sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

28 de Novembro

A  AHBVPR celebra hoje o seu 134º aniversário, o que faz dela a mais antiga do Distrito e uma das mais antigas do País, motivo de orgulho para todos nós.
De 23 de Abril de 2010:
(Clique na imagem para ampliar)

Dedicado ao Bombeiro Auxiliar Zé Penajóia.
28 de Novembro… é o dia do aniversário da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua e mais um dia de festa para a cidade.

O programa, ao longo dos anos, é quase sempre o mesmo, é por norma inalterável, apenas muda circunstancialmente quando há inaugurações de benfeitorias no património e a bênção de novos carros de fogo e de ambulâncias. Acima de tudo, nesse dia, a população espera nas ruas da cidade, o desfile do corpo de bombeiros, com os sons e colorido da fanfarra a abrir, faça sol, frio ou chuva. Mas, começa-se sempre com a alvorada de fogo de morteiros. Depois, com os directores dos corpos sociais presentes, erguem-se no mastro as três bandeiras: a da associação, a do município e a de Portugal. De seguida, caminha-se para os cemitérios de Godim e do Peso, para em sinal de respeito se deixar uma flor nas sepulturas de bombeiros e directores falecidos. Assiste-se à celebração da Missa Solene na Igreja Matriz com muita fé e grande devoção divinal. Perto do meio-dia, recebem-se na entrada do quartel as principais autoridades municipais e nacionais, os representantes das colectividades locais, os amigos e velhos beneméritos. No Salão Nobre, quase sempre cheio de convidados, o ritual persiste nos agradecimentos e nas cortesias e ouvem-se bons discursos a exaltar o voluntariado e os generosos bombeiros de todos os tempos. Não se esquece o mérito e dedicação dos mais assíduos que são reconhecidos com medalhas de louvor. Finalmente, a festa prolonga-se no tradicional almoço de confraternização entre bombeiros, directores, associados, benfeitores e muitos amigos convidados.

Em cada aniversário, a cidade aproxima-se mais dos seus bombeiros. É isto mesmo que recorda o Dr. Manuel Augusto Escaleira, como antigo director do jornal “O Arrais”, no interessante texto “Vida por Vida”, em que expressa da melhor firma o significado de um aniversário dos Bombeiros da Régua, o festejado 103º. da Associação:

“Não é preciso ser angélico para verificar que, no mundo em que vivemos, campeia o ódio, o egoísmo e a inveja. Poderíamos também notar que os homens esquecidos da sua dignidade, são frequentemente um… para o seu semelhante.

Por isso, é reconfortante ver os exemplos de doação ao serviço, por parte de um punhado de almas generosas que tudo dão, sem nada esperar em troca.

(…)

Dentre eles destacam-se os Bombeiros Voluntários.

O seu trabalho merece o reconhecimento de rodas as pessoas de carácter e o seu realce nos meios da comunicação social.

Talvez, não seja a pessoa mais indicada para o fazer, mas sinto por estes homens desprendidos, abnegados e corajosos um respeito extraordinário.

Imagino-os numa festa familiar, num convívio de amigos ou durante o sono repousante. Toca a sirene… Eis que correm, como para ganhar um prémio, em direcção ao Quartel. Aí, num ápice, equipam-se e partem.

Vão sem uma palavra de revolta ou um gesto de enfado, para se entregarem totalmente ao trabalho, não pensando na fadiga, nem olhando a perigos.

Quantas vezes não foi a sua chegada pronta que impediu a destruição total dos bens ou a perda de vidas humanas!...

E, quando regressam, cansados, sinto-lhes no rosto sereno, a alegria do dever cumprido. Por tudo isto estes Homens merecem o nosso apreço, compreensão e estima.

Não admira, portanto o entusiasmo que anualmente se gera à volta do Aniversário dos Bombeiros Voluntários da Régua. Os nossos bombeiros completaram o seu 103º Aniversário.

Foi um dia de festa, mais uma festa íntima, como é próprio da família unida. A vila e o concelho do Peso da Régua estão com os seus bombeiros, porque os bombeiros estão com os reguenses.”

Costumam os bombeiros aproveitar o aniversário da associação para tirar fotografias das cerimónias mais brilhantes e de fazerem o seu retrato pessoal do seu agrado, numa posse de desvanecimento individual, para o guardarem em casa numa moldura, a avivar as memórias do seu passado. Foi o que fez o bombeiro José de Matos de Carvalho – o Zé Penajóia, como os seus amigos o tratam - fardado a rigor, junto ao Mercedes Baribbi, o carro de fogo que sempre gostou de conduzir, ao deixar-se fotografar num dia festivo, que será da década de 1980.

O Zé Penajóia foi um dos últimos bombeiros do quadro de especialistas e auxiliares. Essa classificação, como estava definida no velho regulamento dos corpos de bombeiros, foi legalmente extinta. Alguém que desconhece a riqueza do voluntariado entendeu que não eram necessários. Assim, deixou de ser permitido que muitas pessoas não possam dar a sua ajuda como especialistas de uma actividade. Até há bem pouco tempo, por exemplo quem era médico ou enfermeiro prestava no seio dos bombeiros os cuidados de enfermagem e de saúde e quem era motorista profissional conduzia as ambulâncias e os veículos de fogo. O quadro de bombeiros especialista e auxiliares não devia ter acabado, faz falta às corporações, pelo que tem de ser recuperado. O exemplo do Zé Penajóia prova como, através do voluntariado, certas pessoas podem ser úteis. No seu caso, ele alistou-se por volta de 1976 e serviu nos bombeiros até Março de 2010. Desde então, passou a integrar o chamado Quadro de Honra da Associação, o lugar para os bombeiros mais antigos e que deixaram a prática da actividade.

Durante 34 anos, o Zé Penajóia foi bombeiro auxiliar motorista. Sempre que os fogos apertavam era chamado para conduzir os veículos pesados. Muitas vezes, o Comandante Cardoso pediu a sua colaboração. Mas, conduziu também as ambulâncias de transporte de doentes quando não havia profissionais disponíveis para tanto serviço. Chegou a ir a Espanha, a Valhadolid, para trazer de volta um doente que aí se encontrava hospitalizado. Era a primeira vez que uma ambulância dos bombeiros da Régua tinha de passar as fronteiras do país. Não havia bombeiros que quisessem fazer esse serviço. Ele não hesitou em aceitar a missão. A viagem correu-lhe bem, sem nenhum percalço pelo caminho. Alguns anos depois, voltava a fazer nova viagem a Espanha, para transportar de ambulância um cidadão internado numa clínica.

Este é um dos muitos serviços que cumpriu com dedicação, zelo e sacrifício. A Direcção e o Comando da Associação distinguiram e louvaram-no com a atribuição de algumas medalhas: Cobre (1985), Prata (1991), Ouro (1994, 2000 e 2007), pelo tempo de bons e assíduos serviços e de dedicação e efectivos serviços prestados à causa do bombeiros portugueses.

Quem conhece o Zé Penajóia sabe que é um homem de certezas. A paixão pelos bombeiros transmitiu-a ao seu filho Marco Paulo, sapador no Batalhão do Porto e as suas duas netas, à Liliana e à Margarida, uma estagiária e a outra infante, na corporação da Régua. Tem 70 anos, mas possui uma indomável genica, que não lhe faz aparentar tanta idade. É um dos mais velhos e mais conhecidos chaufferes de táxi com o que ganha a vida. Tem uma casa de pasto, a Adega Penajóia, no Largo do Tanque Redondo, no Salgueiral, apreciada por servir bom vinho do Douro e refeições económicas confeccionadas com os sabores antigos. Nesse seu “santuário” gosta de evocar memórias de pessoas que não se esquecem, de velhos bombeiros e Comandantes que lhe marcaram o resto da sua vida.

Este homem não é indiferente ao presente, tem-lo visível numa fotografia que mostra o Corpo de Bombeiros da Régua, exposta ao olhar do público na sua adega. Não há ninguém que não se sinta seduzido pelos valores humanos que ali permanecem imutáveis. É mais um sinal da sua admiração pelos bombeiros. Embora haja quem desconheça, o Zé Penajóia encontra-se presente no meio desses anónimos bombeiros simples e humildes, que com o seu exemplo de coragem, abnegação, altruísmo e amor ao próximo, podem não figurar com o seu nome nas páginas da história, mas são os únicos verdadeiros heróis da nossa vida.
- Peso da Régua, Abril de 2010, J. A. Almeida.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Em conversa com Nogueira Borges - LEMBRANÇA DE NATAL

Fixo-me nesta pedra tumular, branca-escura de quantos lustres, ervas à espreita misturadas com cera derretida e flores campestres caídas de uma jarra. Debruço-me no gradeado que delimita o jazigo e penso:

“A minha geração paternal está toda aqui, com o meu Pai à frente, há mais tempo do que eu tenho de vida. Estão no silêncio da eternidade, indefesos, noites e dias sem uma Avé-Maria, sequer um ciciar dos que não esquecem. Uns, partiram, ainda jovens, sem a oportunidade de um arrependimento, um adeus; outros, velhos, cansados de tanto esperarem. O meu Pai foi sem ouvir o meu primeiro vagido (imaginou-me apenas), derrotado pela doença maldita a que chamam prolongada. Morreu sem me beijar, fazer uma festa na moleirinha, pegar-me ao colo, imaginar parecenças, mudar-me uma fralda, alvitrar um nome baptismal, embalar um sono, viver a maior seriedade amorosa da existência.

O que faz, afinal, a ilusão da vida? O que a dimensiona na escassez ou na lonjura dos anos? É a substância da dádiva e do amor, mesmo na brevidade biológica, ou o vazio desafectado no prolongamento biográfico? A vida nem ao menos tem lógica. Há quem morra sem uma ruga, com o sol e o pranto a adornar a despedida; há quem parta encolhido por remorsos velhos sem uma réstia de deixar saudades.

Morreu-me antes do tempo, sem tempo para lhe pedir um conselho, uns tostões para rebuçados ou para uma bola de futebol, para divergirmos quando não estivéssemos de acordo, para nos amarmos, sempre, até o sangue secar.

Aqui estou, só, com um sol fraquinho encoberto pelas nuvens de Dezembro a lembrar o Natal. Um Natal que nunca partilhei com ele e já nada me diz porque o transformaram numa hipocrisia, numa feira de vaidades, num símbolo pagão, materialista, sem solidariedade e sem virtude. Resta-nos as cruzes dos Cristos vivos e mortos, exemplos e memórias contra o ódio e a inveja que nos consomem. Um dia aqui estarei desde o nascimento sem ti até à morte contigo “.

Um vento agreste varre o alto da Corredoura. O sussurro da folhagem dos eucaliptos acentua o abandono do palacete envelhecido onde brinquei em criança, diante do qual encolho um grito inominável e pergunto por que vendem os homens as histórias das suas vidas? Lá ao fundo, para os lados de Rio Bom, há uma paisagem amarelecida, desamparada, com os fumos das chaminés a acentuar o deserto dos caminhos. O Douro, esse, não morre, continua a correr, leva nostalgias, sonhos e destroços. Há muitos Meninos Jesus na encosta-presépio de Loureiro, mas eu nunca tive um Pai Natal Vivo.
- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". (Atualização daqui)

Pode ler M. Nogueira Borges neste blogue e no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 5.10.1943. Faleceu em 27 de Junho de 2012 na cidade de Vila Nova de Gaia. Está sepultado em Cambres - Lamego. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial miliciano e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google.

Clique  nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Dezembro de 2012. Em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. Também publicado neste blogue em 19 de Dezembro de 2010. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

CAMILO DE ARAÚJO CORREIA - O escritor e médico do Douro 'partiu' em 30 de Outubro de 2007

Texto do blogue ForEver Pemba de 30 de Outubro de 2007, escrito portanto há 7 anos atrás:

"""A vida acontece entremeada de alegrias, surpresas e desgostos a que costumo chamar de "pontapés"... Hoje recebi mais um, bem forte, doloroso porque "partiu" um AMIGO... AMIGO que, pela distância física, nem permitiu a permuta de um último abraço de despedida !

A notícia chegou assim, bem simples:
""Lamento trasmitir esta infeliz noticia. Faleceu o nosso grande Amigo Dr. Camilo. Já transmiti à Filha os sentimentos em nome da nossa Família... Faleceu no Porto, e está a caminho da casa mortuária do Peso da Régua. Será sepultado amanhã em Canelas. Logo à noite vamos ao seu velório.""

Para os leitores do blogue e Amigos que o recordam do tempo de Porto Amélia, onde foi director do Hospital Militar nos anos 60, aqui deixo link's que permitem a leitura de alguns de seus textos. E transcrevo um de seus "Apontamentos de Histórias Perdidas".
Descansa em paz Dr. Camilo de Araújo Correa (nasceu em 1925 na cidade do Porto mas viveu na Régua desde os três anos de idade).

Quando recordo o tempo de Porto Amélia, muitas vezes me salta na memória o meu amigo Armando Cepêda.
Era um homem largo, inteligente e bondoso. No carão de pugilista a linha dos olhos e a linha da boca traçavam, a miúdo, um sorriso paralelo a deixar transparecer uma acomodada filosofia de vida.
Era casado com D. Maria, senhora absoluta da Pensão Miramar. E digo senhora absoluta porque ali quem mandava era ela. Nem o marido nem os filhos davam a mínima ordem naquela nau de tripulação negra, capaz de todas as preguiças e descuidos. Com dois berros e dois cascudos aquela criadagem indolente andava numa roda viva. D. Maria era uma senhora robusta, de língua solta com sotaque do Porto.
Parecia um salpico, na costa de Moçambique, do pincel genial de Abel Salazar, em momento de inspiração tripeira. Armando Cepêda mandava na sua oficina de reparação de motores de que era especialista em Diesel. A oficina ficava na Rampa, aquela encosta medonha que nem a bordadura de acácias rubras conseguia suavizar. Medonha e obrigatória na ligação da parte alta com a parte baixa de Porto Amélia.
Passei muitas horas naquela oficina entre carcaças da mais diversa maquinaria avariada, à espera que Armando Cepêda lhe restituísse a serventia perdida. E dava gosto ver aqueles dinossauros sair de um sono pesado e regressar ruidosamente à floresta, com uma palmada na anca. Uma palmada que só o meu amigo Cepêda sabia dar.
Conseguíamos conversa entre roncos de motor e marteladas de todos os sons. E tudo servia para dois dedos de conversa, a fazer sede para dois goles de cerveja. Guardo ainda um cinzeiro de pé alto que Armando Cepêda me fez numa pausa do serviço. É a estilização de uma cobra erguida na ponta do rabo a equilibrar meio coco na fúria da cabeça.
Antes e depois de jantar, Armando Cepêda derramava o corpanzil naquelas cadeiras do jardinzinho da pensão à espera de todos os cansaços, de todos os tédios e nostalgias. Recordo ainda o perfume adocicado das magnólias que o calor da noite parecia libertar suavemente.
Os hóspedes vinham chegando, um a um, à roda das cadeiras e a eles se juntavam residentes de Porto Amélia para dois dedos de conversa. Pessoas vindas de toda a parte pelas mais variadas razões, algumas delas muito roladas pelas mais diversas geografias. Comerciantes, agricultores, médicos, funcionários públicos, engenheiros, militares, todos enleados naquele fio de nostalgia tropical que parece igualar todos os homens.
As palavras iam ficando mais espaçadas e moles com o andar daquelas noites suadas. Mas se a conversa caía sobre o mato, Armando Cepêda erguia-se um pouco da posição quase horizontal, para, pouco a pouco, dominar o assunto.
E todos nos erguíamos um pouco também para o ouvir contar histórias de camiões atolados no matope, dos perigos e dos encantos do mato. E de caça. Armando Cepêda não era, digamos, um caçador de safaris. Era caçador solitário, muitas vezes por exigência da esposa, quando a despensa fraquejava. Apertado por ela, Armando Cepêda ia ao mato abater um javali como quem vai ao fundo da capoeira buscar um frango.
Por duas vezes o acompanhei nesta caça de subsistência. A ele e ao Jacinto dos Caminhos de Ferro devo o conhecimento do mato. Sem eles a minha África teria sido pouco mais do que uma África de cidade. Jacinto era uma velha glória do Benfica. Ter sido guarda-redes das primeiras categorias era uma recordação que lhe fazia ainda rebrilhar os olhos. Jacinto era um caçador tão metódico como apaixonado. Dois pisteíros negros, o velho Land Rover, um bom farolim e a arma escolhida para o tipo de caça determinado. E eu, às vezes, graças a Deus! Sim, dou graças a Deus por ter vivido o emocionante espectáculo de andar a esmo pelo mato, com o jeep aos solavancos, farolim a esquadrinhar os espaços mais suspeitos e a surpreender os animais na intimidade da noite.
Inesquecíveis aquelas imbabalas saltitantes e graciosas como bailarinas a fugir ao palco de luz que lhes ofereciamos. E aquela sensação de liberdade plena que se experimenta, ao descansar nas quinandas, ouvindo o crepitar da fogueira e do falajar dos negros contra o silêncioprofundo do céu?Sempre me pareceu que Jacinto, mesmo a mexer na burocracia do seu emprego, tinha os olhos no mato. Tanto que, mal deixava a secretária, caía no quarto a pintar. A pintar o mato; sempre com animais em primeiro plano e, tão recortados, que pareciam postos ali depois do quadro pronto. Não era um bom pintor. As telas eram o seu mato teórico para onde gostava de ir, a qualquer hora. Uma vez, só porque me demorei um pouco mais a ver três gnus a pastar, ofereceu-me o quadro. Na bagunça do regresso, o quadro perdeu-se. E tenho pena. Estaria hoje numa das minhas paredes com as saudades da África a retocá-lo todos os dias.
De uma vez o Jacinto convidou também para a caça o Dr. Manuel Jóia, médico do «Bartolomeu Dias», ancorado na baía de Porto Amélia, em patrulha da costa de Moçambique. Foi o seu baptismo de mato. O grande entusiasmo com tudo o que ia acontecendo redobrou quando, ele próprio, abateu um javali. Entre as seis e as dez da manhã é fácil encontrá-los nas áreas da sua predilecção. Passam como carruagens de um comboio rápido. Jacinto aconselhou:
— Aponte a um dos primeiros... Pode ser que acerte num dos últimos...
E o Manuel Jóia acertou, julgando, a princípio, não ter acertado. O raio do bicho com um rombo na barriga ainda se fartou de correr como se nada fosse com ele! Depois lá caiu como se tivesse caído do comboio.
No «Bartolomeu Dias» os oficiais comeram javali até lhe chegarem com um dedo e festejaram o seu médico como um herói da selva.
Voltemos ao meu amigo Armando Cepêda. Ele era, como já lhes disse, um caçador solitário. Saía antes da madrugada e regressava antes do entardecer. Da segunda vez que fui com ele «à carne» aconteceu uma coisa que me apetece contar.
O sítio escolhido para o abate foi uma velha machamba de milho abandonada, entre Porto Amélia e Mecufi.
— Aqui é um sítio bom por causa dos restos do milho e não há macacos a denunciar a nossa presença com a gritaria — disse o Armando Cepêda, saindo da picada.
Não havia meia hora de sol, quando apareceu um javali do outro lado da pequena veiga que dominávamos completamente de onde nos haviamos instalado. Era um animal relativamente pequeno, a grunhir e a estraçalhar a um e outro lado do focinho temeroso.
Parecia nada recear e, no entanto, toda aquela energia de patas e focinho parava, de vez em quando, como se tivesse havido um curto-circuito. Depois de uns segundos de imobilização total, a fúria do javali restabelecia-se para, daí a pouco, sofrer nova pausa.
— O bicho está desconfiado... eles são muito desconfiados... — disse Armando Cepêda, à boca pequena, sem tirar os olhos do javali.
Como vinha na nossa direcção, a certa altura ficou a uma boa distância de tiro.
—Então?!—perguntei baixinho.
— Quanto mais perto o abatermos, menos custa a arrastar para o jeep...
— Pois é... — disse, reconhecendo a minha inexperiência.
Armando Cepêda sorriu aquele sorriso de linhas paralelas.
Quando o javali ficou a uns trinta metros, perguntou-me se queria atirar.
— E se falho e não aparece mais nenhum? Não podemos aparecer à D. Maria de mãos a abanar!...
— Deus nos livre!... Ninguém a aturava!...
Soaram dois tiros com intervalo de um segundo. O javali caiu no meio da erva como um saco de batatas.
Com um arame atado às patas de trás e um pau atravessado na outra ponta foi fácil arrastá-lo até ao jeep.
O «mata-bicho» à sombra daquela mangueira isolada no mato rasteiro, ainda hoje me sabe. D. Maria era uma senhora farta. Arranjou-nos um farnel que dava para atravessarmos a África. Fígado de cebolada, meio metro de omelete, carne assada, queijo, muito pão, cerveja e água mineral. Do começar ao palitar, foi uma larga hora a comer. A comer e a contar coisas.
No fim de arrumar a tralha, com o método e a lentidão que o caracterizavam, disse o Armando Cepêda, já todo contente com a ideia:
— Vamos cumprimentar o meu amigo Rosas! É chefe de posto aqui perto. Vai ficar todo contente!
Era realmente ali perto e o senhor Rosas ficou todo contente. Quis logo que nos sentássemos na varanda e foi dizendo:
— Vindes em boa altura! Tenho uma esplêndida carne de búfalo novo; vou já arranjar uns bifes e umas costeletas...
— Para mim, não! — cortei, aflito.
— Ora essa!... Por quê?! — admirou-se o senhor Rosas.
— Desculpe... é que acabámos agora mesmo de comer este mundo e o outro...
—Bem... Bem!—respondeu desalentado, mas logo a berrar lá para dentro:
— Hassan!
Apareceu um negro, a limpar as mãos, a fazer vénias e a sorrir de orelha a orelha.
— Prepara uns bifinhos e umas costeletas daquela carne... com aquele molho... Tu sabes como é!
Hassan sabia como era. Meia hora depois, apareceu na varanda com uma travessa enorme no meio de uma pequena mesa portátil, já posta para três pessoas. O cheiro da carne apanhou-me de surpresa. Era de tal maneiras agradável e penetrante que até as glândulas salivares me doeram!
— Vai uma pontinha, doutor, só para provar? — perguntou-me o senhor Rosas de olhinho irónico.
— Isso cheira pela vida... — consegui dizer em plena vertigem.
A pontinha de carne que o senhor Rosas me pôs no prato «só para provar» foi uma costeleta do tamanho de uma raquete de ping-pong espessa, suculenta e aromática...
A princípio com uma certa cerimónia e depois com uma certa gula lá fui andando pela costeleta fora. Acabei a «raquete» como mandam as regras: pegando-lhe pelo cabo... Quando pousei o osso rapado, diz-me o senhor Rosas com sorriso de vitória:
— Então, doutor, estava boa?
A vitória não foi do senhor Rosas. Foi da África. Daquele sentir tudo de novo, como uma estreia dos sentidos, em cada momento que passava.
Conheci Megama Abdul Kamal muito antes de o vir a encontrar, frequentemente, na Pensão Miramar. Megama era régulo do Chiure, com influência religiosa numa larga faixa de terreno entre o Rovuma e o Lúrio. Homem abastado, senhor de terras e camiões, era também transportador habitual da grande companhia algodoeira Sagal.
Fui a sua casa a convite do Armando Cepêda, chamado a consertar o motor de um poço. Nas apresentações vi que eram grandes amigos. Julgo que, por isso, Megama me olhou logo com respeito e franqueza, sem duvidosa humildade dos negros daquele tempo.
O motor ficou composto num instante. Nós levámos mais tempo... Megama quis que provássemos de todos os seus petiscos. Seu era também o café, da planta à chávena. A mâozada firme e confiante com que nos despedimos havia de repetir-se, vezes sem conta, por todo o meu tempo de Porto Amélia.
No regresso ao jeep, ouvi falas e risinhos por detrás de uma paliçada.Notando a minha estranheza, Armando Cepêda logo me esclareceu:
— São as mulheres de Megama...
Na cidade, vim a saber pelo Jaime Ferraz que deveriam ser umas sete... Em Porto Amélia o Jaime sabia um pouco de tudo!
Um dia, Megama apareceu no Hospital Militar todo dobrado e cheio de dores. Era uma hérnia estrangulada, há três dias... Os cirurgiões costumam «berrar» com os doentes por virem tão tarde, em evidentes situações de solução cirúrgica. Mas o Dr. Manuel Simões Coelho não berrou. Tratava-se de Megama Abdul Kamal! E por se tratar de tão importante personagem o post-operatório teve aspectos de pereqrinação.
Vinham negros de toda a parte, trazidos por aquele fio invisível que é o sentimento religioso, temperado na fé e na obediência.
Com o vai e vem da gentiaga, a vida do hospital acabou por se perturbar. Ao ponto de, pelo terceiro dia, o Simões Coelho me pedir:
— Tu, que és todo amigo do Megama, podes garantir-lhe que está livre de perigo, que tudo vai correr bem...e pedir-lhe que faça constar as suas melhoras, a ver se acaba esse corrilório!...
Assim fiz. Megama compreendeu e actuou muito bem. As visitas acabaram de um dia para o outro. Nem umas só voltou a aparecer! Ainda hoje me espanta o extraordinário poder de comunicação dos negros naquelas lonjuras primitivas, sem rádio, sem telefone e sem correio.
Armando Cepêda era um caso curioso de fotógrafo. Nem amador, nem profissional. Era fotógrafo de ocasião, para ganhar uns cobres suplementares. Essa ocasião surgia quando os indígenas precisavam de retrato para a caderneta. Dava-lhe jeito aproveitar os domingos, que no mato não têm qualquer significado. Era sempre recebido nas aldeias com grandes manifestações de contentamento. Nas pausas da algazarra, fotografava quatro negros de cada vez, sentados numa tábua. Depois, no «estúdio», a tesoura lá os separava. No domingo seguinte, a caminho de outra, passava pela aldeia fotografada e distribuía os retratos. Havia corridinhas e gritos de alegria, com todos a querer ver a cara de cada um no retalhinho de papel.
Um dia houve um pequeno acidente... Toda a gente parecia satisfeita, quando apareceu uma reclamação, já com o jeep a ronronar a partida.
— Patrão!... Patrão!... esta não é do nosso!
— Não é tua?! É tua, sim senhor!! — garantiu Armando Cepêda olhando para o negro e para o retrato.
—Não é!... Não é!... Nosso não tem chapéu!
Armando Cepêda sabia lidar com os negros. O grande respeito e admiração que lhes infundia emanava do seu grande espírito de justiça e bondade. Além disso, era um branco forte, compunha máquinas e matava leões.
Não teve a mínima dificuldade em desfazer o equívico. Pôs a mão no ombro do negro e sossegou-o, assim:
— Ah!... o chapéu?... Fui eu que pus. É saguate! (brinde, oferta)
Os olhos do negro rebrilharam com aquela gorjeta inesperada. Depois vieram as palavras de gratidão de uma boca babada de riso:
— Brigado, patrão!... Brigado, patrão!...
E partiu, a misturar-se com os outros. Talvez a fazer-lhes inveja.
- Camilo de Araújo Correia - Livro de Andanças.

O calor está chegando aos trópicos...
Com ele vem o canto das cigarras.
Mas hoje, seu som parece-me mais triste !
Jaime Luis Gabão"""