituais que me prendem à terra em que nasci. Lutei, enquanto pude, para que o meu esforço pudesse servir os interesses da Região que tem a Régua por capital. Hoje, afastado de posições activas, resta-me recordar.

O filme das minhas evocações a desenrolá-lo, seria demasiado longo. É forçoso fraccioná-lo; e depois encerrado num só sector, procurar revivê-lo.

Assim, porque vem a propósito, recordo os meus contactos com a Associação dos Bombeiros de há trinta anos, instalada aqui ou acolá, mas vivendo sempre da mesma mística, do mesmo entusiasmo. Comandava o seu Corpo Activo Camilo Guedes, poeta de raro merecimento vivido na preocupação de se esquivar à fama. Produzia versos como a silva dá amoras, sem esforço nem artifícios. No quartel da Rua dos Camilos, a sua presença criava uma atmosfera de respeito e afectividade.

Não sei porquê, encontrei-me a presidir à Direcção. Pouco podia realizar-se naquela casa pobrezinha onde faltava pecúnia e sobravam aspirações e boa vontade. À margem da directoria, a minha deformação profissional levou-me a tentar umas lições sobre socorros urgentes a sinistrados; porém a carência absoluta de material anulou o interesse dos alunos e, com o deles, o meu.
Foi nessa qualidade de director que, num jantar de gala, no edifício do Asilo V. Osório, tive de saudar o presidente da vereação; dos cumprimentos passei às lamentações e às frias considerações orçamentais. Mostrei quanto era injusta a atitude da Câmara para com os bombeiros, Tudo se resumia à concessão dum subsídio mensal demasiado pequeno, em face dos encargos que o município viria a contrair se viesse a organizar os seus serviços de incêndios, no dia em que a Associação, privada de recursos tivesse de findar. Bem sabia eu que não findava, Rodeava-a, certo carinho dos particulares; e, no coração dos bombeiros havia, (e continuada a haver) abnegação e fé.

Fiz o discurso e tudo ficou na mesma. Ninguém estranhou e eu não estranhei. Mais consegui, seguidamente, a brincar, do que naquele momento a sério. Armei em revisteiro, Ninguém se lembra já da “Régua-Filme”, revista em alguns actos e uns tantos quadros. Estamos velhos, os que restamos da estranha companhia teatral. A revista era um pastelão que eu cozinhei como pude, criando a letra e a música dum número en¬quanto me deslocava para ver um doente e carpinteirando um quadro à noite à espera do sono. Copiei algumas figuras do original, comentei com irreverência os sucessos da terra. Ninguém se zangou. Alguns “actores” foram admiráveis nas suas rábulas. Os que assistiram lembrem-se, por exemplo, do Henrique Teixeira!

Parte das receitas coube ao Bombeiros, como era natural!

Foi então que o acaso me levou à Comissão Administrativa da Câmara. Mais que, o acaso, a circunstância de se terem colocado a meu lado alguns rapazes, bairristas e de valor. Não sei compreender o ambiente de carinho que, naquele momento, suavizou à nossa volta os embates políticos. Puderam ser examinados os principais problemas administrativos; e lá estava sempre o capitão Araújo fazendo, com as verbas, jogos malabares, para tornar possíveis as realizações. E assim é que os Bombeiros levaram o seu aumento de subsídio e receberam o terreno para edificarem a sede. A par do auxílio material, procurou-se promover uma justa consagração moral: acima do louvor, era indispensável que os Altos Poderes do Estado se pronunciassem. Por mais que a justiça se evidencie, a máquina burocrática tende frequentemente a emperrar. Mas não persistiram obstáculos perante a evidência das razões; e a Associação foi agraciada com a Ordem de Benemerência. Mais tarde, viria a de Cristo elevar o nível da consagração.

Nós, os da vereação, éramos um grupo de novos, inexperientes, cheios de boa-fé. Poucos sabíamos de facciosismos manobras políticas (não é assim, oh Jaime!) mas éramos, de puros intentos e amigos da nossa terra. E, porque a Associação dos Bombeiros bate fervorosamente o coração da Régua, nunca teríamos satisfeita a consciência bairrista se não nos sentíssemos irmanados, nas mesmas aspirações, com os devotados membros da Instituição.

Cerimónias particulares, actos protocolares, esqueci a maior parte porque mal pude senti-las; prazer, elevação, orgulho de reguense, tive quando por via do meu cargo condecorei e abracei o patrão Álvaro no salão nobre da Câmara!

Hoje, recordando a entrega, solene do terreno à gloriosa Associação Humanitária, participo, em espírito, do entusiasmo com que a nova sede é inaugurada e formulo, para os Bombeiros os mais sinceros votos de prosperidade”.

Quando nos anos 30, o Estado fazia muito pouco pelos bombeiros voluntários, o município da Régua tomava uma decisão politica que, não sendo inédita no contexto nacional, mudava a filosofia de relacionamento e de apoio aos bombeiros. Aproveitando a sua experiência de dirigente associativo, o Dr. Mário Bernardes Pereira mudava a má relação de convivência e, ao mesmo tempo, fazia com que os bombeiros elevassem o seu moral e a qualidade dos serviços prestados.

Esta deve ter primeira parceria do município reguense com os seus bombeiros. Foi um novo paradigma para o seu futuro que, apesar de novas dificuldades e tormentas, se tornavam uma força de socorro mais dinâmica e, sobretudo, melhor preparada para enfrentar suas missões de socorro. Em tempos difíceis, o Dr. Mário Bernardes Pereira provava que um sistema de protecção civil municipal tem de articular sempre com os bombeiros, a quem se devem garantir os meios essenciais.
Num presente tão incerto como o que vivemos, no início deste século XXI, o exemplo excepcional do Dr. Mário Bernardes Pereira deve ser evocado pelas suas próprias palavras e destacado como boa prática, nem que seja para servir de um ensinamento para todos aqueles que tem a responsabilidade de garantir no concelho de Peso da Régua, a protecção e o socorro de vidas e bens.

Pelo que nos bombeiros da Régua, as gerações vindouras devem gravar numa pedra de memórias os nomes destes dois reguenses – Mário Bernardes Pereira e Jaime Guedes – e, ao seu lado, o de Dr. José Ernesto de Sousa e de Camilo Guedes Castelo Branco, que eram, respectivamente o presidente da direcção e o comandante dos bombeiros, desses tempos difíceis de 1930, que contribuíram para que as novas parcerias entre a Autarquia e os bombeiros se intensificassem e, ao longo do tempo, tenham dado resultados positivos, sempre com o objectivo principal de garantir em qualquer situação de catástrofe aos cidadãos, um verdadeiro e eficaz serviço municipal de protecção civil.
- Peso da Régua, Novembro de 2010. Colaboração de J A Almeida* para Escritos do Douro 2010. Clique nas imagens acima para ampliar.
  • *José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também crónicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária, fatos do passado da bela cidade de Peso da Régua de onde é natural e de figuras marcantes do Douro.
Jornal "O Arrais", Sexta-Feira, 3 de Dezembro de 2010
Arquivo dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua
A Evocação do Dr. Mário Bernardes Pereira - 1ª Parte.
(Dê duplo click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)
A Evocação do Dr. Mário Bernardes Pereira - 1ª Parte
Jornal "O Arrais", Sexta-Feira, 3 de Dezembro de 2010
Arquivo dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua
A Evocação do Dr. Mário Bernardes Pereira - 2ª Parte.
(Dê duplo click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)
A Evocação do Dr. Mário Bernardes Pereira - 2ª Parte

    quinta-feira, 18 de novembro de 2010

    O QUARTO ALUGADO - IV

    Enquanto a Mãe mudava a água da floreira para lhe colocar novos gladíolos e margaridas, encostou-se às grades que desenhavam o jazigo de granito velho por muitos anos à chuva, ao vento, ao sol, à lua e à morte. Era sempre assim: trazia à lembrança a fotografia do Pai, que tinha na mesinha de cabeceira, e imaginava-o deitado com as mãos cruzadas no peito, indefeso e injustiçado. Mas nunca chorava. Nem uma lágrima. Olhava à volta, e todo aquele silêncio de cruzes e lápides era uma fatalidade repartida. Não tinha referências do Pai, nem um minuto de vida lhe conhecera, era um filho póstumo. Benzeu-se, deixou a Mãe recolher-se, e divagou por entres as campas na procura de caras conhecidas. Estavam lá algumas que lhe despertavam a memória, gestos e frases que lhes ouvira nos seus tempos de menino acabado de nascer. Aquele lugar era o reverso (ou o anverso?) da alegria, um aviso de efemeridade, a segunda certeza de que se existiu, um silêncio-resposta do Além, de qualquer ponto longínquo.

    - Vamos – pediu-lhe a Mãe numa voz sumida.

    Regressaram a casa mudos, como se tivessem recebido o chamamento de uma Razão Implacável. Debaixo das janelas, o Álvaro, já meio entornado, apregoava um quilo de batatas no leilão de fundos para a festa da Senhora do Monte. O Artur, sem alegria na voz, telefonou a comunicar a chegada. A noite daquele domingo de Páscoa desceu como um lençol a amortalhar o mundo.

    Dois ou três dias antes do fim das férias perdia o apetite, levantava-se tarde numa desforra antecipada dos dias em que teria de madrugar, vagueava pelos socalcos que cercavam a casa, não lhe apetecia falar e tornava-se nervoso. Até a Mãe, de rosto tenso, regressava a uma sisudez de viúva. Incomodava-o a solidão em que ela ficaria com a velha criada e as suas vestes negras a varrerem o sujo dos dias, as contas das folhas semanais dos trabalhadores, o peso duma herança e os sacrifícios para a manter, as idas à Capela e ao cemitério. A Aninhas - que já estava lá em casa quando ele nasceu, lhe limpara o rabo e lavara muitas fraldas –, acabada a limpeza da louça, tirava o lenço amarrotado do bolso do avental, assoava-se ou fungava, limpava os olhos, dava um «Ai...», e, antes de se ir deitar, dizia: «Menina, não vá esquecer o baú do Menino...» Eram os mantimentos para os primeiros dias em que a barriga lhe pedia um suplemento: bolinhos de bacalhau, presunto, salpicão, queijo, uma malga de marmelada, broa, chouriço, frango e carne assada embrulhados em papel prateado, um peso quase igual à mala da roupa, e que ele guardava como um Serra da Estrela, preocupado em não perder a chave do aloquete. Fazia a viagem no dia do início das aulas, que este era tempo perdido com apresentações, alguns professores, até, nem aparecendo. Nunca a Mãe se aborrecia com isso, porque, bem lá no fundo, tomara ela que ele ficasse.

    Se o almoço daquele derradeiro domingo de férias teve a benção de um sol primaveril que agasalhava a sala com um conforto que mais lhe tolhia a vontade de partir, o jantar foi o velório de uma alegria morta. A Aninhas – sentava-se sempre à sua direita - acariciava-lhe a mão e perguntava-lhe se queria mais alguma coisa para levar. A Mãe não levantava os olhos do prato e comia como se engolisse um remédio. Era tal o entupimento que quase se arrependia de já não ir no comboio, mesmo de pé, espremido entre a intimidante algazarra da magalada e o cheiro a mijo da retrete que não tinha sossego com o corrupio das bexigas. Os toques dos talheres salientavam o silêncio; os cães ladravam aos passos trocados das bebedeiras, correndo ao fundo do quintal para os reencontrar; o tempo, cadenciado pelo tiquetaque do relógio da sala, parecia que passava mais depressa.

    - Quando é que serão os teus exames? – perguntou a Mãe, desperta da letargia.

    - Lá para meados de Junho – respondeu, aliviado por lhe quebrar os pensamentos.

    - Vai correr tudo bem. Eu vou rezar a Nossa Senhora de Fátima – compôs a Aninhas com a sua velha doçura.

    - Só tenho medo é do Alemão – aproveitou.

    - Pensas fazer algumas orais? – fitando-o inquiridora.

    - Tomara eu não precisar... – murmurou.

    - Lá estarei, mas não vou ter coragem de assistir.

    - Mas tenho eu... – atreveu-se Aninhas.

    - Mulher... Tenha juízo... Quem ficava aqui? Fechava-se a casa, era? ... Cada uma...

    - Aproveitava e ia ver a minha irmã que já não vejo há anos... - insistiu a velha criada.

    - Nas férias grandes vamos lá os dois...- atenuou João, diante dos olhos aguados da Aninhas que lhe agarrou mais a mão.

    - Levante a mesa! – ordenou, friamente, D. Carlota.

    João conhecia aquele modo: quando dominada por uma preocupação falava com uma secura tal que até ofendia as pessoas. Era, afinal, o jeito de se defender da desconsolação que a ameaçava; o resultado de muitos anos a engolir emoções. Sentindo-se à beira de quebrar, ganhava uma dureza que nem se sabia se era uma genuinidade de carácter, um fingimento de auto-defesa ou o treino de muitas lutas interiores. A sua rispidez era uma confissão, não assumida, de fragilidade; só não sabia que a Mãe, à noite, na escuridão do quarto, depois de os olhos cansarem na leitura, chorava as lágrimas que escondia de dia. A sua mesinha de cabeceira estava repleta de livros – sobretudo biografias – e lia muitos ao mesmo tempo. «Se não lesse, já estava doida! Mas livros que não sejam tristes. Para tristeza já chega a vida!», dizia-lhe a cada passo.

    Quando saíram da mesa, enquanto a Mãe lavava os dentes e a Aninhas a loiça, João veio ao terraço fumar um cigarro, sempre a olhar para não ser visto. Ainda não se atrevera a pedir-lhe autorização para fumar e desconfiava se algum dia o faria. Ela cheirava-lhe o fumo, mas fingia que não sabia; e nesse jogo de esconde se ficavam. Sentou-se na sala, em frente do televisor, nem se rindo com o Homem Invisível a dar murros a torto e a direito.

    - Vê se estudas, meu filho, ouviste?

    - Não se preocupe, minha Mãe.

    Levantou-se, deu-lhe um beijo - sentiu-lhe os lábios trementes -, e subiu as escadas que davam para o seu quarto.

    - Não te esqueças de fechar a televisão quanto te fores deitar - disse-lhe do cimo. – Dorme bem. João, pouco depois, desligou a televisão, foi à cozinha despedir-se da Aninhas, que já pendurava o avental, e meteu-se no quarto. Adormeceu com os cães a ladrar aos fantasmas da noite.

    Mal transpôs os portões, perguntou pelo Artur. Também faltara no primeiro dia. Sentou-se na sua carteira e estranhou que a dele tivesse ficado vazia. Aguardou-o toda a manhã. Esteve quase, no intervalo do almoço, a meter-se a caminho da casa dele, mas, talvez, não lhe sobrasse tempo para a primeira aula da tarde. Não podia arriscar mais faltas, ainda por cima no terceiro período. Pensou em telefonar, mas enojava-o ter que pedir a chave do telefone ao Francisco, muito menos à Alzira. Era uma das coisas que o arreliava, uma desconfiança desprezível que suportava com pena deles. Quando a campainha do último tempo tocou, apressou-se no regresso ao quarto, acabou de arrumar umas roupas que deixara em cima da cama, fez que jantou, foi ao baú atirar-se à carne assada, antes que ficasse seca, e saiu. Subiu Santa Catarina e tomou um café aldrabado numa confeitaria de esquina. Chegado ao Marquês, virou para Latino Coelho com tempo de ouvir a algazarra das raparigas do Colégio da Paz. O andar do Artur ficava no fundo da rua, por cima de uma garagem. Admirou-se por ser a D. Dulce a abrir-lhe a porta.

    - Entra, João! Entra! Sejas bem aparecido! – saudou-o, enquanto lhe dava um abraço que nunca mais acabava.

    - O que se passa, D. Dulce? – perguntou, as pernas a tremelicar, quando lhe viu os olhos alagados. – É alguma coisa com o Artur?

    - É - acenando, desalentadamente, que sim, limpando os óculos ao lenço. – Senta-te, senta-te.

    - Mas, D. Dulce, por favor...

    - Pronto, eu digo-te: o Artur foi para Paris! Já sabias?...

    - EU?!

    - Queres um café ou um chá? Eu vou beber um chá.

    - Não quero nada. Está bem, um café, então, por favor.

    Aturdido, João relembrou o fastio de Artur naqueles dias de férias, o seu desencanto aldeão, a despedida exagerada e triste, o seu telefonema de chegada em tom de adeus. Não despercebera esses pormenores, nunca, porém, os ligara a essa antiga fantasia.

    - Queres com muito ou pouco açúcar? – perguntou-lhe, da cozinha, D. Dulce.

    - Uma colher, por favor – respondeu. – Mas - prosseguiu João, enquanto ela punha o tabuleiro na mesinha de centro -, foi assim sem mais nem menos? Não deu razões nenhumas?

    - Sabes que ele tinha, há muito tempo, aquela ideia encaixada. - Pousou a chávena na mesinha e, entrelaçando as mãos sobre o peito, recostou-se no sofá. – Que me dizes?...

    - Nunca pensei que fosse a sério.

    - Ele não te falava nos problemas cá de casa? Enfiou que eu o abandonara só porque conversava com aquele senhor que tu chegaste a ver...

    - ...

    - Julgava que eu ia casar ou tinha alguma coisa com ele. Quando ele veio de férias de tua casa, houve aqui uma discussão enorme. Ele trouxe-lhe uma lembrança de Cascais, um pisa papéis, mas, mal o recebeu, deitou-o ao chão e berrou que nunca quereria nada dele. Malcriado para aqui, malcriado para ali, olha, se não me meto no meio, batiam-se à minha frente. Quando eu estava no quarto de banho, ouço um restolho medonho e verifiquei que ele tinha batido no Artur. Não lhe perdoei, nem perdoo, abri-lhe a porta e, aqui, não entra mais.

    - ...

    - Ao outro dia, quando cheguei da mercearia, vejo que ele tinha uma mala à porta. - «Vou para França, não fico mais aqui!» - Assim, sem mais nem menos. Podes imaginar o que lhe pedi, o que me enervei, o que chorei. - «Já te disse, Mãe, podes ficar com ele, eu fico comigo!» - disse-me em lágrimas.

    - Mas...

    - Ele pensou que fosse tudo fingido. Convenceu-se que tinha feito aquilo só para lhe agradar, fazer de conta.

    - Não lhe falou que, antes que o chamassem para a tropa, ele estaria longe?

    - Mas eu cansei-me a repetir-lhe que, se fosse preciso, tenho conhecimentos que o livrariam de ir. Até falei em ti, que, também, te poderia dar uma ajuda.

    - Obrigado D. Dulce, oxalá não precise.

    - Conheço um General que não recusa um pedido meu. Não, João, ele já tinha aquela fisgada. Fez-se, durante alguns minutos, um silêncio embaraçoso. João olhava a televisão, sem som, transmitindo imagens de soldados na selva, um helicóptero a pousar, levantando poeira, e, depois, a erguer-se com uma maca colada à fuselagem.

    - Posso ir ao quarto de banho? – pediu.

    - Está à tua vontade – assentou D. Dulce, sem despegar os olhos do écran.

    João parou, por instantes, diante do quarto de Artur. Tinha o arrumo das coisas não usadas: a colcha de flores vermelhas parecia a mortalha de um gavetão de cemitério e os livros, na estante, gritos encolhidos à espera de uma oportunidade para se soltarem. Veio-lhe, de repente, uma sensação de abandono, um sentimento de excluído, um frio (ou um calor?) de cobardia. Fechado na casa de banho, enquanto lavava as mãos, reparou que, na prateleira, por baixo do espelho, nada ficara dele, nem, sequer, a pedra pomos com que costumava cicatrizar o sangue das espinhas do pescoço, depois de fazer a barba. Ele fora-se sem lhe dizer nada, sem uma tentativa de incitamento para o seguir, uma partilha de segredo, “grande sacana, não confiou em mim!”.

    - D. Dulce, não sabe se o Artur foi sozinho ou com alguém? Quando é que ele foi, afinal? – sentando-se, novamente, no sofá.

    - Cheguei a ouvir um telefonema para um tipo qualquer. Acho que relacionado com essa coisa da Aliance Francaise. Disse que me escreveria mal chegasse. Sinceramente, não sei o que aquele rapaz vai fazer...

    - E quando foi? – insistiu João.

    - Na sexta-feira passada.

    - A Senhora pode não acreditar, mas ele não me disse nada, nem uma palavra, acredite.

    - Claro que acredito. Diz-me uma coisa – virando-se para ele e fitando-o seriamente -, tu concordas com o que ele fez? Mas sê-me franco!

    Ficou sem saber o que responder, encolheu os ombros no estilo «que hei-de eu dizer?!...», recostou-se e olhou para o tecto. Era a única pergunta que não esperava.

    - Deixa-me fumar um cigarro? – atreveu-se já a remexer no maço de Porto.

    - Aquele meu filho...- chegando-lhe o cinzeiro amarelado de nicotina. - Não me respondeste...

    - Não, D. Dulce, agora não ia.

    - ...

    - Primeiro acabava o Liceu. Como é que ele vai fazer o sétimo ano? Ainda há os adiamentos que se podem pedir na Faculdade, não é?

    - Eu disse-lhe o mesmo: «Vais deixar o Liceu por três meses, nem chega! É uma estupidez!» Sabes o que me respondeu? «A libertação não tem horas!» Aquele meu filho... Quando souberem que ele foi lá para fora como vai ser? Até tenho vergonha de lhe ir anular a inscrição! Que me vão dizer eles?! E o que lhes digo eu?!

    Mesmo com a janela meia aberta, estava abafado. Ou era ele que abafava. Teve vontade de se ir embora, confundir-se na neblina nocturna, misturar-se com as pessoas e o barulho dos carros, caminhar sem ter ninguém com quem falar ou, simplesmente, deitar-se.

    - D. Dulce, quando o Artur lhe escrever, diga-me, se fizer o favor. Ele tinha aí o telefone da casa onde estou, de qualquer modo vou-lho deixar.

    - Como me passou!... Quero o telefone da tua Mãe para lhe agradecer o ter aturado o Artur...

    - Não faça isso, por amor de Deus... Até foi bom, não a aborreci tanto...

    - Peço-te... Escuso de andar por aí atrás dos papeis dele ou telefonar para as Informações. Além do mais, quero convidá-la para, se alguma vez vier ao Porto, ficar aqui. É da maneira que falamos. Por favor, João...

    Deu-lhe, também, o telefone da aldeia, levantou-se, vestiu o casaco, voltou a sentir a ausência do Amigo, beijou D. Dulce que o puxou para si num novo abraço de emoção, prometeu – carregando no botão do elevador - vir mais vezes visitá-la e desceu. Estava quase a chegar ao rés-do-chão, ouviu-a, no cimo, a gritar pelo seu nome. Deixou parar aquele e voltou a subir.

    - Desculpa – estendendo-lhe um envelope -, o Artur deixou-me esta carta para ti. Com a conversa já me esquecia de ta dar. Dá cá mais um beijo e não me digas nada do que ele te diz aí, está bem?

    - Sim D. Dulce – enfiando o envelope no bolso, com o peito a latejar. Afinal o grande sacana não se esquecera dele...

    O choque com a humidade da noite arrepiou-o Estava cansado, parecia que levara um enxerto de porrada, tinha fome. Pensou ir pela Constituição, virar em S. Brás, voltar por João Pedro Ribeiro e descer Santa Catarina. Contudo, contornou a praça, passou pelo Asilo do Terço, sorriu aos chistes das prostitutas que, encostadas às portas das pensões ou sob a luz dos candeeiros, de saias apertadas e traseiros salientes, o convidavam para se estrearem, entrou no Coutinho e pediu meia torrada e meia de leite. Da mesa, encostada à montra, podia ver os carros a pararem, os condutores descerem os vidros, combinarem o preço, abrirem as portas e arrancarem. Outros, vinham, pé ante pé, chapéus sobre os olhos, em jeito de Edie Constantine, e entravam nas hospedarias de lâmpadas mortiças depois de lançarem um olhar esquivo às imediações. Enquanto mastigava a derradeira fatia – era sempre a do meio que melhor lhe sabia -, pensou se abriria já a carta ou a leria, calmamente, no quarto. Não tinha pressa, como se desejasse prolongar a expectativa, aquele prazer hesitante que se saboreia até ao limite da curiosidade. Optou pela segunda hipótese. Foi descendo, sem pressa. Deu-lhe para olhar o relógio. Já passava da meia noite. Devia ter estado, seguramente, mais de duas horas a falar com a Mãe do Artur. Condoera-se, mas pensou que, se fosse a sua, não o deixaria partir, nem que se estendesse no seu caminho. Ser-lhe-ia difícil uma atitude igual. Sonhava partir, um dia, isso sonhava, para onde se pudesse alargar, conhecer outros pensares, visitar os ícones da Literatura, aquelas referências históricas que a leitura lhe avivava. Mas fálo-ia sem ser espicaçado. Abandonar, assim, a Mãe, seria um remorso de que nunca se limparia. “Dá-me a impressão que até o Diabo me fazia uma espera... Que raio de ideia a deste gajo...E numa altura destas, com o Liceu na recta final... Teria sido aliciado?... Hum... Se fosse, mesmo que não pudesse, dizia-mo “, pensava João, Santa Catarina abaixo, colado aos prédios. Na esquina do Automóvel Clube de Portugal, cheia de carros de luxo, meia dúzia de caras ricas conversavam por entre gargalhadas que a madrugada estendia.

    Quando abriu a porta da casa, ouviu a tosse do velho. Devia ser a dizer-lhe que, por causa dele, acordara. “Grande cabrão, se fosses mas é ver com quem é que a puta da tua mulher te anda a pôr os cornos!“, mastigou. Pôs a almofada atrás da cabeça e leu a carta.

    ""João, meu Amigo:

    Tenho a certeza de que, quando deres pela minha falta às aulas, virás falar com a minha Mãe. Pedir-lhe-ei, antes de partir, para te entregar esta carta. Não me despeço pessoalmente porque sei que não concordas com a minha decisão. Poupamo-nos os dois: tu de falares, eu de te ouvir... Aconteça o que acontecer serás sempre o meu melhor Amigo. Escrever-te-ei todas as vezes que puder e vou ter muitas saudades tuas. Acredita.

    Parto com o Monteiro, aquele tipo de que te falei, a quem a puta da Pide matou o Pai, naquela maldita casa da Rua do Heroísmo, sabes?, e mais um tipo que ele me apresentou. Em San Sebastian há quem nos oriente até Paris.

    Não tenho culpa de ter nascido aqui, neste rectângulo dominado por um jardineiro odioso que corta os rebentos e só deixa medrar as ervas. Não foi (minha Mãe vai, naturalmente, falar-te disso) a zanga com o seu querido (apesar de o ter corrido, vai voltar a chamá-lo, vais ver) que me impeliu. A marca vai ficar com ele e não comigo. Decidi-me em tua casa, nos dias que lá passei. O fatalismo e a soturnidade daquelas pessoas é ultrajante e mortal. Antes de enterrados já estão mortos. Vivemos numa terra em que o sol nasce sem uma esperança – uma mínima esperança, João - de um dia sermos diferentes e diversos nas opiniões, nos risos e nas lágrimas; livres, sem bufos nem vigias, com a certeza de que é melhor perdermo-nos na liberdade do que enfileirarmos na escravatura. Disseste-me, um dia – se calhar já nem te lembras -, que o futuro pertence àqueles que içam as velas. Lá vou eu, então, manobrando-as ao sabor dos ventos e das marés. Não sei se me afogarei, só sei que o prefiro a continuar à tona deste lago de podridão. Pode-te parecer precipitado sair, assim, com os exames à porta, mas há momentos em que tem de se arriscar tudo, mesmo à proximidade de um fim, hipoteticamente feliz que seja. Chama-me doido varrido, o que quiseres... Apesar desta Pátria não ter uma centelha de sobressalto, ser uma permanente escuridão, os seus olhos lampadários fúnebres e as suas bocas acentos de amargura, não sei se vou ficar muito ou pouco tempo sem a lembrar. Pode ser que isto mude e já não valha a pena estar longe; pode ser que a guerra do Ultramar acabe e já não tenhamos os pescoços no cadafalso. Mas não é apenas a recusa da guerra, a dúvida de morrer imolado na teimosia de um ditador de falsete que me leva a partir. Mais do que isso: é uma desilusão de sociedade encarcerada e, por isso, desconfiada, servil e bronca, que aceita tudo como se a vida fosse uma desgraça fatal. Não quero ser como esta gente e, antes que se me apegue o mesmo mal, vou aprender a falar sem medo. Afinal não é o Mundo só um e as fronteiras a sua aberração?

    Oxalá entres na Faculdade e a guerra acabe antes de te chamarem! Desejo-te todas as felicidades!

    Dá cá um abraço! Faz força comigo!
    Artur""

    João, durante longos minutos, ficou de olhos especados na parede em frente da cama. Antes de se deitar achou o quarto mais inóspito, velho e gélido qual uma sala de Notário; os livros, em cima da pequena secretária, pareceram-lhe Códigos de leis injustas. Até o sono chegar, imaginou o Amigo aos saltos nos boulevards parisienses.
    - Conto de M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
    • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

    O TANTA-RUA

    Por João de Araújo Correia*

    Bem haja o António Guedes, que me fez regressar à infância, lembrando-me, neste Jornal, o Tanta-Rua.

    Alguma coisa posso acrescentar à biografia do pitoresco maluco. Não era, como supõe o bom António Guedes, natural da Régua. Dentro da Régua, nunca nasceu nenhum doido. Todo reguense é modelo de cidadão ajuizado. Ainda que beba, em horas solenes, uma pinga a mais...

    Tanta-Rua nasceu em Mafómedes e veio de lá rapazinho com a família, talvez mãe e irmã ou irmãs.

    Como as ruas de Mafómedes são poucas, e as da Régua em número infinito, comparadas com as de Mafómedes, dizia o rapazelho nos primeiros passeios que deu fora de casa: Bi! Tanta Rua!

    Daí se lhe pegou, até morrer, a inocente alcunha com que viveu na Régua. Deve ter morrido, nesta vila, entre 1913 e 1915. Mais ano, menos ano...

    Chamava-se António, mas, toda a gente lhe chamava Antoninho. É um doce costume dar inho a todos os loucos. É compensá-los da debilidade mental com uma partícula de carinho. Não acham?

    Como todos os débeis espirituais, tinha o Antoninho, em compensação, os seus talentos. Não imagina o leitor a habilidade que tinha para imitar a fala e os gestos de qualquer pessoa.

    Quando descia a rua de Medreiros, anunciando os enterros e as partidas de Fulano ou Sicrano para o Brasil, costumava sentar-se num banco à porta do Zé Ruço, que vendia achas. E aí se punha a observar os fregueses.

    Entrava a Joana Grêta para comprar uma achinha. E aí se travava uma pequena conversa entre a freguesa e o comerciante de lenha. Conversa que o Tanta-Rua ouvia, fixava e reproduzia como actor.

    - Senhor Zezinho, dê-me uma achinha, dizia a Joana Grêta com voz trémula e quebrada por ser muito velhinha.

    - Aqui tem.

    - Quanto custa?

    - Quinze réis.

    - Quinze réis? Tão pequenina! O dinheiro é sangue...

    Quem lhe soubesse da prenda chamava-o, anda cá, Antoninho, para apreciar o entremez.

    - Faz lá como a Joana Gréta.

    - Senhor Zezinho, uma atcbinha...

    E ganhava, como artista, dez réis ou um vintém.

    - Morreu Fulano. O enterro é às tantas horas. Eu lá vou com a minha opa.

    Era no tempo das opas. Quem fosse aos enterros, que hoje se chamam funerais, por amor aos eufemismos ridículos, envergava opa. Era no tempo das opas.

    - Vai amanhã pro Brasil o meu amigo Rocha, o meu amigo Rocha, o meu amigo Rocha... já com estas são três vezes...

    - Era, como disse o António Guedes, um pregoeiro de notas pessoais, repórter de viva voz.

    - Inda se não sabe a que horas é o enterro. Quem quiser vá sabê-lo...

    Todos os dias passava à minha porta. Alto, robusto, curvado, descalço, com os pés levantados nos calcanhares, assoando-se a um nó de corda que lhe servia de cinto, ele ai ia, rua abaixo ou rua acima, anunciando os acontecimentos.
    O Antoninho! Como todos os débeis mentais, tinha como compensação grandes talentos. Bem fez o António Guedes em o recordar.

    Notas:
    • *Uma excelente e crónica do escritor reguense, publicada no jornal O Arrais, com pseudónimo de Joaquim Pires.
    • As fotografias são da autoria de Miguel Guedes
    - Colaboração de J. A. Almeida para "Escritos do Douro" em Novembro de 2010. Clique nas imagens acima para ampliar.

    quarta-feira, 17 de novembro de 2010

    O QUARTO ALUGADO - III

    Continuação daqui.
    A Senhora do Monte ficava no fim do povo, na garganta de uns socalcos e no meio de um adro definido por um muro circular de pedras sobradas de antigos saibramentos. Ali descansavam as mulheres, pousando as bacias por momentos, depois de barrelarem a roupa nas margens do rio, ou os trabalhadores das vinhas que,
    nas idas e vindas das quintas, por lá encurtavam caminho. Era a devoção de D. Carlota, o motivo para exercitar as pernas, mudar a água das flores, reacender pavios, repetir preces. Zeladora por Fé e por gosto, o asseio da pequenina ermida distraía-a da rotina, das amofinações do granjeio das poucas cepas herdadas e das preocupações de um filho único de um casamento relâmpago que nem dera oportunidade para uma zanga. Pelo caminho, saudavam, num cerimonial de velhos costumes, quem encontravam. As mulheres, assim que, pelos postigos, confirmavam os passantes, vinham, com os filhos às pernas, cumprimentar numa afabilidade que só a província tem. Contabilizavam doenças e melhoras, perguntavam pelos estudos do menino e quem era a visita, ofereciam préstimos e desabafavam saudades emigrantes.

    - É incrível como nos sítios mais esquisitos se vêem reclames destes – anotou Artur, parando.

    - Que reclame? – perguntou João, olhando para todos os lados.

    - Ali – respondeu Artur, apontando para a parede de uma casa. - Não vês? - Adubai com Nitrato do Chile, único natural.

    - E é bem bom... Como fertilizante não há melhor...– ajuntou D. Carlota.

    - Mas isso há em qualquer curva ou canto! É como o Licor Beirão ou a Sandeman... – reinou João.

    - E a guerra que isso deu!... – atirou ela.

    - Guerra?... – espantaram-se, quase a par.

    - Entre o Chile e os países vizinhos... É que antes de ser adubo serviu para fabricar explosivos...Chamavam-lhe o ouro branco...

    - As coisas que a minha Mãe sabe...- ironizou João, lançando-lhe um sorriso divertido.

    A capelinha tinha o encanto de relíquia e uma simplicidade amparada: dois bancos corridos, um de cada lado; um genuflexório com uma almofada já descarnada; quatro jarras de flores, duas aos lados da Senhora do Monte, que desfrutava o altar, e outras tantas para uma Senhora de Fátima, num suporte à parte, junto ao pequeno janelo lateral, coadouro tímido da luz do dia. Enquanto a Mãe rezava e o amigo se entretinha a estudar um carreiro de formigas, subiu a uma figueira e regalou-se na lonjura dos cerros pintados de sulfato, mudo num êxtase, tamanho o embevecimento. João, nestas alturas, sufragava as suas memórias, algumas suspensas nas paredes da sua casa, emolduradas num bafo de morte antes da hora justa. Sentia-se partido ao meio como se um dique lhe tivesse impedido o curso natural da vida. Não era como o Artur que cortara as raízes, mas, antes, uma dúvida perspectivada, em que teria de escolher entre o chão do vagido inicial e a aventura de um poiso distante. A aldeia natal assemelhava-a a um espelho da sua imagem ferida, num estatuto espartilhado pelas analogias da normalidade dos outros com a sua evolução, em que detestava as fautorias, quais piedades a adoçarem uma imperfeição que lhe tivesse anatemizado o berço. “Esta terra densa, esta leveza de ar, esta abóbada sideral são as minhas referências. Dizem-me que sou daqui, mas não sei se aqui vou morrer...”. Enquanto assim pensava, vinham dos montes ecos de fainas, cantos de aves e brisas de verdura. Gostava da cidade, aquela vantagem de ter tudo à mão, o viver sem vigias de comportamentos, despercebido, mais um no meio daquela gente toda, lugares onde aprendia que os horizontes se estendem mundo fora, mesmo que não saiamos da nossa coxia. “Mas nisto me justifico, como se entre mim, as coisas e as pessoas houvesse uma comunhão sanguínea, nascida desta seiva e deste húmus. Será a voz do meu Pai a chamar-me ao seu conhecimento, como se longe do túmulo o pudesse esquecer? Ou a presença da minha Mãe que, suspensa de um receio, pede à Senhora do Monte para que o destino não lhe leve o filho, ao menos o filho? “.

    - Nunca esmagaste uma formiga?... – perguntou, debaixo, Artur, tirando-o do sério. - Não sei quem disse que matar uma formiga era destruir um bom exemplo. Já viste a disciplina e a paciência delas?...

    - Igual à tua...

    Ouviu-se um rodar de chave. Ao saltar, João tropeçou e caiu de joelhos.

    - Estás habituado aos passeios das ruas do Porto...

    - Como tu – enquanto, com as mãos, limpava as calças.

    - Deixa lá, isso sai com a escova...- resolveu D. Carlota.

    - Já rezou tudo, Mãe?... – abraçando-a com carinho.

    - Rezei por vós... Para Nossa Senhora vos ajudar nos exames... No próximo ano tendes que estar na Universidade... O Artur também escolheu Direito?...

    - Para não desfazer...

    - Lá ides para Coimbra... Depois é que é preciso ter juízo... Lembras-te – virando-se para João - do filho do Pessegueiro? No Liceu foi sempre um aluno excelente, depois de ir para Coimbra não passou do primeiro ano...Queria ser médico, está num Banco em Lamego.

    - E acha mau?...

    - Foi um desgosto para aqueles Pais...

    - Nem toda a gente pode ser doutor...Quem trabalhava as vinhas e pisava as uvas?...

    - Querias ser tu a fazer isso?...

    - Se não fosse filho da D. Carlota, que remédio... – subtilizou, perante a risada geral.

    - O pior - interrompeu Artur com uma indisfarçável inquietação - é a guerra do Ultramar... Se não nos pomos a pau, vamos para lá como cordeiros...

    - Não podeis perder nenhum ano e quando chegar a vossa vez já o Salazar resolveu a guerra. Tenho essa esperança - acrescentou ela com uma certeza tão genuína que nem dava hipótese de a rebater.

    - O Salazar – balbuciou Artur – não resolve nada D. Carlota. Só complica... Os ditadores – prosseguiu, quase a medo, não sabendo que reacção encontraria – não têm esperança, nem lutam por ela.

    Ela deitou-lhe um olhar de incómodo e João encolheu uma concordância. Ouviu-se, na correnteza da tarde, um estrépito de cavalgadura, e só quando já estava junto deles é que repararam - encostando-se ao muros do caminho - no Zé do Alto em cima do macho. Puxando a rédea, arriscou, em desequilíbrio, tirar a boina para os cumprimentar, mas, o animal não lhe deu azo e desapareceu, saltitante, qual Sancho Pança em busca do rasto de D. Quixote.

    Andavam numa fona a acompanhar D. Carlota ao Grémio ou à Feira a mercar os comestíveis, metê-los a custo no velho corcunda alemão que ela conduzia, fincada no volante, qual náufrago agarrado à bóia salvadora, apitando – sob a troça alegre do filho e o riso desajeitado do Artur - em todas as curvas, mesmo nas descobertas; enrijavam os rabos nas carreiras de Lamego, vagueando pelo Parque dos Remédios, descendo a escadaria na mira dos joelhos das meninas; subiam os mortórios de tojo e de silvas à procura de ninhos de perdiz ou os morouços armados em furões. Quando chegava a noite, e no velho Schaub-Lorenz acabava o Café Concerto ou os hossanas de Dutra Faria, a casa assentava num pasmo. Punham-se, ainda, a conversar no quarto do João, que tinha as paredes forradas com fotos do Papa João XXI, dos Beatles, dos Shadows e da Sofia Loren, até se deitarem com projectos de novos passeios. Artur demorava a adormecer. Ouvia bater as horas no relógio da sala - metrónomo de tântalo -, seguidas de uma paz conventual que, em vez de lhe apressar a indolência, o espevitava. Faltava-lhe o ronronar dos eléctricos, as vozes dos noctívagos, a repetição dos carros. Inquietava-se com o miar de um gato, o ladrar de um cão, o estalido da madeira de algum móvel ou do soalho, até o deslizar de uma folha no abandono do quintal. “Como é que este tipo aguenta quinze dias nesta pasmaceira, sem um Cinema ou Café perto, sem carta para dar uma volta? Uma terra sem luz, a beberem água do poço, a Mãe e a velha da Aninhas a deitarem-se com as galinhas e a levantarem-se com o galo...”. Mas o seu caso é que era sempre chamado ao insono. Mortificava-o como se devesse alguma coisa a alguém e não arranjasse maneira de lha pagar. Onde estaria, agora, a Mãe? Dormiriam juntos? Lembrar-se-ia dele? Desde o telefonema da chegada nunca mais lhe ligara. Devia andar a ver os Museus com aquele emplastro atrás dele, um reformado camarário mal amanhado, a olhar para as telas como um bói para um palácio.

    Pensava no Pai. Com o quinto ano feito arranjara um emprego no Cadastro da Casa do Douro e, quando herdou, deixou tudo para fazer da lavoura a sua profissão. Andava com os homens e com as mulheres, sempre à frente, nada lhe escapava, era proprietário e feitor, fazia a poda toda com a ajuda do Belchior, companheiro de Escola; na cava e na redra arredondava com a sachola as covas das cepas, colava um pulverizador às costas e só não acartava cestos na vindima porque aqueles anos debruçados na secretária tinham-lhe entortado a coluna. Nem aos domingos parava. Depois da Missa, lá ia ele dar uma volta pelas vinhas - como se respigasse qualquer falha - na espreita de um bardo com a espampa mal feita ou do susto de algum sinal de míldio. À mesa prognosticava a novidade e desancava no Comissário que lhe fizera a carregação do ano anterior e não cumpria com os pagamentos. Nunca, porém, lhe escutaram um arrependimento de escolha; dizia à Mulher que antes queria aquela vida do que a de estar todo o dia a ensinar a tabuada à canalha.

    O Pai morreu quando ele brincava no quintal e um reboliço de aflição trovejou pela casa. A Mãe desatou numa gritaria, foram ao lagar buscar um tabuleiro e trouxeram-no lá estendido. Ainda o levaram, no carro do Faísca, ao hospital da Régua, um velho palacete no cimo do Peso, onde só tiveram tempo para a certidão de
    óbito. Recordava-se muito bem que ficara quieto, sem saber onde estava e o que fazer, fora do tempo, como se aquilo não fosse com ele, uma vertigem de incompreensão a interrogá-lo. Mas quando a Mãe, desfeita em lágrimas, o esmagou contra o peito como se se agarrasse a uma salvação, sentiu-se tolhido. Só chorou a seguir ao funeral, ao andar pela casa, a sentir o vazio do Pai, a falta do seu cheiro, dos seus passos e da sua fala. Ao princípio, quando o viram cair, julgaram que tivesse escorregado no calço, mas, depois, como não se levantava, aninhado qual inocente atingido por um tiro à falsa fé, a não responder aos chamados, benzeram-se, e o Belchior voou por cima das silvas e das pedras até abrir o portão e gritar a infelicidade. Nunca esquecera essa data. A sua existência ficara marcada por siglas: AP e DP, Antes do Pai e Depois do Pai. A primeira era fagueira e indomável como as histórias do Cavaleiro Andante; a segunda, escura como o País em que vivia. Detestava a negritude das mulheres aldeãs e os seus olhos de servidão; os modos fatalistas e as côdeas de suor dos homens que, aos domingos, se emborrachavam nas tabernas, recuperavam rixas antigas ou inventam novas, anavalhando-se sanguinariamente. Viviam de dia como se fosse noite e dormiam à noite como se morressem. Não fazia do local de nascimento uma canga domiciliária, longe dos mundos que se sonham. Nasce-se onde as Mães estão, e fora bendita a hora de a sua ter decidido vender a herança. Não morreria como um coelho no meio de um bardo, nem seria escravo de leiras, cujo sumo era chantagiado, todos os anos, por seculares jugos estrangeiros. Não trabalharia para implorar preços, ser pago pela arbitrariedade e aturar as perseguições de mandatários de pretensos exemplares da seriedade. Não pactuaria com os donos das unhas envernizadas ou entronizados com trajes de seda que, em cadeiras de couro, brincavam com quem todos os dias bufava nas terras na procura de um sustento qual ruminante espicaçado. Não viveria para o faz-de-conta, era novo, mas, já sabedor que a honestidade não enriquece e que os que trabalham sustentam a fauna dos parasitas e dos invejosos. Partira sem um remorso da terra que lhe roubara o Pai, partiria sem uma saudade do País que lhe tolhia a esperança, ao menos a esperança. Conversaria francamente com a Mãe, dir-lhe-ia que precisava de realizar a sua revolta; ao fim e ao cabo, ela, também, resolvera sair; libertava-a, assim, para, na sua ausência, deliberar o seu futuro. Aproveitaria os amigos da Aliance Française, saberia, antes que fosse tarde, se o destino está escrito nas palmas das mãos ou na vontade de cada um. Chegara a vez de procurar o Monteiro que tanto lhe sereiava os ouvidos desde que o Pai se acabara na sinistra casa da rua do Heroísmo - com cemitério ao lado e tudo –, maldito lugar para onde iam os perseguidos perante a indiferença de uma cidade acobardada. Iriam mundo fora, pelas estradas do atrevimento, com a fome na barriga e a fartura no coração, numa viagem sem mapa, de bolsos rateados, olhos abertos ao vento da tolerância. Não o mandariam para África matar ou morrer, mesmo que apodrecesse no não regresso. Nunca obedeceria à comandita de fatos e chapéus pretos, feios e cínicos, caras de cangalheiros e discursos póstumos, governando, pelo chicote, um povo analfabeto. Nada perderia porque não tinha por onde escolher.

    Acordou sobressaltado pelos estoirar de foguetes e o retinir de uma sineta. Parecia-lhe cedo, quase de madrugada, ter dormido só uns instantes, a casa varrida por um motim de passos e vozes de pressas. João, a esfregar os olhos, veio chamá-lo para que se arranjasse.

    - Despacha-te! Vem aí o Senhor! – esbaforiu.

    Olhou o relógio: passava pouco das oito. Que raio de horas! No tempo da sua aldeia o compasso vinha de tarde, barrigas cheias e sonos ajustados. Pelos vistos, a casa da D. Carlota era das primeiras a ser visitada. Foi, para não armar desfeita, mal penteado, como quando acordava, de salto, para as aulas. Nunca ligara muito àquelas coisas. Dava-lhe sempre a impressão do cumprimento de um ritual para a sociedade ver, mais cerimónia que devoção. A Mãe sim, e o Pai, então, era rigoroso no costume, deitava uma nota de cem escudos no saco, oferecia bolachas e vinho fino ao Padre e aos acompanhantes, alguns já meio compostos nos rostos vermelhos do esforço e do álcool. Beijava sempre a cruz fora do corpo de Cristo, imaginando as
    bocas lá passadas, e ficava-lhe uma espécie de remorso por não sentir o calor da Fé. Não tinha, nisso, qualquer presunção, antes um descontentamento por não ser como os outros, como os Pais, que praticavam uma religiosidade que até lhe parecia uma ofensa não os imitar. Gostaria de aceitar a doutrina, interiorizá-la num alimento invisível, um apoio sem o qual não fosse feliz. «Quando tiveres a minha idade, vais pensar de outra forma!», dizia-lhe o Pai, ao notar-lhe as reservas. Não se importava nada de o ter ali para continuar ou alterar as suas hesitações.

    Durante o almoço, Artur, esforçando-se por ser natural, disse que seguiria para o Porto no comboio da tarde.

    - Mas por que não vão os dois juntos para a semana? - interrogou, surpreendida, D. Carlota. – Como vieram, assim devem ir, não achas filho?

    Olhou de lado para o amigo, enquanto chupava um bocado da cabeça cozida do cabrito, e não disse nada.

    - Tenho que fazer umas coisas no Porto, a minha Mãe também deve estranhar eu ficar aqui este tempo todo, e acho que não devo abusar...

    João, aqui, com a boca cheia de esparregado, mimo que a Aninhas, sabendo da sua perdição, lhe fazia sempre, disse por palavras meio entarameladas:

    - Se não estivesse diante da minha Mãe e à mesa, respondia - te à letra...

    - A sério......

    - Bom...Bom...O Artur é que sabe... – compôs ela.

    - Então vê se comes, que no comboio não há disto... – respondeu-lhe João, sem lhe esconder um sorriso céptico que Artur afastou, desviando o olhar.

    Acabado o almoço, foram até ao quintal fumar um cigarro às escondidas de D.Carlota. Ao longe, ouvia-se a sineta da Páscoa e via-se à entrada das portas das casas, no caminho que levava à Senhora do Monte, restos de giestas e maias pisadas. Pelo vale ecoavam morteiros e os fumos suspendiam-se no céu como asas de anjos.

    - Artur, que se passa contigo?... – perguntou, estranho, João.

    - Não se passa nada... O problema é que não se passa nada... Estou cheio desta pasmaceira, pá. Isto é mesmo o cabo do mundo... Falta-me o bulício do Porto, sair à rua e saltar para um eléctrico em andamento, as boazonas de Santa Catarina, ir a um cinema. Porra!, tu gostas disto?...

    - O que mais gosto aqui é deste ar. Ouvimos os passarinhos sem andar a procurá-los no Jardim do Passeio Alegre ou nos baldios das traseiras dos prédios...

    - Também tens passarinhos da Ribeira...

    - Pronto, está bem... A minha Mãe leva-nos ao Pinhão e lá nos encontraremos no Porto. É verdade, lembrei-me agora, acabaste por não ir ao cemitério da tua parvalheira ver o teu Pai.

    - Fica para a próxima. Ele sabe que o vejo todos os dias. Não acontece o mesmo contigo?...

    - É que tu tinhas falado; só por isso...

    - Lá irei um dia...

    - Tu é que sabes.

    Chegaram à Estação em cima da hora: uma confusão de fardas, garrafões, malas e embrulhos disputados pelos bagageiros, pregões das rebuçadeiras e garrafas de cerveja vazias espalhadas pelo balcão do Bar, algumas até no chão.

    - Minha senhora, nunca esquecerei as sua atenções. Desculpe qualquer coisinha...- disse Artur, no meio do alarido, depois de comprar o bilhete, estreitando, demoradamente, o amigo num abraço, fixando-o como se lhe quisesse dizer alguma coisa.

    - Desculpar o quê? Tem cada uma... Quando lhe apetecer venha com o meu filho, que será muito bem recebido – alegrou-o, beijando-lhe as faces.

    Quando o comboio partiu, assomou à janela um sorriso triste e os seus acenos desapareceram com a última carruagem. “ Esquisito... Este gajo nunca me deu um abraço assim...”, monologava João, abrindo a porta do carro e sentando-se.

    - Tenho umas flores na mala e queria pô-las no teu Pai. Vais comigo, não vais? – perguntou-lhe a Mãe antes de ligar a ignição.

    - Por amor de Deus, minha Mãe...Eu também tenho que ir lá - respondeu-lhe, pensando, ainda, naquela despedida que lhe pareceu de uma pieguice quase ridícula, ainda para mais num tipo como o Artur que nem era nada dado a sentimentalismos.

    Enquanto a Mãe guiava de olhos esbugalhados como se quisesse ver para lá das curvas, ele reflectia o pensamento na toalha esverdeada do Douro. Não gostava dos domingos. Eram dias bocejados, de uma inutilidade a envolver as pessoas e as coisas. Davam-se passeios tristes para justificar o dia, passear os fatos e as gravatas, mostrar a ponte e o rio às crianças lambuzadas com cremes e bolos, calar as patroas que se perfumavam para apagar os cheiros das galinhas e dos assados.

    - Estás triste... – disse-lhe a Mãe, sem descravar os olhos da estrada.

    - As férias passam tão depressa... – contrapôs desalentado.

    - O teu amigo não me pareceu muito satisfeito...

    - É um bocado estranho... Se calhar é por isso que me dou com ele...

    - Mas olha que temos de procurar quem nos dê alegria...

    - São tão chatos os domingos, não acha, Mãe?

    - Li, já não sei onde, que os domingos são o funeral semanal do mundo...

    - Nem tanto, Mãe... Essa é da Senhora...

    - Olha que li isso em qualquer livro. São das tais frases que nos ficam ou porque se encaixam em nós ou porque já as pensámos em qualquer altura...

    - Cuidado!... Vá com cuidado, Mãe...

    - Eu vou na minha mão, valha-me Deus...

    - Mas há quem não vá... A propósito, lembrei-me agora, eu podia tirar a carta... Dava-lhe jeito a si e a mim...

    - Mas ainda não fizeste vinte anos...

    - Mas, aos dezoito, dava-me a emancipação e já podia...

    - Quando entrares para a Faculdade, vamos pensar nisso...

    - É o prémio?...

    D. Carlota calou-se, fingindo uma redobrada atenção e apitando a despropósito.

    - Mãe... Não me respondeu...

    - Está bem, meu filho, é o prémio...

    Sorriu e pareceu-lhe que já era segunda-feira... Atravessaram a aldeia, acenando aos cumprimentos dos que, encostados ao muro da estrada, faziam um intervalo para os quartilhos da taberna, até pararem no pequeno largo diante do portão do cemitério.
    Continua...

    - De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
    • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.