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quarta-feira, 23 de junho de 2010

O SORRISO DO PIRES

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No arredor de Porto Amélia, na confluência da picada para Montepuez, ficava o polígono do Exército, que, nesse ano de 68, juntava, entre outros, o comando do sector e a companhia de caçadores com guarnição metropolitana e provincial.

O pessoal, depois do jantar, juntava-se, na esplanada da messe, a conversar, a jogar o xadrez, as damas, a sueca ou os dados. Muitos davam uma volta à Jerónimo Romero para bebericar umas cervejas frescas nos seus dois ou três bares. Esta era a maneira de fugir àquele ambiente soturno, qual plataforma de logística bélica, com chegadas e partidas de Unimogues, Berlietes e Jipes despejando camuflados poeirentos. Vinham do mato com a pressa de um banho e de um prato quente numa mesa, debaixo da qual pudessem meter as pernas. Traziam olhares esgazeados, como se fugissem de um susto; rugas precoces de cansaço repisado, como se toda a angústia do mundo lhes encolhesse a pele. Havia noites em que a sala tinha mais comensais forasteiros que residentes. Era vê-los, estômagos compostos, a dirigirem-se para os terreiros das tembas ou para as cubas-livres e uísques na sala do barco, se fosse dia de S.Vapor, e que, acostado no minúsculo cais, noite fora, carregaria algodão. Os que regressavam aos seus destacamentos disfarçavam a contrariedade com gargalhadas desvirtuadas ou afivelavam o rosto, tentando esconder a interrogação futura – os seus olhares tinham a sombra da dúvida, a antecipação do sofrimento.

João, daquela vez, ia sozinho. Não lhe apetecia trocar palavra. Sentia-se sem préstimo. A fala era consigo, num turbilhão silencioso. A informação chegara por mensagem relâmpago e secreta, mas, instantes passados, já todo o sector a conhecia. O Pires morrera na Serra Mapé quando descia para Macomia, fuzileiros já incorporados após nomadização. Ficaram a olhar uns para os outros, à espera de que alguém contestasse a notícia. Então ele oferecera-se, todo contente, para ir buscar alguns dos seus amigos de infância, e morrera? Assim: «Comunica-se a morte em combate do...». Como? Em combate? Mas ele fora só ali abraçar os seus antigos companheiros de escola, que não via há muitos meses, e vinha já. Tocava-o um aturdimento sem compreensão, uma amarga irracionalidade, qual mudez do pensamento. Quando, ao escurecer,a patrulha regressou, com o furriel alentejano enfiado num saco de dormir, as lágrimas saltaram como balas de revolta, bocas fechadas nas caras de cera. Uns devem ter pensado «Olha do que me safei.», outros «Que porcaria de destino este.». O comandante, habituado, ou fingindo que sim, chamou o soldado cangalheiro para transformar o Pires num soldadinho de chumbo à espera de um barco ou avião.

Atravessou a avenida com passeios de terra vermelha, fumando LM, sem se perceber. Subiu à esquerda, passou pelo palácio do governador com dois sipaios, envoltos em capas de lona, pasmados à entrada. Um pouco acima, debaixo de mangueiras gigantes, ficava a casa do inspector da pide, lendo, talvez, sob a luz coada de um candeeiro de pau preto, os relatórios da subversão; ao fundo, rodeada de acácias rubras, a casa do seu conterrâneo Jaime, onde matava a fome da comida das suas terras. Desceu, encurtando caminho pelas escadas, que ligavam a alta à baixa da pequena urbe, e no Pólo Sul pediu uma laurentina.Como era possível morrer quando a vida mal começava, sem pai nem mãe saberem, uma razão a justificar a imolação? Levantou-se, descendo a Rampa, passou pelo barracão dos monhés, anunciando uma fita indiana, e parou no muro sobranceiro ao Índico, que reflectia a prata da lua. À sua direita, numa restinga, o caniço do Paquitequete preparava-se para fazer de lupanar nocturno.

Subindo, agora, as dezenas de escadas, avizinhou-se dos edifícios administrativos, ouviu os ecos dos futebolistas a treinarem, no Desportivo, sob uns holofotes, lançando mais sombras que luz, foi falar com o Eustácio do Niassa, pediu-lhe o Land-Rover e desarvorou para a praia. A balalaica cacimbada, com o andamento, acentuava-lhe a friura. Era em Setembro e as noites enovoavam de humidade. O Pires não riria mais consigo. Contava-lhe anedotas alentejanas, vingando sempre o escárneo tradicional. Estacou junto à casa em que, aos domingos, a oficialidade se juntava. Buzinou e clamou pelo Gabriel Mazumbo. Pediu-lhe umas barbatanas e uma toalha. «Chi!, alfere, vai nadar,gora?!...» Sim o alferes era doido, estava “apanhado”, ia lavar a alma nas águas salgadas; ia purificar-se do nojo do mundo que só vomitava o sangue da morte, dos grandes sacanas que usavam o mando para chantagiar a obediência, era uma raça maldita de eunucos que discutia as fardas sem nunca as ter vestido. «Patrão, n´guenta frio!...» Parece-te, irmão negro. Tu também aguentas tudo, até as maluquices de um militar branco que não te deixa dormir e desinquieta-te da sonolência da fogueira de capim. Estou a ferver, meu amigo, uma caldeira queimando-me a consciência de que existo, mas sou um cobarde que não sai do rebanho, a ver se nenhuma vergastada do “pastor“ me quebra os ossos, me leva ao açougue.

Agasalhado por um dolmen, que o mainato retirou de um prego da parede, assentou-se num degrau. Fez-lhe sinal para vir para a sua beira. Ofereceu-lhe um cigarro e puseram-se os dois a fumar. Era tão serena aquela baía, desenhada em meia lua, as espumas das ondas como carícias de sensualidade! Ao longe não se erguiam adamastores tétricos ou gritos de afogados. Como eram belas as noites de África! Como era obsceno morrer-se num palco assim! Por que não tinha a terra condições para se transformar num céu? A natureza conversava entre murmúrios de amor, namorando-se e amando-se na concretização das paixões eternas, ciciando juras que só ela entendia.
Continua...

- Por M. Nogueira Borges, Porto, 15/6/10. Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. Pode ler também os textos deste autor no blog ForEver PEMBA.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

A ROGA

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Em Setembro despertava-se da moleza de Agosto. Os que haviam debandado para banhos regressavam com as preocupações recobradas e os que tinham ficado esqueciam as sestas. Os casais iniciavam os preparativos da novidade: consertavam-se os cestos e soldavam-se as latas fundeiras; lavavam-se os lagares e as prensas; varriam-se os quintais, mesmo sabendo que eles ficariam imundos em poucos dias; verificava-se o estado dos toneis depois do dessarro e da mechagem; oleavam-se as tesouras, areavamse os potes e arejavam-se os armazéns e os cardenhos.

Com a esfolha feita os lavradores vistoriavam as vinhas, afligiam-se com um ou outro podre, faziam figas aos agouros de chuvas temporãs - às vezes desejavam-nas perante a secura da polpa dos bagos -, escutavam os feitores, consensualizavam o início das vindimas e mandavam vir as Rogas que, ajustadas com o pessoal diário da terra, seriam os intérpretes da harmonia final de um solfejo tecido só Deus sabia com que receios.

Eram os serranos. Vinham das terras de Baião, ali na fronteira do maduro e do verde, ou das cercanias beirãs em que os migalhos de cepas se perdiam nos fraguedos sem benefício. Juntavam-se por afinidades familiares, de amizade, ou pelos empenhos aos rogadores. Desciam ao Douro certos de uma jorna aumentada com que cultivariam os seus bocados ou reporiam os gastos com as vestimentas das festas de Verão. Cantando e dançando a chula ou o malhão ao som das concertinas, dos bombos, dos ferrinhos, das harmónicas de boca e, em alguns casos, das violas braguesas, chegavam cansados mas alegres. Roga que não exibisse este instrumental não era roga, porém, um ajuntamento despersonalizado sem hipóteses de renovação assalariada, a não ser que, no ano seguinte, se incorporasse em outros grupos de merecimento. Enchiam as estradas e os caminhos rumo às Quintas, onde, durante longos dias, cortariam as uvas, transportando-as até os lagares que, depois, pisariam em noites de pousa, quantas vezes prolongadas em incubações urgentes.

Eu via-as a meio do Caminho Velho que dá de Remostias a S. Gonçalo. Traziam, penduradas nos bordões, as trouxas para acartarem os cestos, alguma roupa extra para maliciar em bailaricos e, nos rostos congestionados, um entusiasmo festivo. Alcançado o alto sobranceiro ao vale vinhateiro - a quem os antigos chamavam Poço do Vinho de Feitoria - que se estende até os muros do Peso, os homens e as mulheres da Roga cumprimentavam efusivamente os já conhecidos de vindimas anteriores. Os novatos, medrosos e rituais, de olhar esquivo, insinuavam-se no agrupamento até se igualarem na confraternização. Combinavam-se rodadas de quartilhos e enrubescidos bailaricos. Os patrões desciam as escadas que ligavam a cozinha ao terreiro, as reverências prodigalizavam-se no contágio da euforia, e havia quem distinguisse a dona da casa: «Vindo eu daqui tão longe/ Sem pôr os pés na calçada/ Venho dar os parabéns/ À senhora esposada.» O som da concertina e dos ferrinhos alegrava os corações que se esvaziavam de diferenças. Quando a noite se anunciava, a ceia retemperava esforços e espevitava vigores. O Feitor aconselhava o deitar cedo; os homens e as mulheres escolhiam os lugares em cardenhos separados, à mistura com pilhérias libidinosas.

O dia começava cedo com dejejum de bagaço, broa e uma lasca de bacalhuço; a meio da manhã, serviam-se batatas com sardinha de barrica. O retinir das tesouras, pelos anfiteatros do gigantesco Coliseu Duriense, confundia-se com as cantigas e os chistes. Todos, novos e velhos, isentavam-se de pudores, mas, não chegavam ao destempero. Os novos arquitectavam namoricos e muitos beijos se roubavam a coberto da folhagem dos bardos. Os velhos, de nostálgicas sensualidades, instigavam-nas como num remorso por tempos de pouco proveito... As mulheres cortavam os cachos com a preocupação de não deixarem respigo ou bagos pelo chão, e gritavam «cesta!» para que o rapaz mais próximo a levasse para os cestos vindimos. Os homens aproveitavam para descansar, limpavam o suor, esvaziavam o garrafão e fumavam um cigarro; quando a fiada se completava, punham as trouxas nos ombros que fixavam nas testas com tiras de couro ou pano de saco. Subiam dos côncavos profundos, desciam as encostas arriscadas, arrastavam-se pelas estradas de asfalto escaldante, poisando, a intervalos, os carregos nos muros, para prosseguirem, depois, ao compasso da concertina ou da gaita de beiços do primeiro da fila, até alijarem a carga, com bufos de alívio, nos lagares.

Terminado o trabalho do dia, as mulheres e os homens aperaltavam-se – mais elas do que eles -, misturavam-se aromas de perfume Tabu, os rostos recuperavam  serenidade. No fim da ceia juntavam-se os instrumentos, afinavam-se modas e dançava-se sob a luz mortiça. Acudiam aos portões trabalhadores de outras vindimas, pediam licença, o quinteiro transformava-se num palco de gente saltitante, requebrada, envolvente, com o malhão no corpo, a chula na alma, a satisfação nos olhos, o riso nos lábios, o fogo no sangue e a disputa concupiscente das raparigas mais bonitas.

O rogador (como me lembro!) era um tipo alto, pescoço de bisonte, ombros hercúleos, mas – contraste humilhante - , mancando desajeitadamente; quando andava, a sua perna direita parecia que enxotava cães que se lhe tivessem filado. Chegava-se à Micas, mulher de muitos homens, e berrava-lhe, julgando que cantava: «Ai anda cá ó cantadeira/ Vem p´ra minha beira/ Anda cá p’ró pé de mim/ Ai quando estás à minha beira/ Querida cantadeira/ Ai para mim é um jardim.» A Micas, de olhar malhadiço, respondia-lhe: «Já te ouvi querido cantador/ Estou agora a chegar/ Aqui estou à tua beira/ Ouve lá ó cantador/ P´ra contigo dançar.» Depois, num repente, descabreavam pelo meio dos outros, que se afastavam a entusiasmá-los com palmas, num vira e revira incrível. Ele agarrava-a, soltava-a, recuperava-a, sempre a abanar com a perna, e a Micas, agitada num riso de gralha, a deixar-se levar com o descaro da experiência. Acabada a música, ficavam à espera da seguinte, enlaçados, a arfar, de olhos desassossegados.

Quando as estrelas iam altas e a lua se pousava no Cume, o Feitor ordenava o recolher. Apagavam-se as luzes, fechavam-se os lagares e os portões, os cães ladravam, a gataria reatava o cio, os bêbedos esborrachavam-se contra as paredes, arremessando asneiradas e desafios de navalhas, a brisa de S. Pedro amaciava frémitos e o sono vinha pesado que, ao outro dia, a vindima e as cantigas continuavam.
- Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".

  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. Pode ler também os textos deste autor no blog ForEver PEMBA. Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Memórias dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua

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Por *M. Nogueira Borges 

Lembrar-se-ão alguns leitores do que disse Thomas Mann, ao deixar a Europa, em 1938, para se estabelecer na América: «Onde eu estou, está a cultura alemã.» Hoje, 74 anos depois, um português que emigre, repete o que gemiam, com outras palavras, os da década de sessenta, quando a salto, despedaçavam o corpo nas escarpas da fronteira: «Onde eu estou, está a crise portuguesa.» Por isso eles fugiam; por isso agora o fazem - ao menos! - conforme a lei, mas igual apuro.

Vivemos um tempo de desgosto patriótico, de míngua financeira e moral. Há quem brade aí pela reincarnação salazarenta de chicote, pés descalços e uma malga de sopa; quem subscreva abaixo-assinados pelo julgamento, nos pretórios nacionais, dos políticos de ontem; os que defendem um castigador emagrecer fiduciário para – num brasileirismo que a indigência do acordo ortográfico já não faz corar – o povo, esse malandro perdulário, cair na real.

É nestas alturas que me apetece sair deste ambiente de funeral, longe dos noticiários de sangue e de morte, da fome calada e do ódio recalcado. Afastar-me das quadraturas redondas ou rectangulares e dos seus argumentos de plástico, dos discursos com palavras redondas que urdem lençóis de celofane a fingir água em palco de teatro.

Agarro-me, então, às biografias e aos livros de memórias heróicas. Umas e outros transportam-me ao tempo da cidadania e do amor comunitário; à transparência de gente de relevo que, por excelência própria, se alcandorou ao cume da história. É a diferença das almas, as nascidas na elevação e as desfeitas na frieza; as que sabem que o orgulho destrói o amor e a tolerância cristianiza a felicidade; as que juram que a virtude é a ânsia de compor a vida como uma obra de arte e a beleza e a alegria de fazer da dádiva uma vida; aquelas que não ignoram a diferença entre suportar e sofrer, e por isso, não discutem sacrifícios nem as horas de os fazer ou contabilizar; as que vivem dentro de homens que aprenderam de nascença a salvação da humanidade na não opressão dos seus semelhantes, mas na fraternidade do abraço que dá tudo sem esperar paga.

O título que encima esta crónica é igual ao do livro que o dr. José Alfredo Almeida publicou, em edição da Mosaico de Palavras, acerca da Associação dos nossos bombeiros, a que ele preside. É uma surpreendente e cativante obra, escrita com emoção e, por isso, me comove, com muito trabalho de pesquisa e, perante a qual, me dobro. Aqui estão as façanhas de homens honrados na sua farda e no seu exemplo. São memórias, factos e figuras, enquadradas na nossa HISTÓRIA; da viticultura – ora ajustada ora rapace - à psicologia humana – ora refinada ora decadente -; do teatro à literatura; da grandeza popular à debilidade política da época, afinal de todas as épocas; mas tendo sempre como matriz descritiva a luta dos NOSSOS BOMBEIROS. O autor esconde o panegírico da heroicidade daqueles, os seus feitos, as suas excepcionalidades. Emociona-me o carinho que o José Alfredo Almeida coloca na defesa apaixonada do voluntariado, na adoração pela saga dos homens da paz, na comparação entre esses tempos com os de hoje e das lições que se retiram.

Depois, ele tem a prerrogativa de saber despertar memórias que me transportam às noites de breu ou às manhãs doiradas; aos dias de gelo ou de esplendor solar; às tardes de namoro febril ou às lágrimas de paixões desfeitas nos bardos da minha terra; ao toque da sirene, subindo o Peso até ao alto de S. Gonçalo, e o primeiro fogo da minha infância; a aflição de meus avós paternos, no Côto, a ver, ao fundo, a desgraça de Riobom; os incêndios da Viúva Lopes e a morte do grande tipógrafo Figueiredo; dos Fortunatos, onde a minha mãe escolhia os tecidos; da Flor do Adro e dos cafés que lá tomei; da tragédia da ponte e das cheias do rio, que chegavam quase ao largo do Cruzeiro. Meu Deus! Benditos os que escrevem A MEMÓRIA!

Ele fala-me do que aconteceu sem saracoteios piegas; vai longe e fundo aos arcanos da lembrança para o revivalismo sadio das gestas dos bombeiros reguenses; esquadrinha os arquivos, com entusiasmo e gosto, na busca do papel que decifre uma interrogação; investiga uma pista com o suor da ansiedade e serena no sorriso do achado.

O autor tem, num texto recordativo, que não consente a ficção, espaços de escrita brilhante, onde se reflecte o talento de justapor o passado aos modos de hoje, um realismo que me atrevo a classificar de majestático, em mistura com um sentimentalismo que só os desumanos não percebem, a procura do melhor termo, uma ênfase nunca despropositada da tese que se defende, e por isso o trágico descritivo – único modo de “valorizar realmente” o acontecido. Anoto, sem afectações de escolha, as paginas 21-25; 62-66; 113–116; 130-133; 157-158; 159-163; 170-172; 173-176, e todas as referidas aos escritores médicos João de Araújo Correia e seu filho Camilo, que catalogam o livro com a chancela do esmero.

Com a vida dos nossos bombeiros vem a documentação fotográfica e os seus heroísmos; as citações de quem os serviu e os perfis dos seus comandantes; os esparsos desconhecidos, que parecem ainda transmitir os antigos cheiros das ruas ou das margens do rio; as ascendências galegas ou vareiras e a nostalgia do “pouca-terra” do Tua; a primeira biblioteca que a associação fundou e as peças teatrais pueris mas solidárias; uma saudade gostosa desses tempos inocentes mas corajosos, de necessidade mas humanamente grandes, em que não se apreçava uma ajuda nem discutia uma abnegação.

Gosto dos livros assim: escritos com alma, coração e saudade; são genuínos, sentidos e respeitadores da HISTÓRIA.

3.2.12
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial mil.º e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google

Clique nas imagens para ampliar. Este texto está também publicado na edição do semanário regional "O Arrais" de 16 de Fevereiro de 2012. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em  Fevereiro 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Todos os direitos reservados. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos. 

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Relendo: Em tempo de Festas de Nossa Senhora do Socorro recordo Jaime Ferraz Rodrigues Gabão

Crónica sobre duas pessoas que marcaram nossas vidas. Lembrando-os sentimos que estão (e estarão) sempre presentes!

Em Memória de Jaime Ferraz Gabão - Por M. Nogueira Borges – Publicado no boletim de Festas de Nossa Senhora do Socorro – Peso da Régua - 1994. (Atualização)

Conheci-o em Porto Amélia. O meu destacamento, sediado em Quelimane, viera substituir uns "cocuanes"* que estavam de regresso à Metrópole. Para trás deixava a luxúria dos palmares de Penabe, o esmagamento das infindáveis plantações de chá do Gurué, o silêncio e os ruídos da selva esplendorosa de Mocubela ou Maganja da Costa, a confraternização da boa gente da capital da Zambézia.


Foi em Março de 1968. Em Lisboa, Salazar ainda não agonizava, e Marcelo Caetano repartia o seu tempo entre a Faculdade de Direito, a reescrita do seu Manual de Direito Administrativo e o seu escritório de jurisconsulto ali para os lados da Rua do Ouro, mal sonhando que, em finais desse ano, ocuparia S. Bento para assistir, num desterro brasileiro, ao funeral do Império. Em Lourenço Marques, a Polana estava cheia de sul-africanos e os ecos do Norte mal chegavam às esplanadas.


O Jaime Ferraz Gabão era, a par da sua actividade profissional numa empresa algodeira, o correspondente, para o distrito de Cabo Delgado, do mais prestigiado jornal Moçambicano - o Diário de Moçambique** - e criava, semanalmente, uma página regional onde dava oportunidade a jovens colaboradores. Uniu-nos a paixão pêlos jornais. Essa afinidade gerou entre nós uma profunda estima e, com o tempo, à medida que nos íamos conhecendo, uma amizade tão grande que, ainda hoje, à distância de vinte e seis anos, nem sei como definir.


O Jaime era uma alma generosa e não queria morrer com remorsos nem deixá-los aos vivos. Abandonara a Régua quando os seus sonhos se desfizeram e a realidade que os seus olhos contemplavam era tão crua que não hesitou quando um velho amigo o convidou para abalar até às paragens do indico.


Feito, posteriormente, o reencontro com a Mulher que sempre o acompanhou até ao fim dos seus dias, o meu saudoso amigo ganhou a paz a que todo o ser humano tem direito quando se está de bem com Deus e os seus semelhantes.


África dera-lhe a razão da vida e a justificação para a partilhar. Sob o tecto africano, nos dias abrasadores ou nas noites do cacimbo, o Jaime consumia e retemperava as energias de um homem que, no nosso Douro, herdara o amor do trabalho honrado. Nunca foi patrão nem capataz, nunca ostentou ou humilhou, nunca cortejou poderosos nem desprezou deserdados, nunca separou brancos de um lado e pretos do outro. Amou a África porque a África - caros leitores - é encantamento deslumbrante, um chamamento emocional que arrebata, uma sedução tão arrepiante que não há palavras para a descrever, só sentindo-a, calcorríando as picadas inóspitas e engolindo o seu pó, bebendo água do coco ou dos pântanos solitários, aganando sob o fogo do seu sol ou tremendo nas suas madrugadas de névoa.


Eu entrava em casa do Jaime Ferraz Gabão sem bater à porta, sentava-me à sua mesa sem perguntar onde era o meu lugar, conversávamos horas sem fim no deleite do entardecer, íamos e vínhamos pelas ruas e cafés de Porto Amélia com a naturalidade de quem vivia o tempo todo na fruição plena da fraternidade e as areias da praia de Wimbe já conheciam os nossos pés nas manhãs de Domingo.


Findo o meu tempo de serviço militar regressei à minha aldeia e o Jaime por lá ficou. Ainda recordo, comovido, as nossas lágrimas de despedida.


Um dia, nas sequelas da tal exemplar descolonizaçâo, ele voltou, também, às suas origens. Foi um trauma de que nunca se curou. Aquilo foi como uma traição que, na sua boa fé, não contava; um murro medonho na esquina da sua vida, na pureza da sua certeza patriótica. Desgastado e amargurado, vendo, mais uma vez, o seu ideal a fugir-lhe, mastigou em seco muitas desilusões e incompreensões. Pertencia àquele tipo de homens que não tem pele de elefante porque cultivava a franqueza e a capacidade de perdão. Custava-lhe a ruindade à sua volta, os anátemas dos retornados, a indiferença por uma terra e por uma causa que interiorizara tão profundamente que alturas tinha em que já não sabia se as raízes eram mais fortes - ou mais fracas - do que as saudades dolorosas dos batuques, do cheiro das queimadas, dos dias em mangas de camisa, da leveza das brisas da baía de Pemba, do carregado das trovoadas no mato, do odor a catinga ou dos gritos da hiena sem companhia.


O jornalismo enganou-lhe as recordações, sublimando-as em descrições sempre apaixonadas mas nunca desonestas. Sabia que um jornal, fosse qual fosse o seu dono, não era um palco de propaganda, nem um púlpito de ressabiados pessoalismos, nem um ócio de frustrados a envenenarem relações, nem um palanque onde os vencidos políticos ruminassem vinganças. Praticou um jornalismo de transparência porque não ocultava o relevante e, quando assumia a opinião, não ofendia sentimentos nem provocava a consciência alheia. Tinha a educação herdada do berço e cultivada no pragmatismo do quotidiano. Escreveu muitas páginas de memórias das terras e das gentes por onde andou e viveu sem verbalismos ou maniqueísmos. Viveu o dilema dos que, conhecedores dos largos espaços, se ressentem, sofrídamente, das estreitezas dos horizontes, onde, afinal, a poesia da alma se reflecte no limite dos muros da indiferença das coisas e das pessoas. Sem sabedorias arcádicas ou carreiras/academistas, mas possuidor de um entusiástico autodidactismo. O Jaime Ferraz Gabão transformava a simplicidade escondida na mais bela descoberta. Homem solidário, condoía-se de um pé descalço e não dominava as revoltas do seu sangue. Se é preferível a responsabilidade dos gestos que não praticamos porque outros nos impedem aos que não fazemos porque a eles nos recusamos, o Jaime culpava-se de todas as injustiças do dia a dia da vida. Era um espírito em permanente responsabilização e nunca contente de ver realizar-se o que se deve. Se aqui recordo o Jaime Ferraz Gabão neste livrinho das Festas em Honra de Nossa Senhora do Socorro, onde ele sempre colaborava com alegria, não é só para que conste, mas também para implorar à nossa Padroeira que, não se esquecendo de todos nós - os vivos - não olvide o meu querido e saudoso Amigo que, na Fé, viveu sempre, mesmo quando a morte já lhe rondava os passos.

- Por M. Nogueira Borges – Boletim das Festas de Nossa Senhora do Socorro de 1994 (“recorte” cedido gentilmente por J A Almeida).

* - "cocuanes" termo adaptado do idioma macua e que quer dizer velho(os), no caso: "...viera substituir uns militares mais antigos".
**retifico - Jaime Ferraz Gabão era correspondente e distribuidor para Cabo Delgado do Diário de Lourenço Marques com sede em Lourenço Marques, atual Maputo. Embora colaborasse eventualmente com outros jornais moçambicanos e portugueses, o Diário de Moçambique estava sediado na cidade da Beira e, se a memória não me falha, seu correspondente para Cabo Delgado era o também saudoso Administrador Zuzarte.
  • Sobre M. Nogueira Borges;
  • Jaime Ferraz Rodrigues Gabão citado no portal do Sport Club da Régua - Aqui!
  • Cartal de Longe - Lembrando o cidadão e  o jornalista Jaime Ferraz Rodrigues Gabão - Aqui!
  • UM DE NÓS - Em Memória de Jaime Ferraz Gabão - Aqui!
  • Várias 'ligações'(post's) que comentam Jaime Ferraz Rodrigues Gabão - Aqui!
RECORDANDO... Por Jaime Ferraz Rodrigues Gabão, a propósito das Festas de Nossa Senhora do Socorro

Em Memória de Jaime Ferraz Gabão - Por M. Nogueira Borges – Publicado no boletim de Festas de Nossa Senhora do Socorro – Peso da Régua - 1994.


Clique  nas imagens para ampliar. Imagem de M. Nogueira Borges de autoria de J. L. Gabão. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Agosto de 2012 e em homenagem a meu saudoso Pai JAIME FERRAZ RODRIGUES GABÃO e ao estimado Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. O texto de M. Nogueira Borges é cortesia do Dr. José Alfredo Almeida, também Amigo prezado destas personalidades da Régua e do Douro. Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Relendo Nogueira Borges: A VOLTA

Vai, homem, por essas estradas fora, envolvido pela noite que tombou rápida como um instinto, triste como um presságio, no meio de emigrantes de duas gerações, certo de que não é o barulho que faz companhia, mas a cumplicidade dos sentimentos. Vai como quem cumpre um destino, sabendo-se que a vida é como a terra: não tem condições para se transformar num céu. Vai e não feches os olhos, deixa que as lágrimas, num tributo à paixão que deixaste para trás, te inundem o rosto e desaguem, dispersas e quentes, na angústia do teu peito, mar onde se espalham todas as penas, pois só não chora quem gosta apenas de si. Vai, contando, na escuridão que o negrume do asfalto amplia, os faróis das faixas contrárias e a luxúria luminosa das cidades distantes, certezas de que o Mundo se mexe, é grande ou pequeno consoante a compreensão de cada um.

O autocarro veio de Nice, passou por Marselha, e apanhou-me em Montpellier. Na televisão, ao fundo, por cima da cabeça do condutor, passa um filme em que o Stalone se farta de matar e de dar murros que entoam como marteladas em tonel vazio sem portinhola. O despropósito é como a credulidade: aceita-se e entende-se, mas é doloroso quando não se o pode emendar.

Abrem-se os farnéis em Côté de France, um descanso de auto estrada onde estacionam as camionetas lusas. Na frente de um hotel sem luxarias, tipo fórmula 1, estacionam jipes com os tejadilhos repletos de artefactos para a neve. Um chapéu que vai para S. João da Madeira oferece-me – e retribuo – um pedaço de baguette com chouriço. Uma gata - tem olhos de gata -, vinda não sei de onde, mia-me, estremeço, é branca como a que tenho em casa e mascote de quem deixei longe; dou-lhe um migalho de pão que recusa, mas, já aceita um de carne - não gosto destas esquisitices em animais de quatro patas quanto mais de duas -, roça-se nas minhas calças e não me larga, obrigando-me a dividir com ela, até ao fim, as minhas sandes e as minhas saudades. Depois de um café - fraco e desprezível - por sete francos, é uma pressa para as camionetas já com os motores quentes. Um jovem africano, de comovente solicitude, que vem das obras de Marselha, cabelo pintado de loiro e agrafos nas orelhas, não larga os phones e ouve tão alto o rap do seu gosto que um vizinho de assento lhe pede para baixar o som.

Em Toulouse, com um rio-canal de barcaças vazias e outras com roupa a secar, em frente à Gare Matabiau, há despedidas de abraços, beijos e prantos entre novos que ficam e velhos que partem. Uma velhinha (é mesmo velhinha), toda de preto, lenço na cabeça e saco do Carrefour na mão, olha para os assentos, a escolher lugar, e senta-se à minha beira. Encolho-me para que se ajuste no meio de um restolho de saias. Estica-se por cima de mim para dizer um último adeus, fala como se a pudessem ouvir para lá dos vidros fechados: «Não gastes dinheiro em telefone! Quando chegar, ligo-te, ouviste, minha filhinha?!» “Oh! Meu Deus!, tantas vagas e sentou-se logo a meu lado para me avivar a ferida!“. Com o autocarro a desfazer a curva, ainda a velhinha esticava o braço, roçando-me o nariz. “Por que não me deixaste só a olhar para a escuridão a contar as terras e as luzes e as estrelas e os marcos e o tempo que esta carreira demora a ultrapassar um tir e de quantas em quantas horas se revezam os condutores e – caramba! – poder esticar as pernas à minha vontade e colocar a almofada que trouxe de casa à maneira do desassossego das minhas costas? Raio!, não chores, Santa da minha Pátria, não te ponhas aí a limpar os olhos ao lenço, que o meu já está alagado; por favor, não gemas, não engulas os gritos como se fossem poldras dos teus (dos nossos) rios de amargura, nem dês esses suspiros que me acordam os arquejos de uma velhinha como tu, mas do meu sangue, antes da morte a livrar das chagas da vida e do corpo. Por favor, cala-te que me estoiras o sangue!”.

Para lá das estremas citadinas, em recônditos de segredos, erguem-se, no meio de uma veemência luminosa, os tubos-cotos das fábricas das passarolas supersónicas e dos espadas do asfalto.

- Lá está ela, a fábrica onde trabalha o meu genro... – afoita-se a velhinha num lamento, deixando-me embaraçado sem saber se lhe devo replicar ou não.

- Há muitas... - digo-lhe, anódino.

- É uma delas... – utilizando a deixa. - Já lá passei duas ou três vezes, uma confusão, nunca se sabe onde estamos, mas é para aqueles lados... Ele já tem vinte e dois anos de França – tentando introduzir o histórico familiar... - , está sempre a dizer que vem embora, mas nunca mais se decide, e a minha filha cá está com ele, a servir patroas, madames como lhes chamam, que não sabem estrelar um ovo quanto mais estufar uma carne. Depois, os meus netos, sabe o senhor, também já estão habituados aqui, são franceses... É uma vida...

Viro-me para a janela: as últimas fieiras de luzes dos arredores desaparecem. Um desalentado vazio acompanha o movimento do autocarro. “Já sei, vou ter aqui uma velha tagarela que me vai desfraldar a sua vida toda... E se eu, numa próxima paragem, mudasse de lugar, assim como quem não quer a coisa? Pode ser que ela o faça...”. Ajeita-se, esforçando os braços nas pegas do assento, distendendo-se.

- Não estou a incomodar o senhor, pois não? – pergunta, enquanto dá mais uma assoadela.

- Por amor de Deus, minha senhora, esteja à vontade...

- O senhor consegue dormir em viagem?...

- Passo pelas brasas... É conforme...

- É novo... Eu, se não houvesse paragens, só acordava em Vilar Formoso... O senhor também trabalha em França?...

-Não, minha senhora... Olhe, acabou o filme, já se pode dormir... – cortei cerce, talvez friamente.

Encosta-se melhor com o ar de quem diz «este não quer conversa...», levanta o saco e defende-o, em cima do regaço, com as mãos.

- Ó homem! Nem aqui tiras o chapéu?! – ouve-se a mulher do meu permutante da baguette. - Ele descobre-se, alisando os pêlos que lhe restam, e pôe-o nos joelhos. Ela, despachada, arrebata-lho, levanta se, abre um cacifo junto ao tejadilho e arremessa-o para lá. - Quando voltarmos a parar, vais buscá-lo, se quiseres!

Ele fecha os olhos a fingir-se tomado pelo sono.

A camioneta avança com as luzes de presença acesas que se reflectem na noite num acompanhamento fotocopiado. Tarbes ficara perdida na discussão do chapéu. À minha direita, numa serenidade de folga peregrina, Lourdes é uma devoção por cumprir. Em Pau, com os seus vinhedos de Lescar indefinidos nas trevas e os segredos nucleares da França bem guardados, entraram mais dois rostos de olhos vermelhos. Contorna-se Pax, de Igrejas com vistosas iluminuras, e pára-se em St. Jean de Luz feito ponto de encontro dos viajantes da madrugada. É um estacionamento de muitas encruzilhadas, misturas dos termos da emigração: Paris, Bruxelas, Zurique, Estugarda. Entoam risos de reencontros, fecham-se rostos de sonos trocados, dormem inocências em colos derreados, bebem-se cafés amargos e despejam-se bexigas doridas de tanto encolher.

A velhinha trinca pão com fiambre; resolvo não me mudar, não tenho coragem, peço-lhe licença para me sentar junto à janela.

- Então como se chama a senhora? – desenho um sorriso de fraternidade, emendando a secura anterior.

- Gracinda, sou Gracinda há oitenta e sete anos...

- Bonito e bem conservado nome...

- Ah!, bonito ou feio é um nome... Agora bem conservado...E o senhor?

- Sim?...

- Qual é a sua graça?!...

- Ah!, sim, sim... João!

- Era o nome do meu falecido... Que Deus o tenha em bom lugar. Já lá vão seis anos – o seu peito sobe e desce num suspiro.

- É a vida...

- Vida triste, meu senhor, vida triste. Custa muito viver só, a filha, que Deus me deu, longe...

- Então, podia ficar em França com ela...

- Não gosto daquelas terras, as gentes são meias esquisitas, prefiro a minha casinha, a minha é um modo de dizer, da minha filha e do meu genro, que foram eles que a fizeram com a graça de Deus e do suor deles... E, depois, sabe, eles têm os modos deles, querem estar à sua vontade, sabe como é... A gente cria os filhos e, enquanto precisam, estão connosco, depois, quando precisamos nós, abalam eles...

- Já faltou mais para chegarmos D. Gracinda...

- Ai Dona...Trate-me por Gracinda, senhor. Dona é para gente fina...

- Então a senhora Gracinda é mesmo fina... Quanto mais velho se é mais fino se fica.

- Mais burros ficamos, quer o senhor dizer... Só servimos para entulho....

- Nunca diga isso, minha senhora... Nunca diga isso... Conforme está o Mundo, se não fossem os velhos, já ele tinha acabado...

- Ora... Ora... O futuro é dos novos, senhor...

- Não há futuro sem um grande passado...

A D. Gracinda olhou-me como se me estudasse numa idosa sapiência, tocou-me ligeiramente no braço, num à vontade de comunhão, e disse:

- Já não vamos viver para botar a mão a isto... – apertando o tabaqueiro. – Acho que me está a chegar o sono, sabe o senhor?... – e calou-se.

O autocarro, em Hendaye-Irun, já em território espanhol, encosta junto da delegação da Guardia Civil e abre as portas. Um agente entra e confere as documentações, passageiro a passageiro. Terminada a vistoria, aproxima-se do africano de cabelo loiro, manda-o sair e leva-o para o interior do Posto. Outro paramilitar vasculha as bagagens, escancaradas pelas portas levantadas até aos vidros, chama um cão que as fareja ansioso, dá-lhe um pedaço de qualquer coisa que parece um biscoito (deve ser marca Pavlov...), até se postar, de traseiro no chão, ao lado do amo. O jovem dos piercings vem buscar a sua maleta, diz que fica preso por falta de documentação legal e despede-se. «Espera aí, pá! Precisas de dinheiro?», pergunta-lhe o chofer; diz que não com um sorriso agradecido e triste. O autocarro apronta-se para a desinfecção repleto de desabafos: «E logo estes espanhóis que não perdoam nada!», «Porra! O gajo, se calhar, nem carta de sejour tinha!», «Também vendem bilhetes sem perguntarem por papel nenhum, só querem é despachar carne!», «Já vai andar de bolandas, outra vez recambiado! Ele vinha de Nice não era? Ah!, Marselha, coitado do moço...» À esquerda das colunatas em imitação romana, uma equipa de fatos espaciais sulfata os pneus que passam num tapete esponjoso anti-febre aftosa. Arranca de vez, limpo do risco da peste, mas sujo pelo pecado da severidade policial.

- Não era a hora dele – sentenciou a senhora Gracinda que, no passar do incidente, só dizia: coitadinho do rapaz...

Atravessa-se o chamado País Basco - geografia nacionalista a que algum Sul Francês não escapa, de toponímia arrevesada, descarnada do castelhano, mesmo quando este emparceira no nome – a altas horas, num desconsolo de curvas eriçadas em declives que a noite ilude.

A velhinha já não vai comigo. O sono descomprimiu-lhe o corpo e afastou-a para longe. O seu ressonar sacode as abas do lenço que lhe envolve a cabeça. Num repentino, mexe-se a procurar posição, descai ligeiramente para a minha esquerda, sinto-lhe os ossos decenários, o cheiro a aldeia, a campo, a serra, a giestas, a suor. “Deixa-te ir, Mulher, descansa o teu corpo no meu como eu gostaria que amanhã mo fizessem, comungo do teu sacrifício, do teu amor pelos que geraste, da pena por um vazio, por uma falta que nenhum dinheiro paga, que nenhuma conversa faz esquecer, nenhum sorriso disfarça. Deixa-te ir...” .

Desfilam as luzes deste Euskadi de ódio e de morte, Vitória, Navarra, S. Sebastian (Donastia), Bilbau, indicativos de conflito nos cruzamentos das estradas, dores de cabeça madrilenas. O dormir da senhora Gracinda contagia-me, abandono-me à indolência, ponho a almofada junto à janela, despego-me do corpo envelhecido, tiro os óculos, meto-os no bolso da camisa. Ela, sem noção da circunstância, endireita-se e espreme-me. Amoldo a cabeça ao travesseiro improvisado e deixo-me ir por uma planície sem fim.

Acordo com os contornos da terra ainda indefinidos numa tela naife. Apetece-me desenferrujar as pernas no corredor do autocarro que, ronceiro, como um barco de leme automático, avança num contraído desespero de chegar. A velhinha - mais velhinha do que os anos porque a estes somava dores que os aumentava - continuava a ventar o lenço. Lentamente, vão-se declarando as formas: já se distinguem os fios eléctricos, as casas humedecidas e emudecidas na manhã de domingo, as sinalizações quilométricas, as medas de trigo, os regos das semeaduras, as saliências dos morros, os rostos dos camionistas ultrapassados que parecem transportar carradas de paciência, as pequenas barragens com a água das chuvas defendida por plásticos. O sol, no risco do horizonte, força as nuvens que não o deixam romper a bolha de água. O dia, assim, apresenta-se embezerrado, sem chama, numa traição a quem o deseja largo e elucidativo.

Pára-se em Nava del Rei para um pequeno almoço quente. A minha companheira, à paragem da camioneta, deu um salto, contemplou-me surpresa, desenlaçou o lenço, voltou a compô-lo, sorri-lhe e aproveitei para esticar-me um pouco.

- Isso é que foi dormir...

- Não o incomodei pois não?

- Nada...nada... Também dormi até agora...Vamos tomar qualquer coisa...

- Quero é mexer as pernas... Parece que tenho cimento...

Os WC e os balcões enchem-se; um jovem barbudo, de boina basca, merca um porta-chaves com o ícone de Che Guevara; a senhora Gracinda tira, do saco do Carrefour, um migalho de pão, convido-a para um pan com mantequilla, mas é o aceitas; levam-se leques e caramelos para oferecer e gasta-se o resto do tempo - enquanto os motoristas não vêm da sala da comissão - a andar para cá e para lá, desentorpecendo as pernas. O chão parece coberto de sincelo, agasalhado por um manto de vapor; cheira a terra e a erva molhadas como se o dia se levantasse de um sono prolongado.

A reentrada no transporte faz-se em algazarra, bexigas aliviadas e barrigas satisfeitas, alguns deixam-se ir de pé com as mãos nas cruzes.

- Maria, antes do meio-dia estamos na Guarda! - atira, alegre, um homem.

- Esqueceste-te de dizer se Deus quizer!- objecta a consorte, enquanto ele engole em seco e faz-que-sim com a cabeça.

O sol não abre e nem o nome de Portugal, escrito junto dos campos de Salamanca onde o gado se espalha, realiza esse desejo.

Em Vilar Formoso, a velhinha, aflita por saber qual era o novo autocarro que a levaria até Celorico, estende-me os braços na despedida. Só então reparo que nas suas faces de rugas de muito passado cintilam uns olhos de muito futuro: têm o brilho da lua cheia numa noite de Esperança...

Tomo a ligação para o Porto e repito, agora ao contrário, a paisagem beirã do IP5. O novo condutor mete uma cassete a cheirar o bacalhau. Para distrair o meu encruamento espalho os olhos pelos montes que se me afiguram ainda mais penalizados que o natural.

O sol não vem.

Não faz mal, ele está do outro lado das montanhas, em terras de França, sinto-o nos meus ombros, nos meus olhos, e recolho-o só para mim, aqui dentro, onde se guarda a saudade de um amor incomparável.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março de 2011 na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". A imagem ilustrativa acima é recolhida da internet livre. 

*Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial mil.º e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no GoogleManuel Coutinho Nogueira Borges, foi Alferes Milº. do Comando de Agrupamento 1985 - Moçambique (Quelimane e Porto Amélia)de 1967 a 1969 e faleceu no dia 27 de Junho de 2012 na cidade de Vila Nova de Gaia - Portugal.

Clique nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Janeiro de 2014. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

O REFORMADO

(Clique na imagem para ampliar)

Silveira, durante toda a sua vida de trabalhador bancário, nunca recusou um serviço ou um lugar. Assim, não se importou de mudar de terra, vendo a família só aos fins-de-semana, para ocupar a gerência de um Balcão de província. Fez a sua carreira com esforço, sem contabilizar horários, nunca discutindo tarefas, embora, muitas vezes, se achasse mal recompensado. Não se queixava. Ele é que escolhera.

Desmobilizado, quando do regresso de Angola, ainda voltou a Direito para fazer algumas cadeiras ao abrigo do estatuto dos ex-militares. Depois de um recomeço fulgurante que lhe consentiu os maiores entusiasmos, desistiu ao segundo chumbo de Obrigações, incapaz de suprir a ausência das aulas e dos pormenores que só a frequência daquelas dariam já que, não referidas nas sebentas, surpreendia-se sempre com o tamanho da sua ignorância de assuntos que nunca ouvira ou lera. Confundia-o, também, a bagunça contestatária, as constantes alterações de datas que o obrigavam, em vão, a faltar ao emprego e que a sua rotina militar de trinta e nove meses, feita de obediência indiscutível encarava mal. Aquilo já não lhe dizia respeito... Vira morrer e matara; estava cansado para, agora, se meter em guerras de berros. Soavam-lhe a arrufos de bem instalados, heroísmos intelectualizados, até ofensivos, comparados com os meses que vivera nos matos da Lunda.

Após umas experiências avulsas em Editoras e Agências de Publicidade, candidatou-se a vários Bancos que, naquela época, era um emprego seguro e com estirpe social. O primeiro a chamá-lo para os testes psicotécnicos admitiu-o, num fim de Verão, ainda o 25 de Abril estava longe. Profissionalmente estável e eufórico pela febre bolsista da Primavera Marcelista, Silveira ganhou dinheiro e o coração da Celeste que, numa Seguradora, começara a juntar para o bolo do casamento. Se algumas dúvidas ainda lhe restavam, elas dissiparam-se: perdia, definitivamente, a esperança de acabar o Curso interrompido pela convocatória militar.

Nascidos dois filhos com intervalo de um ano como se tivessem pressa de despachar a descendência, os anos passaram-se no desvelo da sua criação que culminou com as formaturas no Curso que ele nunca terminaria. Os filhos vingaram-no.

Quando apareceram os netos, fizeram contas à vida e, vendo-a mais curta, decidiram que era a altura de lhes dedicar a segunda paternidade. A Celeste, aproveitando a maré dos novos conceitos de gestão, para quem um trabalhador não passa de um dígito, antecipou a reforma para cuidar deles, em vez de os ver depositados, todas as manhãs, ainda ensonados, num qualquer infantário. Passou, então, a ser só ele a levantar-se nas madrugadas de segunda feira, com o sol ainda a dormir, de tempo espremido para a viagem até à Agência distante. Custava-lhe, no Inverno, aquela chuva enovelada na escuridão fria, sempre com o credo na boca pelo nevoeiro ou o gelo da estrada. As noites na residencial, então, sem o aconchego das suas coisas e da sua gente, eram quase irascíveis. Foram anos em que – quantas vezes! - pensou, também, reformar-se para ficar no remanso com o chilreio infantil a preencher o apartamento. Afastava a ideia, lembrando-se do seu velho Pai: «Um homem só se reforma quando morre!»

À Agência todos os dias lhe chegavam directivas a traçar objectivos de negócio. Com os outros dois colegas sempre ocupados, um na especificidade da Caixa e o outro no expediente normal, Silveira passava muitas horas no exterior a angariar novos clientes e visitando os antigos com propostas de aplicações financeiras. Nunca se retirava antes das oito, ocupado no trato da papelada administrativa empilhada no tampo da secretária e pondo a conversa em dia com a Celeste em telefonemas que, em alguns meses, lhe preocupavam o plafond autorizado. Sem pressa de sair - ninguém o esperava -, verdade se diga, contudo, que começava a sentir-se injustiçado. No Café da Vila, praticava algumas relações públicas que lhe granjeavam a simpatia do meio e a permanência de contas com bons saldos médios. Sentia mais a falta da família do que a abundância do trabalho. O vai e vem semanal enleava-o. Estava na hora de solicitar à hierarquia um regresso às origens, à certeza de sair de manhã e voltar ao fim da tarde, aquela rotina dos gestos e das vozes, o aconchego da noite com o corpo da mulher a aquecer o seu, sem fazer cálculos para o ajuste do fim de semana. Mal lhe soaram aos ouvidos, ou lhe caíram sob os olhos, os primeiros sinais de racionalização de custos, emagrecimento do pessoal, rejuvenescimento de quadros e outros quejandos na moda dos recursos humanos, passou a prestar mais atenção ao espelho para ver se as rugas o englobariam no rol dos dispensáveis. Não precisou de muito tempo - nunca dando a entendê-lo - para perceber que o seu dia estava prestes a chegar. Feitos trinta e cinco anos de serviço, excluindo mesmo o tempo a duplicar pela campanha africana, convidaram-no, entre encómios que lhe pareciam lisonjas interesseiras, se não quereria ir para o descanso. Não, ele não queria descanso, mas, continuar a trabalhar na terra onde estavam as suas companhias e posterioridades. Sentia-se credor desse desejo, justificado pela devotada dedicação profissional e pela humana justeza da sua razão. Fez ver isso às insinuações que lhe chegavam pelo telefone ou pelos convites sorridentes, com muitas batidelas nas costas, quando se deslocava à Sede, ninguém lhe garantindo a satisfação pretendida, porque «bem vê, com a reorganização em curso, muito difícil, a breve prazo, anuirmos ao seu pedido...». Sentia nessas ocasiões um adormecimento de desilusão, um «para que andei eu a sacrificar-me tanto...».

Deixou passar uns meses e negociou a reforma para o fim do Verão. Os foguetes do Ano Novo seriam o anúncio da sua despedida, amarga e revoltada. Mais que revolta, a constatação de que pouco lhe valera o vestir da camisola. Julgava-se, aos sessenta anos, amadurecido e disponível, ainda, para continuar. Estava no ponto ideal da cozedura, nem rijo nem mole, eficaz nas decisões e maleável no trato. Atingira o patamar do equilíbrio em que se é aceite pelo respeito profissional e pela experiência humana; ganhara a endurance cujo melhor retrato é o auto-domínio ao disparate, às pressões e às nervuras emocionais. Mandando-o porta fora, era como se interrompessem a história de uma vida ainda útil. Haviam-lhe comido a carne e como os ossos, irremediavelmente, já tinham prazo, antes que se quebrassem, davam-lhe o destino dos electrodomésticos fora de validade.

Apesar de tudo, nos primeiros tempos, inebriou-se na disponibilidade do tempo e da vontade. Passeou o que pôde – concretizou, finalmente, o sonho de conhecer Paris, onde passou oito dias estonteantes, regressando com a sensação de não ter saciado nem uma décima da sua curiosidade -, leu, sofregamente, os livros tantos anos adiados – até arranjou coragem para Saramago - e, em muitas soalheiras manhãs de sábado – detestava o domingo para passear – ia com os netos para o parque da cidade mostrarlhes os «patinhos no lago», fiscalizando-lhes as bicicletas com rodas de apoio. Deu-se à excentricidade culinária, especializando-se num bacalhau assado no forno que rotulou de Bacalhau à Silveira. Ao princípio, guiava-se pelas revistas do Chefe Silva que a Mulher esquecera numa gaveta, mas, depois, fiava-se na sua fantasia que recriava com especiarias que rebuscava nas prateleiras do Continente. Arranjou, contudo, algumas guerras com a Celeste, pois incomodava-se, seriamente, quando ela, feita sabichona, lhe chamava a atenção para alguns destemperos. Chegou a ir ao futebol para se certificar da diferença de quando o via pela televisão, os seus sons e tons, a histeria das claques, o bruá da multidão na eminência dos golos e o estoiro orgástico quando aqueles se concretizavam.

Estranhamente, assim como de um dia para o outro, começou a acordar mal disposto e cansado, a pensar no que iria fazer para se ocupar. Sentia-se desamparado, longe dos ruídos e dos cheiros da Agência. Faltava-lhe o imprevisto dum telefonema atribulado, suplicando-lhe pressas de financiamento; aquele poder de influenciar fundos sempre balizados nas regras estabelecidas que o escudavam de remorsos nas recusas obrigatórias.
Continua...
- Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. Pode ler também os textos deste autor no blog ForEver PEMBA. Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

PRECE

Volta Jesus Cristo!

Volta a este mundo de sacripantas,
De escárnio e mal dizer.
Volta a esta terra de vaidade,
De desamor e egoísmo,
Fria e vazia como um poço abandonado,
Repleta de Sanhedrins da corrupção
E de Zerahs gananciosos.

Volta Jesus Cristo!

Volta à medula das nossas misérias
Para curares as chagas da inveja,
Perdoar com a serenidade de quem ama,
Limpar todas as Jerusaléns do nosso tempo.
Volta depressa às nossas consciências,
Aquecer a indiferença que nos rói,
Gritar uma esperança para amanhã
- Para sempre -
Não morrermos sozinhos e tristes.

Volta Jesus Cristo!

Vem dar força aos Nicodemus sinceros,
Encorajar os Josés de Arimateia verdadeiros,
Julgar todos os Tibérios modernos
Desprezar todos os Pilatos covardes,
Apontar os Barrabás perdidos.

Volta Meu Senhor e Meu Profeta!

Vamos falar aos que morrem de ambição,
Pregar a doutrina que nos salvará,
Escorraçar os que comem na opulência,
Agasalhar as crianças que tremem de frio,
Sem carinho, abandonadas como destroços.

Volta Jesus Cristo!

Para devolveres às pessoas o riso da vida,
Amar os que nada têm,
Ensinar de novo o que todos esqueceram.
Volta para me enxugares os rios da tristeza,
Nas angústias dos fins de tarde
E me abraçares nas horas de desassossego.

Volta Mestre!

Vamos berrar contra a alegria falsa,
Contra o sorriso falso,
Contra a amizade falsa,
Contra os irmãos falsos,
Contra os políticos falsos,
Contra toda a falsidade.
Quero ir contigo entoar a nossa Fé,
Derrubar os déspotas com a nossa Cruz,
Correr do Poder os que mandam sem saber.

Volta Jesus Cristo!

Eu quero abraçar-Te!

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

quinta-feira, 31 de março de 2011

A MINHA CIDADE

(Clique na imagem para ampliar)
Fotografia pertencente à galeria pública de Jaime Gabão 

A minha cidade
Tem o visco da saudade
E o nevoeiro do futuro.
A minha cidade
Tem a tristeza do escuro,
Mas, sobretudo,
O brilho da verdade.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui.
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima pertencente à galeria pública de Jaime Gabão e poderá ser ampliada clicando nela com o mouse/rato.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

GERAÇÂO ESQUECIDA - II

África das manhãs morenas,
Dos risos nas areias molhadas,
Das noites suadas e serenas,
Fora dos tiros das emboscadas.

Beijei a tua boca em Porto Amélia,
Acariciei os teus seios em Quelimane,
Fiz amor contigo em Lourenço Marques
E chorei por quem ficava,
Do outro lado do mar,
A contar os dias da chegada.

África tão longe
E tão longa,
Corpos ao léu
Em camas de céu,
Amor às claras,
Fremente de vida,
Carne despida
De falsos pudores.

África das anharas,
Dos caminhos da coragem,
Das horas a sonhar
O regresso da viagem;
Negra risonha ao amanhecer,
Mulata dolente ao anoitecer,
Branca namorada de um Maio a nascer.
Terra de fogo, de sangue e de gritos,
Inúteis mortos e feridos,
O sol a ver
Um homem a morrer:

Adeus até ao meu regresso,
Sou este que me despeço.
Fui corpo e, agora, sou alma.
Uma bala me levou.
Finalmente tenho a calma
Que a guerra me roubou.

Recados de condenados,
Bocas espumas de sangue,
Corpos destroçados
Que viveram um instante.
Nacala, Nampula, Molocué, Quelimane,
Namacurra, Mocuba, Chire, Pebane,
Porto Amélia, Mocímboa, Beira,
Mueda, lá em cima, e Macomia perto.
Madrugadas sem eira nem beira,
Olhos de sono, mas sempre desperto.

Que é feito das cruzes enegrecidas,
Símbolos de uma geração sacrificada?
Estão todas desfeitas, esquecidas
A bem da Nação libertada?

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

terça-feira, 28 de junho de 2011

ÚLTIMA VONTADE


Quando eu morrer,
Que seja em Agosto
Com toda a gente de férias.
Quero morrer sem desgosto,
Sem dor e sem aborrecer,
Envolto na brancura de um lençol,
Só um padre, a família e os amigos,
Sem mais ninguém saber.
Quero morrer sem choros, sem gritos
E sem anúncio no jornal.
Morrer não é o fim,
E quem me diz a mim
Que a minha vida, afinal,
Não se renovará num caminho
De amor e carinho,
De risos verdadeiros,
Todos os dias renovados
Como se fossem os primeiros?
Quando eu morrer,
Lavem-me com a lágrima do adeus
Que quem morre sempre deita,
Não com pena de morrer,
Mas triste pelos que ficam,
Mais tristes e abandonados,
Sem saberem o que os espera:
Se a disputa de uma herança
Ou o fim de uma esperança.
Quando eu morrer,
Metam-me num jazigo
Com uma ampla janela
Para ver, através dela,
O sol de cada domingo.
Ponham-me flores e uma vela,
Uma cruz e um poema
Que aqui deixo escrito:
Nasceu sem saber porquê,
Viveu sem que o entendessem.
Morreu sabendo para quê:
Para que na ausência o lembrassem.
Basta para dizer tudo,
O que foi o meu mundo
Em criança e em adulto.
Atravessei mares e continentes,
Chorei nas noites de abandono,
Amei raças diferentes
E não sei se matei por engano.
Quando eu morrer,
Não quero ir para a terra;
Em vez de morrer uma vez,
Morreria, então, duas vezes.
Concordem que não o merecerei
E, se o fizerem, garanto-vos,
Nunca o esquecerei.
Afinal, quem vive com os remorsos
De uma última vontade não cumprida,
Naquele instante de amargura e despedida
Em que o sangue se esvai,
No grito intolerável que a vida dá,
Até se esbater cansado num ai
Que até parece que, depois dele, nada mais há?
Quando eu morrer,
As andorinhas farão ninhos
No beiral da casa onde nasci,
Cantando de mansinho
Para que não me interrompam o fim.
Apanhem uma que seja dócil e bela,
Prendam-na às minhas mãos
E deixem-me ir assim com ela,
Caixão aberto e o sol a brilhar,
As pessoas espantadas a olhar
Para um funeral nunca visto.
Batam palmas devagarinho,
Não se importem de parecer mal,
Não falem durante o caminho,
E vejam se vou a voar.
Quando eu morrer,
Se calhar, não terei tempo de dizer
O que sempre calei em vida:
Que amei tanto os outros
E alguns não me mereceram,
Que chorei por loucos
E por quem não devia,
Que encolhi silêncios
Pelos que nunca me lembraram
E alguns até se afastaram.
Quando eu morrer
Vai ser penoso ir-me embora,
Deitado, estrada fora,
Sem me mexer,
Sem poder beijar os frutos da minha felicidade,
Virtudes e defeitos do meu ser,
Os seus rostos mais lindos do que o sol a nascer
E sorrir-lhes, então, até à eternidade.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". A imagem ilustrativa acima é formada/editada por diversas fotos recolhidas da internet livre. Clique na imagem para ampliar.
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua - Portugal.