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quinta-feira, 19 de março de 2015

Cartas de longe: Lembrando o PAI, o cidadão, o jornalista Jaime Ferraz Rodrigues Gabão

Testemunhos do tempo
À memória de Jaime Ferraz Rodrigues Gabão

Era Março de 1971.

Moçambique vivia os anos de brasa do conflito armado, em plena guerra colonial.

No batalhão militar de Pemba, constituído, na sua quase totalidade por jovens do recrutamento local, ia processar-se a graduação de um furriel em alferes.

Como convinha, na sua perspectiva, para incentivo e psico exploração junto das forças vivas locais, o comando militar preparou uma pequena cerimónia para a qual , além de muitas individualidades civis e militares, convidou as delegações dos órgãos de comunicação social.

Entre estes últimos encontrava-se um homem por demais conhecido na cidade, onde a par do seu trabalho na Sagal, desde que em 1957 viajara das terra durienses para aquele torrão africano, vinha promovendo através do diário (*Diário de Lourenço Marques-Página de Cabo Delgado) de que era representante, a cidade, os seus valores, os seus anseios, as suas gentes. Fazia-o de forma discreta, sem alardes, ele que era um homem discreto, adverso a fúteis protagonismos, mas com uma garra e uma capacidade de trabalho e dedicação, que não passava despercebido o seu espírito de iniciativa e labor em prol da urbe que o acolhera.

Tinha nome esse grande Homem: JAIME FERRAZ RODRIGUES GABÃO, ele que era o chefe natural duma família de bem com nome gravado naquele chão macua; naquele chão que foi de luta, mas também de trabalho, de suor e lágrimas, mas também de alegrias e felicidades.

E foi este homem que me deixou na memória aquilo a que eu chamo um “pormenor” de comportamento, gravado na memória do tempo, desde esse dia, tão distante e tão próximo, da cerimónia no batalhão militar, na bela cidade, então Porto Amélia.

Findas as formalidades oficiais da cerimónia castrense de imposição de galões ao jovem alferes, o comandante convidou todos os presentes para um lanche/convívio no bar de oficiais.

Todos acorreram solícitos, inclusive todos os outros representantes dos órgãos de comunicação social, distribuindo os habituais sorrisos e lindas palavras de circunstância com as entidades civis e militares presentes.

E foi com alguma surpresa e interrogativos pensamentos que o jovem oficial, viu o senhor Gabão– como o conhecia, – em passada larga, denotando inusitada pressa, abandonar o local, sem se dispor a tomar parte no convívio e repasto “elegante” que se seguiu.

Inicialmente, estranhou a atitude e não conseguiu divisar o real motivo de tão apressado debandar.

Não questionou ninguém, mas também não seria necessário. A resposta concreta, sem palavras ou justificações circunstanciais, chegou-lhe logo no outro dia: o jornal diário do nosso repórter Gabão foi o único a publicar a reportagem do acontecimento. Os outros deram-no à estampa dois ou três dias depois.

O nosso homem, mais uma vez, fez jus àquilo que a cidade lhe já conhecia: primeiro a obrigação, o trabalho, depois a devoção. Melhor, primeiro a profissão, depois o camarão, os whiskys, os eventos de fachada.

Foi este o tal “pormenor”, que poderá sugerir uma banalidade circunstancial, mas que o jovem alferes não deixou escapar da sua memória, e que mais se foi avivando na medida em que foi aprendendo no tempo a reconhecer onde no concreto residem os valores das pessoas.

E por julgar um dever, aqui o deixa relatado para lembrar mais um grande homem que, por quase duas décadas, foi do Pemba, do Cabo Delgado, do Moçambique, que, como nós, aprendeu a amar.

Hoje, lembrei-me de ti, JAIME FERRAZ GABÃO...
- Em 14 de Janeiro de 2003 - por Francisco José Branquinho de Almeida Portugal.

Vamos, Jaime, vamos...

Faz um ano que me deixaste. O 18 de Junho é mais uma data da minha memória. Como este Mundo ainda não me arrancou o coração do peito nem me chupou o sangue onde ferve a minha alma, aqui estou a escrever-te para que me ouças na transcendência da comunicação espiritual que os laicos materialistas não entendem, mas fingem aceitar quando lhes interessa para o alcançar das efémeras ambições urdidas na penumbra das intrigas.

Venho convidar-te para irmos ao outro lado do mar, esse mar das Descobertas, do escorbuto, dos sofrimentos e da morte. Vamos revisitar a África onde uma geração caminhou, lutou e morreu sem saber que, um dia, o seu sacrifício seria espezinhado nas alcatifas dos sapatos de pelica.

Anda, Jaime, vamos a Porto Amélia, à cidade ondulada, a mirar-se no espelho do Ìndico, tão linda e tão calma que nem a tempestade lhe arranca as palmeiras. Vamos à praia das areias prateadas, mergulhar nas águas mornas e transparentes, com os corais ali à mão e o sal lá em frente, na linha do horizonte, quase a querer dormir, acariciando-nos os corpos. Caminharemos pela estrada de terra vermelha enquanto, ao longe, na temba isolada junto ao farol, o tam-tam do batuque vai crescendo, num frenesim de sensualidade e de suor, de crença e de dor, de delírio e de espanto.

Vamos a tua casa ver se ela ainda está rodeada de acácias, se a porta se abre e se há mesa para comermos papaias e mangas e ananases e cocos e toda a fruta nascida da virgindade do mato.

À noite, com a lua iluminando a baía, daremos uma volta pelo bairro, diremos "Olá" aos cipaios, tomaremos um café no "Polo Sul" e conversaremos sobre a Régua e as suas gentes, o meu Pai teu companheiro de Escola, as saudades das uvas com broa.

O cais estará vazio porque não é dia de S. Vapor, apetece-nos uma "Laurentina" no Marítimo, passaremos pelo Niassa até nos quedarmos no pequeno terraço da Pensão Miramar com os teus Amigos a contarem histórias do algodão e a fumarem "LM". Então, o cacimbo, virá como um nevoeiro, do lado do mar; o Paquitequete encher-se-á de ruídos e de corridas labirínticas, o Gary Cooper não dará mais tiros aos índios no barracão cinema dos monhés, subiremos a Rampa ou as Escadinhas e saudar-nos-emos com um abraço "Até amanhã".

Anda, Jaime, não hesites, vamos lá, a Porto Amélia, onde ficaram as lágrimas da tua despedida, obrigado a partires quase sem nada, fazeres as malas à pressa porque não querias ver os teus amigos de ontem transformados, repentinamente em revolucionários de sempre, porque te enojou a cobardia de uns tantos que julgavam ser possível apanhar o maximbombo do novo poder.

Vamos a Moçambique gritar que nós não temos culpa do que fizeram uns senhores que chegaram a Lisboa feitos heróis, idolatrados como salvadores, que nunca vestiram uma farda nem sabiam onde ficava África; que, por ideologias e parentescos internacionais, voltaram as costas a milhares de Portugueses que julgavam ter merecido a dignidade e a honra de reconstruirem nas matas e nas cidades a grandeza de uma Pátria.

Vamos, Jaime, vamos a Porto Amélia, dizer àqueles que, muito depois de teres vindo, te continuaram a escrever cartas de estima, que a culpa não é nossa, que não fomos refractários nem desertores, que não os abandonamos, mas nos impuseram o abandono.

Vamos, Jaime, vamos...
- Por M. Nogueira Borges-Porto-1992

QUEM FOI JAIME FERRAZ RODRIGUES GABÃO

Nasceu na cidade de Peso da Régua em 13 de Abril de 1924. Com 68 anos, depois de uma vida plena de altruismo, na alegria de fazer e conservar Amigos, dedicado à família e à sua terra, a cidade de Peso da Régua, mesmo quando residente em Moçambique, em Porto Amélia, onde ganhou o respeito, a admiração e a gratidão de todos - pelo que sempre a recordava como um apaixonado - Jaime Ferraz Gabão, Delegado do nosso jornal naquela cidade, faleceu a 18 de Junho, Dia do Corpo de Deus, em Lisboa - onde, há uns dois meses, se submetera a melindrosa intervenção cirúrgica.

Era casado com D. Nailde Soutelinho Vieira Ferraz Gabão; pai dos srs. Jaime Luis V. Ferraz Gabão (Brasil) e Júlio Manuel Ferraz Gabão (Régua); irmão de Margarida Ilharco Ferraz (falecida Porto), António Jorge Ilharco Ferraz (falecido-Régua) e Henrique Ferraz R. Gabão (Costa da Caparica); avô de três netas e um neto.

Jaime Ferraz Gabão, decano dos jornalistas da Imprensa Regional (em Trás-os-Montes e Alto Douro), começou carreira na Imprensa do Douro, tendo colaborado em jornais como "Jornal da Régua" (extinto), "Noticias do Douro" (Régua), "Noticias da Beira" (Beira-Moçambique), "Diário de Moçambique" (Beira-Moçambique), "Diário de Lourenço Marques" (Lourenço Marques-Moçambique), etç. Era delegado de "O Jornal de Matosinhos" (Matosinhos) e do "Primeiro de Janeiro" (Porto), e redactor de "O Arrais" (Régua) e de "A Voz de Trás-os-Montes" (Vila Real).

Funcionário da Estação Vitivínicula do Douro, diretor de vários clubes desportivos em Porto Amélia, foi distinguido como Sócio de Mérito do Sport Clube da Régua e homenageado pela Câmara Municipal de Porto Amélia, onde colaborou no Emissor Regional de Cabo Delgado.

Foi ainda agraciado com um "Diploma de Louvor" da Presidência do Conselho de Ministros (sob proposta do nosso jornal), com um "Diploma da Cruz Vermelha Portuguesa", pelo seu trabalho na Delegação da Régua e homenageado pelo Clube de Caça e Pesca do Alto Douro e pelo Rotary Clube da Régua, etç.

Vida, assim, intensamente vivida, em exemplaríssima dedicação à Comunidade, bem merece que o seu nome seja perenizado na sua Cidade-Berço. De resto, parece ter sido esse o sentir da multidão que o acompanhou à última jazida, depois da Missa de Corpo Presente, na Igreja Matriz, a que presidiu, por deferência do Pároco, sr. P. Gouveia e do seu Coadjutor, Sr. P. Vital (que celebrou), o Director de "A Voz de Trás-os-Montes", particular e dedicado Amigo de Jaime Ferraz Gabão.
- A Voz-de-Trás-os-Montes de 25 de Junho de 1992.

(Transferência de arquivos do sitio "Peso da Régua" que será desativado em breve)

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

CAMILO DE ARAÚJO CORREIA - O escritor e médico do Douro 'partiu' em 30 de Outubro de 2007

Texto do blogue ForEver Pemba de 30 de Outubro de 2007, escrito portanto há 7 anos atrás:

"""A vida acontece entremeada de alegrias, surpresas e desgostos a que costumo chamar de "pontapés"... Hoje recebi mais um, bem forte, doloroso porque "partiu" um AMIGO... AMIGO que, pela distância física, nem permitiu a permuta de um último abraço de despedida !

A notícia chegou assim, bem simples:
""Lamento trasmitir esta infeliz noticia. Faleceu o nosso grande Amigo Dr. Camilo. Já transmiti à Filha os sentimentos em nome da nossa Família... Faleceu no Porto, e está a caminho da casa mortuária do Peso da Régua. Será sepultado amanhã em Canelas. Logo à noite vamos ao seu velório.""

Para os leitores do blogue e Amigos que o recordam do tempo de Porto Amélia, onde foi director do Hospital Militar nos anos 60, aqui deixo link's que permitem a leitura de alguns de seus textos. E transcrevo um de seus "Apontamentos de Histórias Perdidas".
Descansa em paz Dr. Camilo de Araújo Correa (nasceu em 1925 na cidade do Porto mas viveu na Régua desde os três anos de idade).

Quando recordo o tempo de Porto Amélia, muitas vezes me salta na memória o meu amigo Armando Cepêda.
Era um homem largo, inteligente e bondoso. No carão de pugilista a linha dos olhos e a linha da boca traçavam, a miúdo, um sorriso paralelo a deixar transparecer uma acomodada filosofia de vida.
Era casado com D. Maria, senhora absoluta da Pensão Miramar. E digo senhora absoluta porque ali quem mandava era ela. Nem o marido nem os filhos davam a mínima ordem naquela nau de tripulação negra, capaz de todas as preguiças e descuidos. Com dois berros e dois cascudos aquela criadagem indolente andava numa roda viva. D. Maria era uma senhora robusta, de língua solta com sotaque do Porto.
Parecia um salpico, na costa de Moçambique, do pincel genial de Abel Salazar, em momento de inspiração tripeira. Armando Cepêda mandava na sua oficina de reparação de motores de que era especialista em Diesel. A oficina ficava na Rampa, aquela encosta medonha que nem a bordadura de acácias rubras conseguia suavizar. Medonha e obrigatória na ligação da parte alta com a parte baixa de Porto Amélia.
Passei muitas horas naquela oficina entre carcaças da mais diversa maquinaria avariada, à espera que Armando Cepêda lhe restituísse a serventia perdida. E dava gosto ver aqueles dinossauros sair de um sono pesado e regressar ruidosamente à floresta, com uma palmada na anca. Uma palmada que só o meu amigo Cepêda sabia dar.
Conseguíamos conversa entre roncos de motor e marteladas de todos os sons. E tudo servia para dois dedos de conversa, a fazer sede para dois goles de cerveja. Guardo ainda um cinzeiro de pé alto que Armando Cepêda me fez numa pausa do serviço. É a estilização de uma cobra erguida na ponta do rabo a equilibrar meio coco na fúria da cabeça.
Antes e depois de jantar, Armando Cepêda derramava o corpanzil naquelas cadeiras do jardinzinho da pensão à espera de todos os cansaços, de todos os tédios e nostalgias. Recordo ainda o perfume adocicado das magnólias que o calor da noite parecia libertar suavemente.
Os hóspedes vinham chegando, um a um, à roda das cadeiras e a eles se juntavam residentes de Porto Amélia para dois dedos de conversa. Pessoas vindas de toda a parte pelas mais variadas razões, algumas delas muito roladas pelas mais diversas geografias. Comerciantes, agricultores, médicos, funcionários públicos, engenheiros, militares, todos enleados naquele fio de nostalgia tropical que parece igualar todos os homens.
As palavras iam ficando mais espaçadas e moles com o andar daquelas noites suadas. Mas se a conversa caía sobre o mato, Armando Cepêda erguia-se um pouco da posição quase horizontal, para, pouco a pouco, dominar o assunto.
E todos nos erguíamos um pouco também para o ouvir contar histórias de camiões atolados no matope, dos perigos e dos encantos do mato. E de caça. Armando Cepêda não era, digamos, um caçador de safaris. Era caçador solitário, muitas vezes por exigência da esposa, quando a despensa fraquejava. Apertado por ela, Armando Cepêda ia ao mato abater um javali como quem vai ao fundo da capoeira buscar um frango.
Por duas vezes o acompanhei nesta caça de subsistência. A ele e ao Jacinto dos Caminhos de Ferro devo o conhecimento do mato. Sem eles a minha África teria sido pouco mais do que uma África de cidade. Jacinto era uma velha glória do Benfica. Ter sido guarda-redes das primeiras categorias era uma recordação que lhe fazia ainda rebrilhar os olhos. Jacinto era um caçador tão metódico como apaixonado. Dois pisteíros negros, o velho Land Rover, um bom farolim e a arma escolhida para o tipo de caça determinado. E eu, às vezes, graças a Deus! Sim, dou graças a Deus por ter vivido o emocionante espectáculo de andar a esmo pelo mato, com o jeep aos solavancos, farolim a esquadrinhar os espaços mais suspeitos e a surpreender os animais na intimidade da noite.
Inesquecíveis aquelas imbabalas saltitantes e graciosas como bailarinas a fugir ao palco de luz que lhes ofereciamos. E aquela sensação de liberdade plena que se experimenta, ao descansar nas quinandas, ouvindo o crepitar da fogueira e do falajar dos negros contra o silêncioprofundo do céu?Sempre me pareceu que Jacinto, mesmo a mexer na burocracia do seu emprego, tinha os olhos no mato. Tanto que, mal deixava a secretária, caía no quarto a pintar. A pintar o mato; sempre com animais em primeiro plano e, tão recortados, que pareciam postos ali depois do quadro pronto. Não era um bom pintor. As telas eram o seu mato teórico para onde gostava de ir, a qualquer hora. Uma vez, só porque me demorei um pouco mais a ver três gnus a pastar, ofereceu-me o quadro. Na bagunça do regresso, o quadro perdeu-se. E tenho pena. Estaria hoje numa das minhas paredes com as saudades da África a retocá-lo todos os dias.
De uma vez o Jacinto convidou também para a caça o Dr. Manuel Jóia, médico do «Bartolomeu Dias», ancorado na baía de Porto Amélia, em patrulha da costa de Moçambique. Foi o seu baptismo de mato. O grande entusiasmo com tudo o que ia acontecendo redobrou quando, ele próprio, abateu um javali. Entre as seis e as dez da manhã é fácil encontrá-los nas áreas da sua predilecção. Passam como carruagens de um comboio rápido. Jacinto aconselhou:
— Aponte a um dos primeiros... Pode ser que acerte num dos últimos...
E o Manuel Jóia acertou, julgando, a princípio, não ter acertado. O raio do bicho com um rombo na barriga ainda se fartou de correr como se nada fosse com ele! Depois lá caiu como se tivesse caído do comboio.
No «Bartolomeu Dias» os oficiais comeram javali até lhe chegarem com um dedo e festejaram o seu médico como um herói da selva.
Voltemos ao meu amigo Armando Cepêda. Ele era, como já lhes disse, um caçador solitário. Saía antes da madrugada e regressava antes do entardecer. Da segunda vez que fui com ele «à carne» aconteceu uma coisa que me apetece contar.
O sítio escolhido para o abate foi uma velha machamba de milho abandonada, entre Porto Amélia e Mecufi.
— Aqui é um sítio bom por causa dos restos do milho e não há macacos a denunciar a nossa presença com a gritaria — disse o Armando Cepêda, saindo da picada.
Não havia meia hora de sol, quando apareceu um javali do outro lado da pequena veiga que dominávamos completamente de onde nos haviamos instalado. Era um animal relativamente pequeno, a grunhir e a estraçalhar a um e outro lado do focinho temeroso.
Parecia nada recear e, no entanto, toda aquela energia de patas e focinho parava, de vez em quando, como se tivesse havido um curto-circuito. Depois de uns segundos de imobilização total, a fúria do javali restabelecia-se para, daí a pouco, sofrer nova pausa.
— O bicho está desconfiado... eles são muito desconfiados... — disse Armando Cepêda, à boca pequena, sem tirar os olhos do javali.
Como vinha na nossa direcção, a certa altura ficou a uma boa distância de tiro.
—Então?!—perguntei baixinho.
— Quanto mais perto o abatermos, menos custa a arrastar para o jeep...
— Pois é... — disse, reconhecendo a minha inexperiência.
Armando Cepêda sorriu aquele sorriso de linhas paralelas.
Quando o javali ficou a uns trinta metros, perguntou-me se queria atirar.
— E se falho e não aparece mais nenhum? Não podemos aparecer à D. Maria de mãos a abanar!...
— Deus nos livre!... Ninguém a aturava!...
Soaram dois tiros com intervalo de um segundo. O javali caiu no meio da erva como um saco de batatas.
Com um arame atado às patas de trás e um pau atravessado na outra ponta foi fácil arrastá-lo até ao jeep.
O «mata-bicho» à sombra daquela mangueira isolada no mato rasteiro, ainda hoje me sabe. D. Maria era uma senhora farta. Arranjou-nos um farnel que dava para atravessarmos a África. Fígado de cebolada, meio metro de omelete, carne assada, queijo, muito pão, cerveja e água mineral. Do começar ao palitar, foi uma larga hora a comer. A comer e a contar coisas.
No fim de arrumar a tralha, com o método e a lentidão que o caracterizavam, disse o Armando Cepêda, já todo contente com a ideia:
— Vamos cumprimentar o meu amigo Rosas! É chefe de posto aqui perto. Vai ficar todo contente!
Era realmente ali perto e o senhor Rosas ficou todo contente. Quis logo que nos sentássemos na varanda e foi dizendo:
— Vindes em boa altura! Tenho uma esplêndida carne de búfalo novo; vou já arranjar uns bifes e umas costeletas...
— Para mim, não! — cortei, aflito.
— Ora essa!... Por quê?! — admirou-se o senhor Rosas.
— Desculpe... é que acabámos agora mesmo de comer este mundo e o outro...
—Bem... Bem!—respondeu desalentado, mas logo a berrar lá para dentro:
— Hassan!
Apareceu um negro, a limpar as mãos, a fazer vénias e a sorrir de orelha a orelha.
— Prepara uns bifinhos e umas costeletas daquela carne... com aquele molho... Tu sabes como é!
Hassan sabia como era. Meia hora depois, apareceu na varanda com uma travessa enorme no meio de uma pequena mesa portátil, já posta para três pessoas. O cheiro da carne apanhou-me de surpresa. Era de tal maneiras agradável e penetrante que até as glândulas salivares me doeram!
— Vai uma pontinha, doutor, só para provar? — perguntou-me o senhor Rosas de olhinho irónico.
— Isso cheira pela vida... — consegui dizer em plena vertigem.
A pontinha de carne que o senhor Rosas me pôs no prato «só para provar» foi uma costeleta do tamanho de uma raquete de ping-pong espessa, suculenta e aromática...
A princípio com uma certa cerimónia e depois com uma certa gula lá fui andando pela costeleta fora. Acabei a «raquete» como mandam as regras: pegando-lhe pelo cabo... Quando pousei o osso rapado, diz-me o senhor Rosas com sorriso de vitória:
— Então, doutor, estava boa?
A vitória não foi do senhor Rosas. Foi da África. Daquele sentir tudo de novo, como uma estreia dos sentidos, em cada momento que passava.
Conheci Megama Abdul Kamal muito antes de o vir a encontrar, frequentemente, na Pensão Miramar. Megama era régulo do Chiure, com influência religiosa numa larga faixa de terreno entre o Rovuma e o Lúrio. Homem abastado, senhor de terras e camiões, era também transportador habitual da grande companhia algodoeira Sagal.
Fui a sua casa a convite do Armando Cepêda, chamado a consertar o motor de um poço. Nas apresentações vi que eram grandes amigos. Julgo que, por isso, Megama me olhou logo com respeito e franqueza, sem duvidosa humildade dos negros daquele tempo.
O motor ficou composto num instante. Nós levámos mais tempo... Megama quis que provássemos de todos os seus petiscos. Seu era também o café, da planta à chávena. A mâozada firme e confiante com que nos despedimos havia de repetir-se, vezes sem conta, por todo o meu tempo de Porto Amélia.
No regresso ao jeep, ouvi falas e risinhos por detrás de uma paliçada.Notando a minha estranheza, Armando Cepêda logo me esclareceu:
— São as mulheres de Megama...
Na cidade, vim a saber pelo Jaime Ferraz que deveriam ser umas sete... Em Porto Amélia o Jaime sabia um pouco de tudo!
Um dia, Megama apareceu no Hospital Militar todo dobrado e cheio de dores. Era uma hérnia estrangulada, há três dias... Os cirurgiões costumam «berrar» com os doentes por virem tão tarde, em evidentes situações de solução cirúrgica. Mas o Dr. Manuel Simões Coelho não berrou. Tratava-se de Megama Abdul Kamal! E por se tratar de tão importante personagem o post-operatório teve aspectos de pereqrinação.
Vinham negros de toda a parte, trazidos por aquele fio invisível que é o sentimento religioso, temperado na fé e na obediência.
Com o vai e vem da gentiaga, a vida do hospital acabou por se perturbar. Ao ponto de, pelo terceiro dia, o Simões Coelho me pedir:
— Tu, que és todo amigo do Megama, podes garantir-lhe que está livre de perigo, que tudo vai correr bem...e pedir-lhe que faça constar as suas melhoras, a ver se acaba esse corrilório!...
Assim fiz. Megama compreendeu e actuou muito bem. As visitas acabaram de um dia para o outro. Nem umas só voltou a aparecer! Ainda hoje me espanta o extraordinário poder de comunicação dos negros naquelas lonjuras primitivas, sem rádio, sem telefone e sem correio.
Armando Cepêda era um caso curioso de fotógrafo. Nem amador, nem profissional. Era fotógrafo de ocasião, para ganhar uns cobres suplementares. Essa ocasião surgia quando os indígenas precisavam de retrato para a caderneta. Dava-lhe jeito aproveitar os domingos, que no mato não têm qualquer significado. Era sempre recebido nas aldeias com grandes manifestações de contentamento. Nas pausas da algazarra, fotografava quatro negros de cada vez, sentados numa tábua. Depois, no «estúdio», a tesoura lá os separava. No domingo seguinte, a caminho de outra, passava pela aldeia fotografada e distribuía os retratos. Havia corridinhas e gritos de alegria, com todos a querer ver a cara de cada um no retalhinho de papel.
Um dia houve um pequeno acidente... Toda a gente parecia satisfeita, quando apareceu uma reclamação, já com o jeep a ronronar a partida.
— Patrão!... Patrão!... esta não é do nosso!
— Não é tua?! É tua, sim senhor!! — garantiu Armando Cepêda olhando para o negro e para o retrato.
—Não é!... Não é!... Nosso não tem chapéu!
Armando Cepêda sabia lidar com os negros. O grande respeito e admiração que lhes infundia emanava do seu grande espírito de justiça e bondade. Além disso, era um branco forte, compunha máquinas e matava leões.
Não teve a mínima dificuldade em desfazer o equívico. Pôs a mão no ombro do negro e sossegou-o, assim:
— Ah!... o chapéu?... Fui eu que pus. É saguate! (brinde, oferta)
Os olhos do negro rebrilharam com aquela gorjeta inesperada. Depois vieram as palavras de gratidão de uma boca babada de riso:
— Brigado, patrão!... Brigado, patrão!...
E partiu, a misturar-se com os outros. Talvez a fazer-lhes inveja.
- Camilo de Araújo Correia - Livro de Andanças.

O calor está chegando aos trópicos...
Com ele vem o canto das cigarras.
Mas hoje, seu som parece-me mais triste !
Jaime Luis Gabão"""

domingo, 31 de agosto de 2014

Conheça o Reguense Jaime Ferraz Rodrigues Gabão

Cruzar a linha não é muito fácil, em especial quando não há vantagens ou ganhos em retorno. É nesta hora que você percebe e entende quem tem consideração, quem reconhece!
Conheça o Reguense Jaime Ferraz Rodrigues Gabão
As cartas enviadas desde Porto Amélia em Moçambique sobre o Sport Clube da Régua.
Jaime Ferraz Rodrigues Gabão

Nasceu na cidade do Peso da Régua em 13 de Abril de 1924.
Com 68 anos, faleceu a 18 de Junho de 1992, dia do Corpo de Deus, em Lisboa - onde, uns dois meses antes, se submetera a melindrosa intervenção cirúrgica.

Tive a oportunidade de ler algumas cartas, vindas de longe, de uma comoção difícil de esquecer. Voltou a dar vida às ruas velhinhas, de comércios e ofícios, hoje fechados na própria nostalgia dos tempos e costumes que não voltam.  
Jaime Ferraz Gabão era um reguense pelo nascimento e pelo coração, mas de origem vareira. Sempre se orgulhou dessa origem. Viveu a geminação Régua-Ovar como um encontro dentro de si próprio. Seguiu-a do seu canto, pequeno mundo de livros e papéis. A falta de saúde não lhe permitiu assistir às cerimónias oficiais.
Estivesse onde estivesse, o seu coração pulsava pela Régua. São disso eloquente testemunho as HISTÓRIAS DO SPORT CLUBE DA RÉGUA e do NOTÍCIAS DO DOURO.

Jaime Ferraz Gabão foi um jornalista espontâneo. Como tantos outros expoentes do nosso jornalismo, foi homem de formação sem formatura. O sentimento dos jornais, o espírito atento e a experiência, foram fazendo dele o apreciado jornalista que veio a ser.
Nos muitos anos de África, passados em Porto Amélia, foi colaborador de quase todos os jornais moçambicanos, muito especialmente do DIÁRIO de Lourenço Marques. Neles praticou um jornalismo de noticiário oportuno e de inabalável sentimento patriótico. Quando a descolonização lhe desmantelou a vida, ficou a lamentar mais os prejuízos da terra portuguesa, do Atlântico ao Índico, que as suas próprias perdas. Foi em Moçambique um saudoso de Portugal e em Portugal um saudoso de Moçambique.

No seu regresso de África, veio a ser, pouco a pouco, a alma e a sobrevivência do NOTICIAS DO DOURO. Por fim, era ele, com a dedicação dos tipógrafos, a conseguir, em cada semana, um número difícil.
Quando o NOTICIAS DO DOURO sofreu, bruscamente, uma grande mudança de clima,Jaime Ferraz Gabão sentiu um desconforto tão inesperado como injusto. Para se recompor da enorme frustração, não lhe bastava ser correspondente do PRIMEIRO DE JANEIRO e colaborador esporádico do JORNAL DE MATOSINHOS. Precisava de mais espaço no jornalismo regional. Teve-o da magnânima e hospitaleira VOZ DE TRÁS-OS-MONTES e, depois, do ARRAIS. Com inquebrantável assiduidade, colaborou nestes jornais do seu espírito e do seu coração, até às últimas migalhas de saúde.

O Sport Clube da Régua, distinguia-o, desde 1965, como "Sócio de Mérito".
Depois de completar 50 anos de jornalismo, muitas foram as homenagens e distinções merecidas por Jaime Ferraz Gabão: Rotary Clube da Régua, Clube da Caça e Pesca do Alto Douro, Voz de Tráz-os-Montes e Arrais; "Medalha de Mérito Jornalístico" da Câmara Municipal de Peso da Régua e "Louvor pelos relevantes Serviços Prestados à Imprensa Regional" da Presidência do Conselho de Ministros.


- Peso da Régua, Junho de 1992, Camilo de Araújo Correia.*


Conheça algumas das cartas enviadas e publicadas pelo Jornal Notícias do Douro, sobre o SC Régua.
Clique nas imagens acima para ampliar
Transcrito do site - Sport Clube da Régua

Alguém disse: Cruzar a linha não é muito fácil, em especial quando não há vantagens ou ganhos em retorno. É nesta hora que você percebe e entende quem tem consideração, quem reconhece! Minha gratidão imensa ao Dr. José Alfredo Almeida, Amigo sempre presente pela pesquisa dos textos, ao pessoal do Notícias do Douro pela autorização, na pessoa do Dr. Armando Mansilha, salientando também o velho Amigo, funcionário e jornalista Fernando Guedes, que se encarregou de fotocopiar os recortes acima expostos e ao Sport Clube da Régua, a quem meu saudoso Pai ofertou amor e inúmeras horas de dedicação intensa, desinteressadas e permitiu a digitalização-publicação no site do clube. Seu pensamento-coração, mesmo longe, em terras de África (Porto Amélia, hoje Pemba), estavam também no rincão natal. - Jaime Luis Gabão, 4 de Maio de 2011.
    • JAIME FERRAZ RODRIGUES GABÃO no GOOGLE !

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Apeadeiros da minha infância... LOIVOS

Quando, de Pereiro de Agrações (terra de minha saudosa Mãe, D. Nair Gabão) , transpúnhamos serras, em férias escolares, a pé ou de burrico até Loivos (ou vice-versa), em busca do comboio para a Régua...

Lamentando a tal cruel e moderna 'extinção' que não se condói com a MEMÓRIA, nem com o que é belo, útil e de obrigação preservar, transcrevo:

""Loivos foi extinta em 2013, no âmbito de uma reforma administrativa nacional, tendo sido agregada à freguesia de Póvoa de Agrações, para formar uma nova freguesia denominada União das Freguesias de Loivos e Póvoa de Agrações da qual é a sede Chaves.
A foto editada, pertence a um antigo apeadeiro, isto é, a uma estação de comboios secundária. Isto serve para elucidar algumas pessoas que têm total desconhecimento de tal Estação. Segundo versões de populares, esta estação ficou mais desviada da Aldeia de Loivos, devido às influências das gentes de Vidago, que não queriam que a estação ficasse muito longe de Vidago, e assim, como Loivos era uma aldeia de grandes dimensões e comercializava muitos produtos agrícolas, esta estação ficou entre Loivos e Oura, vê-se claramente que a linha teve que ter muitas alterações e muitas curvas, para que pudesse chegar a Vidago.""""
- Fontes de texto e imagens - Arquivos de Jaime L. Gabão, Wikipédia e blogue "Engenheiros do Riso.

Clique nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Janeiro de 2014. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Ainda o 41.º Congresso Nacional da Liga dos Bombeiros Portugueses.


CONGRESSO MEMORÁVEL
De 28 a 30 de Outubro, a cidade do Peso da Régua assumiu o papel de capital dos Bombeiros de Portugal ao receber, de forma nobre e acolhedora, o 41.º Congresso Nacional da Liga dos Bombeiros Portugueses.

Cerca de 700 congressistas, representando 75% das entidades detentoras de corpos de bombeiros no nosso País – voluntários, mistos, municipais e privativos –, bem como 19 das 20 federações de bombeiros, transformaram este congresso numa indesmentível demonstração do vigor e representatividade da confederação. Pode mesmo dizer-se que nenhuma outra entidade no nosso país, com excepção dos partidos políticos, tem este poder de mobilização e de participação numa assembleia magna.

Mas este congresso não foi apenas memorável por esta razão. Ele foi um momento histórico para os Bombeiros Portugueses e para as suas estruturas, por outras razões.

Em primeiro lugar, porque a circunstância de ter havido duas listas candidatas aos órgãos sociais originou dois meses de debate intenso, por todo o país, tendo como alvo o futuro dos bombeiros na sociedade portuguesa.

O conteúdo das propostas e a forma como foram apresentadas, o estilo e personalidade dos cabeças de lista, as estratégias de campanha utilizadas, os apoios conquistados, tudo isto foram argumentos que pesaram ao longo do período que antecedeu o congresso. Quer isto dizer que, no meu ponto de vista, a maioria dos congressistas definiram as suas posições relativamente às opções de voto muito antes de entrarem na sala do congresso.

A segunda razão por que este congresso entra de forma indelével para a história foi a elevação que caracterizou os trabalhos, no único dia reservado ao debate. Houve intervenções duras, umas tantas com alguma agressividade, mas todas com o respeito que a assembleia magna de uma organização como a LBP exige e merece.

Finalmente, de destacar o extraordinário desfile de encerramento, organizado de forma inovadora, permitindo demonstrar o quanto os Bombeiros Portugueses evoluíram, sob todos os pontos de vista, assumindo uma grande postura de profissionalismo no exercício da sua missão, mesmo quando o fazem na condição de voluntários. Por esta razão é justo sublinhar o empenho, dedicação e competência de todos os elementos de comando envolvidos na organização do desfile, bem como o garbo e a dignidade dos homens e mulheres bombeiros do distrito de Vila Real, que deram expressão e cor a esta manifestação exaltante da força dos Bombeiros de Portugal.

Sim, este foi um congresso memorável, em especial pelo espírito de equipa que norteou todos aqueles que, conjuntamente com o Conselho Executivo da LBP, se empenharam na sua organização: Federação de Bombeiros de Vila Real, Associação Humanitária de Bombeiros do Peso da Régua e Câmara Municipal do Peso da Régua.

Feito o balanço para aprendizagem de futuros congressos, naturalmente que há aspectos negativos a registar, sobretudo quanto à postura lateral de alguns. Esses foram os verdadeiros derrotados deste congresso e a história deles não falará.

Este é o tempo de trazermos o Congresso da Régua para dentro de cada uma das nossas estruturas, de abrirmos o debate no seu seio e de reinventarmos novos objectivos, novos modelos de organização e novos métodos de intervenção.

Este é o tempo de nos interrogarmos sobre se o caminho que estamos a seguir em cada uma das nossas organizações é o que concentra mais esforços e recursos no que é essencial.

Não nos iludamos. Aceitemos ou não, o quadro em que as entidades detentoras de corpos de bombeiros irão desempenhar a sua missão, ao longo dos próximos 5 anos, vai ser muito diferente do vivido nos últimos 15 anos, porque será mais restritivo e complexo.

A hora não é de novas conquistas, mas sim de defesa das posições que conquistamos, com uma única excepção: tem de ser possível recuperar a identidade dos Bombeiros, perdida no âmbito da criação da ANPC, nomeadamente através da institucionalização de um modelo de tutela consentâneo com a importância e dimensão destes no Sistema de Protecção e Socorro.
- Duarte Caldeira, Presidente do CE da Liga dos Bombeiros Portugueses

Nota: Este artigo foi publicado no Jornal Bombeiros de Portugal, edição de Novembro de 2011
CONGRESSO MEMORÁVEL
Jornal "O Arrais", quinta-Feira, 1 de Dezembro de 2011
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Bombeiros reuniram-se na Régua
Novos dirigentes eleitos em momento difícil.
Peso da Régua recebeu no final de Outubro, pela segunda vez, a reunião máxima dos bombeiros promovida pela sua confederação, a Liga dos Bombeiros Portugueses (LBP).

Ficou também, mais uma vez, demonstrada a capacidade de organização e de bem receber dos transmontanos, dos bombeiros e dos autarcas.

A reunião decorreu num clima de alguma natural tensão já que, contrariando o ocorrido nos últimos mandatos, se tratou de um congresso electivo na presença de duas listas encabeçadas, respectivamente, pelo comandante Jaime Marta Soares, e por Joaquim Rebelo Marinho.

A delicadeza desse momento, porventura, terá obstado a que o congresso tivesse também podido discutir com maior profundidade alguns temas, que estão na ordem do dia dos bombeiros e que, salvo melhor opinião, poderão por em causa a própria sustentabilidade de muitas associações de bombeiros a brevíssimo prazo. Falo concretamente do transporte programado de doentes, uma das principais, senão a principal, fonte de receitas de muitas associações de bombeiros.

Mas se o debate sobre o tema não terá merecido o impacto desejado, certo é que, pelo menos, serviu para o lembrar aos membros do Governo presentes bem como às entidades que, directa ou indirectamente, a ele estão ligadas.

Ao introduzir, no final de 2010, novas regras restritivas ao acesso ao transporte assegurado pelos bombeiros, o Ministério da Saúde, não só passou a coarctar, desde então, o direito dos doentes a esse serviço, como também está pôs em causa, em muitos casos, o único meio de transporte de que eles dispõem para aceder aos cuidados de saúde. Vejam-se zonas recônditas do nosso interior onde, contrastando com a bela paisagem, o reverso da medalha está nas dificuldades sentidas, nuns casos, na inexistência e, noutros, no custo dos meios de transporte.

Será bom lembrar que nem sempre existiu este serviço de transporte programado executado pelos bombeiros. Foi o próprio Estado que, na década de 70 do século passado, não tendo capacidade para o fazer, os foi desafiar para isso. Mais tarde, não obstante o serviço estar a ser executado em pleno pelos bombeiros, o Estado entendeu abri-lo também a entidades privadas, a empresas que então se constituíram para o efeito.
Essa coabitação nem sempre foi pacífica por razões muitas vezes locais ou, também, por manifesta indefinição do próprio Estado na gestão daquele serviço.

Certo é que, chegados ao final de 2010, os bombeiros se começaram a ver a braços com uma quebra dos pedidos de transporte feitos pelos vários serviços de saúde. Quebra de pedidos e de correspondentes receitas de que, até agora, nunca recuperaram. Como consequência disso, foram já dispensados vários elementos das associações que asseguravam o transporte de doentes. E, porventura, esse processo vai acentuar-se com mais dispensas, calculadas neste momento, a nível nacional, em cerca de 300.

Tudo isto se passa, em boa verdade, a arrepio dos dirigentes dos bombeiros, de forma unilateral, encapotada por regras burocráticas, não obstante os responsáveis governamentais, os anteriores e os novos, se terem prodigalizado muitas vezes em declarações na defesa dos doentes e dos seus direitos.

Não obstante, no memorando celebrado com a “troika”, sempre a “troika”, se referir a necessidade de diminuir drasticamente o transporte de doentes, quando confrontados pelos dirigentes da LBP, os responsáveis governamentais afirmaram sempre que tal não dizia respeito ao bombeiros dado que estes já haviam sofrido anteriormente com isso. No seu entender, a redução exigida pela “troika” dizia apenas respeito ao transporte particular. Contudo, a realidade tem confirmado exactamente o contrário.

A entrada em funcionamento de um novo sistema, informatizado, de gestão de transporte de doentes ligado directamente entre os bombeiros e os serviços de saúde, vem, na prática, confirmá-lo. Não que, em tese, o tal sistema não possa vir a ser uma boa ferramenta mas, de momento, apenas está servir para materializar sem apelo uma lógica economicista, que reduz, não só o número de serviços, como também o tipo de serviços, incluindo o chamado longo curso e, por maioria, na redução ainda maior das receitas.

Escrevo estas linhas em vésperas de uma reunião entre a LBP e o actual ministro da Saúde. Alguns acalentarão expectativas sobre os resultados desse encontro, mas outros nem tanto.

A lógica da crise e da austeridade, no domínio a que aqui me refiro, tem permitido grassar uma postura cega de cortes, sem critério que se assuma ou reconheça, ditados por metas traçadas aos gestores e responsáveis dos serviços de saúde como se de fábricas de salsichas ou enchidos se estivesse a falar. Ao contrário, falamos de pessoas, da sua qualidade de vida e até da longevidade de muitas delas, que a ciência tem garantido mas que, pelos vistos, os seus concidadãos lhes querem negar.
Os bombeiros continuarão na primeira linha da defesa das comunidades de onde nasceram. Estas, nesse sentido, também terão que pugnar por eles. O seu desaparecimento seria catastrófico, mas o mero enfraquecimento da sua capacidade também não deixa de constituir um dano grave. É o transporte dos doentes que pode estar em causa mas, no final, poderá ser também o socorro. Pensemos bem nisso.
- Rui Sousa Dias Rama da Silva, Director do Conselho Executivo da L.B.P. e jornalista do jornal Bombeiros de Portugal
Bombeiros reuniram-se na Régua
Novos dirigentes eleitos em momento difícil
Jornal "O Arrais", quinta-Feira, 24 de Novembro de 2011
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Cartaz divulgador da programação de aniversário da Associação Humanitária dos BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS DO PESO DA RÉGUA, a acontecer em 28 de Novembro e 1 de Dezembro de 2011 próximos.
Clique na imagem para ampliar
Clique  nas imagens acima para ampliar. Colaboração de textos e imagens do Dr. José Alfredo Almeida e edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Novembro de 2011. Actualização em Dezembro de 2013.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Memória dos Nossos Bombeiros - Carta para o Dr. Camilo de Araújo Correia

Lembrando o Dr. Camilo em 30 de Outubro de 2013, data que evoca o 6º. ano de sua ausência física entre nós. 'Carta' escrita pelo também saudoso M. Nogueira Borges.

Meu saudoso Amigo:

Faço votos para que esta o vá encontrar de modo igual ao que costumava ser enquanto por cá andou: sereno mas acutilante, especulativo mas pragmático, de bem com a vida mas adversário do fingimento.

Agora, em Canelas, não sei  como  será,  mas  idealizo o mesmo. A morte não esquece o que foi a vida quando a lembrança se perpetua, não acha? Fui lá uma vez, pousei uma rosa, falei  consigo, mas  não  me  ligou nada; até pensei que estivesse a mostrar-se amuado por demorar tanto tempo a visitá-lo. Ou, então, estaria muito atento ao que lhe diziam os que estão ao seu lado… Bem - pensei para mim – deve estar por aí a conversar com algum conhecido,  e como não tem relógio esqueceu-se da sua morada. Vim embora porque, mais tarde ou mais cedo, lá chegará a hora de pormos a conversa em dia.

Mas, sabe, imagino-o a escrever crónicas nos jornais do céu, a causticar os anjos armados em santinhos ou santinhas (ainda ninguém descobriu o sexo deles, não é meu amigo?), todos muito puritanos a dar lições de moral e, nas sombras, a concretizar o adágio dos simulados :  «Olha  para o que eu digo e não para o que eu faço.» Talvez tenha descoberto por aí  daquelas   espécimes  que olham de alto como quem palita os dentes ou arrota postas de vitela, e a tentação de os apontar  seja tanta que não o deixe ficar calado.  Para o céu deve ir – sou eu a pensar, claro – muito tipo de gente, pois a misericórdia divina não tem limites. Por cotejo com o que me ensinaram na catequese (belos tempos!), acho que ele deve ser habitado esmagadoramente pelos honestos, os construtores da palavra , os que fogem da falsidade e do descaramento, os que conhecem a grandeza humana e a  sua antítese,  os que respeitam o medo mas repelem a cobardia, os que não fantasiam  amar os pobres nem pedem publicidade para a oferta, os que sabem que a verdadeira fortuna é ter o  essencial que dê dignidade à vida, à vida de todos. Por isso, deve-lhe meter impressão ver aí de tudo como na farmácia.  Para desenfastiar já deve ter escrito outro Livro de Andanças, viajante que é dessas terras e caminhos etéreos. Deve ser uma pena não haver aí um Palácio da Loucura para uma reedição de Coimbra Minha… Olhe, vá ouvindo umas anedotas do mano João…
Escrevo-lhe dentro do carro, com o bloco assente no volante, diante do mar, na praia nortenha de que seu Pai mais gostava. Tenho memória recente  de corpos na areia, tostando a celulite ou a silicone (uma pessoa já nem sabe). Ao longe, na linha do infinito, um barco, largado de Leixões, afunda-se na vertigem da lonjura. Recordo-me de África; sei-a do outro lado do mundo, resplandecente e imensa, vermelha e abrasadora. Aquele Moçambique para onde fomos em datas diferentes, a Porto Amélia do Paquitequete e dos corais, da casa do Jaime Gabão e da mesa da D. Nair, daquela fraternidade e daquela mágoa de ver o Lança Pires esticado num Unimog, ele que fora só à Serra Mapé, em Macomia, visitar colegas de escola.

A sua lembrança, meu saudoso amigo, quando lá cheguei, ainda pairava nos exíguos corredores do hospital, nas esplanadas da Jerónimo Romero, nos serões das lendas do algodão da pensão Miramar e nas gentes que lhe conheceram o jeito e a dádiva. Neste jornal, onde na sua última página escreveu centenas e centenas – sei lá milhares - de crónicas (foi uma pena não ter coligido as principais num volume, como alguns lhe disseram), retratou o esmagamento da savana e a aventura duma caçada, a cumplicidade da temba, o espasmo sanguíneo do pôr-de-sol, o êxtase dos cheiros e dos sons do mato, a sensualidade da mulher africana, o orgasmo do nascer dos dias e  a angústia dos anoiteceres suados.

Consigo aprendi muito do que é a verticalidade e a honradez intelectual, o horror aos sevandijas e aos excessos dos humanos.  Aprendi que tanto se pode subir até tocar a platina como descer até nos ferirmos no alumínio…

Mas, perguntará, «este só agora é que me escreve?» Eu digo-lhe: aqui na Régua, terra a que sempre chamou sua apesar de ter nascido na Invicta, andou tudo numa fona por causa de um Congresso de Bombeiros. O José Alfredo Almeida, aquele jovem com um sorriso do tamanho da generosidade, que está, agora, à frente da Associação, tomou a peito a organização, publicou até um livro sobre a História desses homens que dão o corpo ao manifesto – quantos a alma – pela nossa segurança, e tão pouco recebem desta sociedade egoísta, tantas vezes denunciada com a precisão da sua pena. Sabe que foi considerado o melhor acontecimento do género realizado na Pátria? São os que vieram de fora a confirmá-lo sem ciumeiras. Que, diabo,  também somos capazes não é?...
Lembrei-me muito de si nesta altura,  que,  entre 1964 e 1965, foi presidente da sua Direcção, seu médico, director do Vida por Vida e titular da Medalha de Ouro. E tenho – caramba! – saudades de si. Há dias fui à pasta onde guardo as suas cartas - as lembranças que elas me trouxeram! Piadas de gargalhadas cerebrais, ironias tão subtis que sintetizavam a mordacidade total, tolerância de escrita, protestos cúmplices pelo desaforo social, ideias e conselhos de quem conhecia a literatura, as suas gentes e os seus modos…

Cai uma chuva triste, de luto pelo Verão que se foi, parece um choro celestial, um gemido dos deuses desgostosos com este mundo comando pela falta de idoneidade, uma saudade enorme daqueles de quem gostámos e nos deixaram do mundo dos sorrisos. O dr. Camilo nota por aí alguma revolta Divina, algum sentimento de pena por estes terráqueos que já se cansaram de lhes irem ao bolso, assaltados à lei (des)armada, como quem limpa fraldas a meninos? Diga-LHE para vir cá abaixo pôr ordem nestes Montes Pintados e nestes Caminhos Velhos e Novos, nestes Assentos e Jurisdições, nestas Sedes e Filiais, nestas Desesperanças e Ódios. E se ELE não vier, que mande um novo Cristo com um cajado na mão para expulsar toda a canalha da Terra. Peça-lhe isso, não se esqueça…

Vou-me despedir, imitando-o nos momentos de emoção: «RAIO!»


- Novembro de 2011 - M. Nogueira Borges
Memória dos Nossos Bombeiros - Carta  para o Dr. Camilo de Araújo Correia 
Jornal "O Arrais", quinta-Feira, 10 de Novembro de 2011
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Texto de M. Nogueira Borges publicado com autorização do autor neste blogue e no semanário regional 'O Arrais" (10/11/2011). Atualizado em 30 de Outubro de 2013, data que relembra o 6º. ano de sua ausência física entre nós. Clique  nas imagens acima para ampliar. Imagens cedidas pelo Dr. José Alfredo Almeida e editadas para este blogue. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Novembro de 2011.