(Clique na imagem para ampliar. Imagem composta em PhotoScape com fotografia original do Dr. Camilo de Araújo Correia e desenho de um barco rabelo de autoria de Fernando Guichard.)
De tanto lhe namorar o barco, da cada vez que o via, o meu amigo acabou por me dizer: - Se gostas tanto desse barco, podes levá-lo! Ele, afinal, é mais teu do que meu, desde que lhe puseste a vista, em cima...
Um barco rabelo maravilhoso, com a silhueta que tantas vezes ainda pude ver recortada nas águas e nas margens do Douro, quando fugia da escola para me extasiar com o tráfego do rio, no cais do Régua. As mãos que o construíram não quiseram faltar-lhe com a mínima verdade dos rabelos grandes. Todas as tábuas do casco harmoniosamente imbricadas, segredo da resistência do barco que é preciso, respeitar. Espadela e mastro nem mais nem menos compridos que a distância que vai da ponta da proa à ponta da popa. Os ventos e os rápidos, ou pontos, foram ensinando que teria de ser assim. A apegada também exige dimensões e colocação exactas. Lá no alto o arrais tem de movimentar-se no espaço cinético do rabelo, se quiser vencer as fúrias do vento e do rio.
O meu barquinho vinha carregado de pipas e não lhe faltava qualquer apetrecho de navegação e subsistência. Cordame de andar à sirga, remos, varas, caixa do pão e do sal e, à proa, um pote com as tigelas alinhadas para a distribuição do caldo.
Talvez se possa dizer que não há rabelo sem senão. O meu também o tinha - a vela. Não passava de um trapo, sem forma e sem vida, pendente da cruz do mastro. Tão morta que me parecia o sudário de quantos arrais morreram a subir e a descer o rio. Se Joane, o doido da Barca do Inferno, a tivesse visto, não deixaria de dizer na sua linguagem vicentina:
- Caga na vela!
Aquela vela foi, durante muitos anos, o desgosto do meu cantinho etnográfico. Da croça à podoa, da trouxa ao cesto vindimo, do copo de prova ao canado, do argau à tomboladeira do pote às tigelas da aguilhada ao carro de bois, do almude à angoreta, da enxada ao chapéu de palha, do… ao bordão de um mendigo que viveu da caridade das quintas, tudo autêntico, tudo perfeito menos o diabo da vela!
O desgosto acabou, há dias. O meu velho amigo Artur Joaquim (Calceteiro), que andou no rio até lhe escapar por uma unha negra, alegra a sua reforma construindo barcos rabelos à porta de casa. Miniaturas encantadoras do barco que o ia matando lhe saem, agora, da memória e do coração.
Levei-lhe o meu rabelo como quem leva um aleijadinho a urna romaria de fé. Veio curado curado. O meu barquinho tem agora uma vela moldada pelo vento, cheia de sol e de rio.
Peso da Régua, Julho de 1986
Com a arte de mestre Artur Joaquim julguei tratado o último rabelo aleijadinho. Muito me enganei. Se voltasse a este mundo, não lhe faltaria clientela.
Com o desenvolvimento do turismo fluvial, molham agora a barriga nas águas do rio Douro uns rabelos (?) verdadeiramente monstruosos. No espaço que dantes era das pipas, há agora um grande salão, com janelas e cortinas. A apegada parece a torre de comando de um transatlântico. E, ridículo dos ridículos, a espadela parece o rabo cortado de um cão de luxo.
Moliceiro é moliceiro, fragata é fragata, carocho é carocho, saveiro é saveiro… rabelo é rabelo.
O rabelo morreu como um velho a contar os séculos no seu rosário de medos e glórias. É hoje um honroso e comovente símbolo da primeira Eternidade do nosso rio. Não merece que façamos dele uma deprimente fantochada.