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Por *M. Nogueira Borges
Lembrar-se-ão alguns leitores do que disse Thomas
Mann, ao deixar a Europa, em 1938, para se estabelecer na América: «Onde eu
estou, está a cultura alemã.» Hoje, 74 anos depois, um português que emigre,
repete o que gemiam, com outras palavras, os da década de sessenta, quando a
salto, despedaçavam o corpo nas escarpas da fronteira: «Onde eu estou, está a
crise portuguesa.» Por isso eles fugiam; por isso agora o fazem - ao menos! -
conforme a lei, mas igual apuro.
Vivemos um tempo de desgosto patriótico, de míngua
financeira e moral. Há quem brade aí pela reincarnação salazarenta de chicote,
pés descalços e uma malga de sopa; quem subscreva abaixo-assinados pelo
julgamento, nos pretórios nacionais, dos políticos de ontem; os que defendem um
castigador emagrecer fiduciário para – num brasileirismo que a indigência do
acordo ortográfico já não faz corar – o povo, esse malandro perdulário, cair na
real.
É nestas alturas que me apetece sair deste
ambiente de funeral, longe dos noticiários de sangue e de morte, da fome calada
e do ódio recalcado. Afastar-me das quadraturas redondas ou rectangulares e dos
seus argumentos de plástico, dos discursos com palavras redondas que urdem
lençóis de celofane a fingir água em palco de teatro.
Agarro-me, então, às biografias e aos livros de
memórias heróicas. Umas e outros transportam-me ao tempo da cidadania e do amor
comunitário; à transparência de gente de relevo que, por excelência própria, se
alcandorou ao cume da história. É a diferença das almas, as nascidas na
elevação e as desfeitas na frieza; as que sabem que o orgulho destrói o amor e
a tolerância cristianiza a felicidade; as que juram que a virtude é a ânsia de
compor a vida como uma obra de arte e a beleza e a alegria de fazer da dádiva
uma vida; aquelas que não ignoram a diferença entre suportar e sofrer, e por isso,
não discutem sacrifícios nem as horas de os fazer ou contabilizar; as que vivem
dentro de homens que aprenderam de nascença a salvação da humanidade na não
opressão dos seus semelhantes, mas na fraternidade do abraço que dá tudo sem
esperar paga.
O título que encima esta crónica é igual ao do
livro que o dr. José Alfredo Almeida publicou, em edição da Mosaico de
Palavras, acerca da Associação dos nossos bombeiros, a que ele preside. É uma
surpreendente e cativante obra, escrita com emoção e, por isso, me comove, com
muito trabalho de pesquisa e, perante a qual, me dobro. Aqui estão as façanhas
de homens honrados na sua farda e no seu exemplo. São memórias, factos e
figuras, enquadradas na nossa HISTÓRIA; da viticultura – ora ajustada ora
rapace - à psicologia humana – ora refinada ora decadente -; do teatro à literatura;
da grandeza popular à debilidade política da época, afinal de todas as épocas;
mas tendo sempre como matriz descritiva a luta dos NOSSOS BOMBEIROS. O autor esconde
o panegírico da heroicidade daqueles, os seus feitos, as suas
excepcionalidades. Emociona-me o carinho que o José Alfredo Almeida coloca na
defesa apaixonada do voluntariado, na adoração pela saga dos homens da paz, na
comparação entre esses tempos com os de hoje e das lições que se retiram.
Depois, ele tem a prerrogativa de saber despertar
memórias que me transportam às noites de breu ou às manhãs doiradas; aos dias
de gelo ou de esplendor solar; às tardes de namoro febril ou às lágrimas de
paixões desfeitas nos bardos da minha terra; ao toque da sirene, subindo o Peso
até ao alto de S. Gonçalo, e o primeiro fogo da minha infância; a aflição de
meus avós paternos, no Côto, a ver, ao fundo, a desgraça de Riobom; os
incêndios da Viúva Lopes e a morte do grande tipógrafo Figueiredo; dos
Fortunatos, onde a minha mãe escolhia os tecidos; da Flor do Adro e dos cafés
que lá tomei; da tragédia da ponte e das cheias do rio, que chegavam quase ao
largo do Cruzeiro. Meu Deus! Benditos os que escrevem A MEMÓRIA!
Ele fala-me do que aconteceu sem saracoteios
piegas; vai longe e fundo aos arcanos da lembrança para o revivalismo sadio das
gestas dos bombeiros reguenses; esquadrinha os arquivos, com entusiasmo e
gosto, na busca do papel que decifre uma interrogação; investiga uma pista com
o suor da ansiedade e serena no sorriso do achado.
O autor tem, num texto recordativo, que não
consente a ficção, espaços de escrita brilhante, onde se reflecte o talento de
justapor o passado aos modos de hoje, um realismo que me atrevo a classificar
de majestático, em mistura com um sentimentalismo que só os desumanos não
percebem, a procura do melhor termo, uma ênfase nunca despropositada da tese
que se defende, e por isso o trágico descritivo – único modo de “valorizar
realmente” o acontecido. Anoto, sem afectações de escolha, as paginas 21-25;
62-66; 113–116; 130-133; 157-158; 159-163; 170-172; 173-176, e todas as
referidas aos escritores médicos João de Araújo Correia e seu filho Camilo, que
catalogam o livro com a chancela do esmero.
Com a vida dos nossos bombeiros vem a documentação
fotográfica e os seus heroísmos; as citações de quem os serviu e os perfis dos
seus comandantes; os esparsos desconhecidos, que parecem ainda transmitir os
antigos cheiros das ruas ou das margens do rio; as ascendências galegas ou
vareiras e a nostalgia do “pouca-terra” do Tua; a primeira biblioteca que a
associação fundou e as peças teatrais pueris mas solidárias; uma saudade
gostosa desses tempos inocentes mas corajosos, de necessidade mas humanamente
grandes, em que não se apreçava uma ajuda nem discutia uma abnegação.
Gosto dos livros assim: escritos com alma, coração
e saudade; são genuínos, sentidos e respeitadores da HISTÓRIA.
3.2.12
- *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial mil.º e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google
Clique nas imagens para ampliar. Este texto está também publicado na edição do semanário regional "O Arrais" de 16 de Fevereiro de 2012. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Fevereiro 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Todos os direitos reservados. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos.
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