Quem se interessa pelos bombeiros habitou-se a estar atento ao que faz município reguense na área protecção civil para garantir a segurança da sua população, dos seus bens e vidas em situações de riscos, acidente e catástrofes naturais. Actualmente a Autarquia assume esta responsabilidade como se fosse uma das tarefas básicas e essenciais, para o que assegura o bem-estar colectivo de quem vive e visita a região como lugar turístico e património da humanidade. Para que nada falhe, a Autarquia organizou os serviços municipais e definiu e programou algumas acções de planeamento e de emergência. A primeira intervenção de socorro está confiada ao corpo de bombeiros. Com a direcção da Associação estabeleceu uma relação de cooperação e de parceria. As ajudas concedidas são para garantir um nível de prontidão e uma eficácia elevada nos serviços prestados pelos bombeiros. Além dos diversos apoios institucionais, a Autarquia paga metade dos salários de uma equipa permanente de cinco bombeiros e concede um subsídio anual de montante significativo que permite investir mais na formação pessoal, na aquisição de equipamentos de protecção individual e de veículos e na modernizações das instalações.
Mas, houve tempos em que este não era o normal relacionamento da autarquia com os seus bombeiros. Até ser eleito em 1930, o Dr. Mário Bernardes Pereira, conhecido médico e também escritor, como o Presidente da Comissão Administrativa, os bombeiros voluntários estavam dependentes da sorte e da contribuição da população reguense, sempre disposta a ajudar quando eles mais precisavam e sentiam dificuldades económicas.
Este autarca reguense foi o protagonista de uma reviravolta nas medidas e apoios que até então a câmara municipal dava aos seus bombeiros para se organizarem como uma estrutura de socorro municipal.
Antes de ser eleito como autarca, o Dr. Mário Bernardes Pereira tinha exercido o cargo de presidente da Direcção dos Bombeiros da Régua. No seu curto mandato não pode deixar, como quereria, uma obra vistosa. Ao tempo, a Associação era uma casa pobre. Sobrevivia com fracos recursos financeiros e das muitas ajudas dos sócios contribuintes e de beneméritos. Os bombeiros mantiveram os seus primeiros quartéis em casas velhas, sem o mínimo de condições. Os meios materiais eram escassos, para trabalho diário havia uma ambulância velha e, para o combate aos fogos urbanos, um único pronto-socorro. Sem subsídios do governo nem do município, estiveram à beira de se extinguir, mas um grupo de grandes e dedicados bombeiros tudo fez para evitar esse fim inglório. Sobreviveram com a carolice popular, a ajuda de beneméritos, como D. Branca Marinho, Manuel de Carvalho, Feliciano Monteiro Guedes, José Vasques Osório, D. Cândida Braz Fernandes e marido Dr. Antão de Carvalho, Zélia de Carvalho, viúva Vilela, Dr. Bernardino Zagalo, João Coelho da Silva e Jaime de Sousa, da angariação de fundos através da realização do bazar, peditórios, sorteios, espectáculos de teatro, recitas culturais e da organização de bailes. Acontecia que o Estado não os financiava e o apoio concedido pela câmara era de pequeno valor, insuficiente para manter operacional o corpo de bombeiros.
Nesse período, entre 1910/40, a actividade dos bombeiros voluntários, se era qualificada de utilidade pública, não tinha um regime financiamento público definido. Durante a primeira república, o Estado tinha legislado um modelo que permitia que os municípios cobrassem às companhias de seguros um prémio dos seguros contra incêndios contratados com as pessoas dos seus concelhos (no valor de 2% a 3% nos municípios de 2ª e 3ª Classe), para assim poderem financiar os corpos de bombeiros. Porém, ao que sabe, nem todos os municípios faziam, na prática a aplicação desta lei e nem sequer garantiam aos bombeiros as condições de resposta, de acordo com as necessidades locais.
O início dos anos 30, na região do Douro foi de fome e de miséria para a maioria dos pequenos viticultores, originada pela baixa acentuada do preço do vinho, resultante da depressão económica mundial. O município da Régua sentiu as consequências nefastas dessa grave crise. Apesar de tudo, o Dr. Mário Bernardes Pereira definiu como uma prioridade do seu mandato dotar os bombeiros com instalações novas e conceder-lhes subsídio maior que satisfizesse as condições de operacionalidade. Conhecedor da realidade em que se encontravam, da falta de condições e meios, aquela débil organização tinha de ser apoiada pela autarquia de forma mais empenhada, para que a população beneficiasse de uma estrutura de socorro preparada e eficaz. Pertenceu ao vogal Jaime Guedes, também antigo director dos bombeiros e filho do Comandante Camilos Guedes Castelo Branco, a iniciativa de elaborar uma proposta para câmara deliberar o aumento do subsídio mensal – passava a ser do montante de 50 mil escudos anuais – e de se fazer de imediato a doação de uma parcela terreno com cerca de 200m2, que teve de ser expropriada na Av. da Liberdade – a actual Av. Antão de Carvalho – para que os bombeiros edificassem um quartel de raiz.
No país, a situação politica não era nada favorável aos bombeiros. Num governo saído da ditadura de 28 de Maio de 1926, o Ministro do Interior, António Lopes Mateus pensava fazer a militarização de todo o serviço de incêndios, o que por variadas circunstâncias não se concretizou. A vereação do Dr. Mário Bernardes Pereira mostrou-se indiferente a estas ideias absurdas e adoptava uma posição mais adequada à realidade, que via os bombeiros voluntários como a principal estrutura de socorro. A sua análise está fundamentada num texto de memórias que intitulou de “Evocação” - escrito em 1958 no jornal Vida por Vida - que pelo seu valor pedagógico e interesse histórico, se transcreve na íntegra:
“Movimento por longe minha vida, com as satisfações e as amarguras que o poder do tempo me atribui.
Trouxe comigo, no meu ser, laços espirituais que me prendem à terra em que nasci. Lutei, enquanto pude, para que o meu esforço pudesse servir os interesses da Região que tem a Régua por capital. Hoje, afastado de posições activas, resta-me recordar.
O filme das minhas evocações a desenrolá-lo, seria demasiado longo. É forçoso fraccioná-lo; e depois encerrado num só sector, procurar revivê-lo.
Assim, porque vem a propósito, recordo os meus contactos com a Associação dos Bombeiros de há trinta anos, instalada aqui ou acolá, mas vivendo sempre da mesma mística, do mesmo entusiasmo. Comandava o seu Corpo Activo Camilo Guedes, poeta de raro merecimento vivido na preocupação de se esquivar à fama. Produzia versos como a silva dá amoras, sem esforço nem artifícios. No quartel da Rua dos Camilos, a sua presença criava uma atmosfera de respeito e afectividade.
Não sei porquê, encontrei-me a presidir à Direcção. Pouco podia realizar-se naquela casa pobrezinha onde faltava pecúnia e sobravam aspirações e boa vontade. À margem da directoria, a minha deformação profissional levou-me a tentar umas lições sobre socorros urgentes a sinistrados; porém a carência absoluta de material anulou o interesse dos alunos e, com o deles, o meu.
Foi nessa qualidade de director que, num jantar de gala, no edifício do Asilo V. Osório, tive de saudar o presidente da vereação; dos cumprimentos passei às lamentações e às frias considerações orçamentais. Mostrei quanto era injusta a atitude da Câmara para com os bombeiros, Tudo se resumia à concessão dum subsídio mensal demasiado pequeno, em face dos encargos que o município viria a contrair se viesse a organizar os seus serviços de incêndios, no dia em que a Associação, privada de recursos tivesse de findar. Bem sabia eu que não findava, Rodeava-a, certo carinho dos particulares; e, no coração dos bombeiros havia, (e continuada a haver) abnegação e fé.
Fiz o discurso e tudo ficou na mesma. Ninguém estranhou e eu não estranhei. Mais consegui, seguidamente, a brincar, do que naquele momento a sério. Armei em revisteiro, Ninguém se lembra já da “Régua-Filme”, revista em alguns actos e uns tantos quadros. Estamos velhos, os que restamos da estranha companhia teatral. A revista era um pastelão que eu cozinhei como pude, criando a letra e a música dum número en¬quanto me deslocava para ver um doente e carpinteirando um quadro à noite à espera do sono. Copiei algumas figuras do original, comentei com irreverência os sucessos da terra. Ninguém se zangou. Alguns “actores” foram admiráveis nas suas rábulas. Os que assistiram lembrem-se, por exemplo, do Henrique Teixeira!
Parte das receitas coube ao Bombeiros, como era natural!
Foi então que o acaso me levou à Comissão Administrativa da Câmara. Mais que, o acaso, a circunstância de se terem colocado a meu lado alguns rapazes, bairristas e de valor. Não sei compreender o ambiente de carinho que, naquele momento, suavizou à nossa volta os embates políticos. Puderam ser examinados os principais problemas administrativos; e lá estava sempre o capitão Araújo fazendo, com as verbas, jogos malabares, para tornar possíveis as realizações. E assim é que os Bombeiros levaram o seu aumento de subsídio e receberam o terreno para edificarem a sede. A par do auxílio material, procurou-se promover uma justa consagração moral: acima do louvor, era indispensável que os Altos Poderes do Estado se pronunciassem. Por mais que a justiça se evidencie, a máquina burocrática tende frequentemente a emperrar. Mas não persistiram obstáculos perante a evidência das razões; e a Associação foi agraciada com a Ordem de Benemerência. Mais tarde, viria a de Cristo elevar o nível da consagração.
Nós, os da vereação, éramos um grupo de novos, inexperientes, cheios de boa-fé. Poucos sabíamos de facciosismos manobras políticas (não é assim, oh Jaime!) mas éramos, de puros intentos e amigos da nossa terra. E, porque a Associação dos Bombeiros bate fervorosamente o coração da Régua, nunca teríamos satisfeita a consciência bairrista se não nos sentíssemos irmanados, nas mesmas aspirações, com os devotados membros da Instituição.
Cerimónias particulares, actos protocolares, esqueci a maior parte porque mal pude senti-las; prazer, elevação, orgulho de reguense, tive quando por via do meu cargo condecorei e abracei o patrão Álvaro no salão nobre da Câmara!
Hoje, recordando a entrega, solene do terreno à gloriosa Associação Humanitária, participo, em espírito, do entusiasmo com que a nova sede é inaugurada e formulo, para os Bombeiros os mais sinceros votos de prosperidade”.
Quando nos anos 30, o Estado fazia muito pouco pelos bombeiros voluntários, o município da Régua tomava uma decisão politica que, não sendo inédita no contexto nacional, mudava a filosofia de relacionamento e de apoio aos bombeiros. Aproveitando a sua experiência de dirigente associativo, o Dr. Mário Bernardes Pereira mudava a má relação de convivência e, ao mesmo tempo, fazia com que os bombeiros elevassem o seu moral e a qualidade dos serviços prestados.
Esta deve ter primeira parceria do município reguense com os seus bombeiros. Foi um novo paradigma para o seu futuro que, apesar de novas dificuldades e tormentas, se tornavam uma força de socorro mais dinâmica e, sobretudo, melhor preparada para enfrentar suas missões de socorro. Em tempos difíceis, o Dr. Mário Bernardes Pereira provava que um sistema de protecção civil municipal tem de articular sempre com os bombeiros, a quem se devem garantir os meios essenciais.
Num presente tão incerto como o que vivemos, no início deste século XXI, o exemplo excepcional do Dr. Mário Bernardes Pereira deve ser evocado pelas suas próprias palavras e destacado como boa prática, nem que seja para servir de um ensinamento para todos aqueles que tem a responsabilidade de garantir no concelho de Peso da Régua, a protecção e o socorro de vidas e bens.
Pelo que nos bombeiros da Régua, as gerações vindouras devem gravar numa pedra de memórias os nomes destes dois reguenses – Mário Bernardes Pereira e Jaime Guedes – e, ao seu lado, o de Dr. José Ernesto de Sousa e de Camilo Guedes Castelo Branco, que eram, respectivamente o presidente da direcção e o comandante dos bombeiros, desses tempos difíceis de 1930, que contribuíram para que as novas parcerias entre a Autarquia e os bombeiros se intensificassem e, ao longo do tempo, tenham dado resultados positivos, sempre com o objectivo principal de garantir em qualquer situação de catástrofe aos cidadãos, um verdadeiro e eficaz serviço municipal de protecção civil.
- Peso da Régua, Novembro de 2010. Colaboração de J A Almeida* para Escritos do Douro 2010. Clique nas imagens acima para ampliar.
- *José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também crónicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária, fatos do passado da bela cidade de Peso da Régua de onde é natural e de figuras marcantes do Douro.
Jornal "O Arrais", Sexta-Feira, 3 de Dezembro de 2010
Arquivo dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua
A Evocação do Dr. Mário Bernardes Pereira - 1ª Parte.
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Jornal "O Arrais", Sexta-Feira, 3 de Dezembro de 2010
Arquivo dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua
A Evocação do Dr. Mário Bernardes Pereira - 2ª Parte.
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