quarta-feira, 22 de junho de 2011

Memórias de Coisas Antigas

Abeilard Henriques Vilela

Convidado que fui a escrever sobre os nossos bombeiros, quero desde já alertar que não sou sequer um bom escrevinhador das letras portuguesas e muito menos ainda sou um razoável comentador.

A minha idade avançada - a roçar os 90 anos de idade - não me tem impedido, contudo, de escrever coisas com alguma ousadia, sobre lembranças que perduram na minha memória, as quais sempre pretendi expor com a verdade que defendo e tal como as sinto, aliás, tendo emigrado da Régua quando ainda era um rapazote, apenas guardo lembranças dos velhos tempos, embora consiga guardar, ainda, todo o meu interesse pela terra em que nasci e de que me honro e por toda a região do Douro, a que fiquei ligado por acontecimentos que me e motivaram e por outros menos significativos, mas que me ajudaram a abrir os olhos para à vida.

Lembro-me, por exemplo, das enormes cheias do nosso rio, que, naqueles meus tempos de menino, chegava a levar as suas caudalosas águas até muito escassos metros da rua dos Camilos, trazendo aos nossos bombeiros trabalhos da máxima urbanidade, que os glorificariam para sempre. Eram cheias espectaculares, que amedrontavam mais as gentes ribeirinhas, porque lhes levava os animais que as sustentavam, porque lhes derrubava árvores que faziam parte da sua vida, e levavam com a corrente toda a espécie das suas pequenas riquezas, abatendo-lhes as míseras casas que lhes serviam de habitação. E roubava, por vezes, vidas de gente estimável, como aconteceu ao Dário e ao seu irmão, dois jovens que viram o bote em que se deslocavam ser engolido pelo redemoinho que as águas faziam, ao encontrarem a ponte de pedra, que liga, hoje, os concelhos da Régua e Lamego. Iam os dois irmãos à caça dos patos, que os havia em tal oportunidade... Eram, de facto, impressionantes tais cheias, quando, então, o nosso rio metia medo e respeito.

Estou a lembrar-me também, de uma estranha pergunta que fiz ao meu tio (António Monteiro) sobre os quilómetros de fios que nos passavam sobre as cabeças, estranhando eu na minha insensatez a sua resposta, informando-me que levavam energia eléctrica para a região do Porto. Perguntei-me a mim próprio porque o Porto nos levava a energia, quando nós, na Régua, ainda só tínhamos a luz de carboneto e em muito pouca quantidade... Já, ontem, levavam a nossa electricidade em condições tão precárias, como, hoje, nos levam o vinho do Porto, deixando toda a nossa região coberta com os mantos dos pobres! Injustiças e abandalhamentos, abusos e desprezo para as nossas gentes, que tão dura e dificilmente vivem a vida!...
Mas, referindo-me, agora, aos bombeiros da Régua, guardo uma especial recordação, qual é a de, numa certa manhã - teria eu uns 12 anos, talvez em 1934 - ter visto o meu avô materno (Gaspar Monteiro), face a um princípio de incêndio que se declarara num telhado da casa que habitávamos, subir arrojadamente ao mesmo telhado, através de uma janela e, apesar dos mais de 80 anos que já teria, ter apagado, sozinho, as chamas com um extintor, que ele, antecipadamente, fôra buscar ao aquartelamento dos nossos bombeiros, então situado num exíguo pátio que estava ligado à rua dos Camilos, por um pequeno e estreitíssimo quelho. Admirado com a sua destreza, foi nessa altura que tive conhecimento que ele, o meu avô, fôra pouco tempo antes o comandante da humanitária corporação, o que bem me explicava o seu desusado comportamento, apesar do pedido de todos os seus familiares presentes, que temiam uma queda, um acidente complicado. Aproveito para comparar a estranha colocação do quartel naquele quelho, porquanto qualquer movimentação das viaturas se tornava tremendamente difícil e demorada. Que comentários se fariam hoje?

Mas não pretendo falar da acção do meu irmão, do Dr. Júlio Vilela, como presidente dos nossos bombeiros, porque me parece que muito pouco poderia acrescentar para mais lhe acrescentar na boa memória de que continua a gozar, apesar dos muitos anos passados sobre o seu inesperado falecimento. Sei que deu toda a sua fôrça e inteligência, que pôs ao serviço dos seus conterrâneos e, naturalmente, da corporação a que teve a honra de presidir. Advinho quanto o meu irmão apreciaria o reconhecimento das pessoas pelos serviços que, também voluntariamente, lhes prestou.
Para finalizar, pretendo, ainda, aproveitar esta oportunidade para lembrar a figura benquista de Carlos Cardoso dos Santos, de quem fui amigo do coração. Conhecemo-nos como alunos do Colégio de Lamego, para onde eu fui transferido inesperadamente, por morte de meu pai. A partir daqui, fomos, na juventude, companheiros de todos os dias e, quando na Régua, gostávamos de percorrer quilómetros e quilómetros de estrada, conversando horas seguidas, ou fazendo desvios pela margem esquerda do nosso rio, tomando banhocas à revelia das nossas famílias, que temiam as muitas ratoeiras que, traiçoeiramente, uma vez por outra, vitimavam outros rapazes. As conversas que todos mantínhamos, uns com outros, forjavam sólidas amizades, que se manteriam pela vida em fora. Eram uma prática que foi caindo em desuso, tornando mais frágeis os laços sociais, para o que terá contribuído em muito o aparecimento da televisão, dos bares e outras actividades afins, talvez menos canseirosas e exigentes. O Carlos Cardoso foi dos poucos jovens do meu tempo que se fixaram na Régua, onde, então, veio a exercer destacadas missões de carácter humanitário, como foram as prestadas na Misericórdia e, principalmente, nos bombeiros, de que, por anos e anos, foi seu inestimável comandante.


Lembro-o com saudade, como lembro outros bons companheiros da minha juventude, guardando uma especial referência para o Rogério, abatido dos vivos pela assassina tuberculose, que, então, todos receávamos, porque ainda não tinha chegado o tempo dos anti-bióticos, descobertos posteriormente, e que constituíram uma verdadeira revolução para a medicina. A morte do Rogério, com 32 anos de idade, foi um golpe para todos nós, que o víamos como um extraordinário jogador de futebol, além de que era também uma excelente pessoa e um estimável companheiro. Eu e o Carlos Cardoso, um pouco mais novos do que ele, olhávamo-lo como nosso especial conselheiro, que o era de facto. Enfim, tempos que não voltam mais, mas que, uma vez por outra, relembro com muita saudade, e que fôram os da minha primeira formação, aquela que me manteve sempre ligado à minha região, ao Douro, ao nosso rio, aos nossos costumes tradicionais, aos montes e vinhas, que, tudo considerado, me transformaram no homem que sou, nas suas qualidades e defeitos.

Eram outros tempos, mas, como foi bom vivê-los!

Nota - O nosso muito obrigada, mais uma vez, ao senhor Abeilard Henriques Viela pela sua generosa partilha no Arquivo dos Bombeiros da Régua de tão preciosas e fiéis memórias que, numa saudável nostalgia, evocam com muita ternura e admiração grandes e inesquecíveis figuras da história da Associação. A saber e a gravar o seu nome em letras de ouro: Gaspar Henriques Monteiro, um bombeiro da velha guarda; Dr. Júlio Vilela, um dos melhores Presidentes de Direcção de sempre e o saudoso Comandante Carlos Cardoso.

- Colaboração de texto e imagens do Dr. José Alfredo Almeida e edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro". Clique nas imagens acima para ampliar.
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Memórias de Coisas Antigas
Jornal "O Arrais", Quinta feira, 23 de Junho de 2011
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Recortes - RÉGUA, antes... RÉGUA, depois...

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Vista panorâmica da cidade de Peso da Régua

sábado, 18 de junho de 2011

Jaime Ferraz Rodrigues Gabão partiu há 19 anos

Por que choras, Pai?
Pelo teu sangue que vai,
Na lonjura dos céus,
Sobre terras e sobre mares,
Impedido de dares
Um beijo dos teus,
Um beijo de amor
Que esquece qualquer dor,
Escancara a alegria
E ressuscita o dia?
Querias a certeza
De viver sem a ausência
Do riso e da voz da tua paixão?
Sentir-lhe a permanência
Como um único coração
A bater por duas vidas,
Sem chegadas e partidas?
Tudo num só olhar,
Tudo num só abraço,
Sem razão para chorar
E sem este dorido cansaço
Que lentamente te mata;
Sem saber quando desata
Este nó aflito,
Este violento grito
Que encolhes para lá dos limites,
Para além do que existes?
Pai, por que choras?
Querias viver sem estas horas
Consumidas como uma eternidade?
Querias que a felicidade
Estivesse sempre na tua mão
Como uma flor que brotasse,
Feita reincarnação
- Ou reinvenção -
De uma criança que nunca se afastasse?
É longa a saudade,
Tão longa e infinita,
Que não há, em boa verdade,
Uma palavra que, mesmo bem escrita,
Traduza a dimensão desta realidade:
Que o amor pelos que nascem de nós
É tão físico e tão forte,
Não se apaga na morte,
Em nenhuma terra se esquece,
Em nenhum sono desaparece.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui.

Nota: Dedico este trabalho poético de M. Coutinho Nogueira Borges à memória de meu saudoso Pai - Jaime Ferraz Rodrigues Gabão.

QUEM FOI JAIME FERRAZ RODRIGUES GABÃO:
Nasceu na cidade de Peso da Régua em 13 de Abril de 1924.
Com 68 anos, faleceu a 18 de Junho de 1992, dia do Corpo de Deus, em Lisboa - onde, uns dois meses antes, se submetera a melindrosa intervenção cirúrgica.
Uma de suas paixões era Porto Amélia/Pemba.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

História de uma medalha

Gostava muito de saber contar-vos a história da medalha que, em 1918, os bombeiros da Régua, fizeram para comemorar o 38º aniversário da Associação Humanitária dos Voluntários do Peso da Réguas, fundada por Manuel Maria de Magalhães, como se sabe  em 28 de Novembro de 1880.

Sabe-se muito pouco sobre esta medalha e não abundam informações que nos ajudem a relevar os seus segredos dos passados e os mistérios da sua existência.
Sabe-se que é a medalha mais antiga que a Associação teve para distinguir os seus principais homens, os bombeiros e os directores e aqueles que sempre a ajudaram em momentos de dificuldades financeiras.

Uma coisa é certa, como medalha antiga conta-nos algo da instituição que a mandou cunhar e da pessoa que a recebeu. E, neste caso concreto, dos herdeiros que a guardaram como se fosse um bem precioso.
O resto que dela conhecemos fica na penumbra do tempo como uma sombra muito vaga de exemplos de vidas antepassadas que, ousaram dar um pouco de si pelos outros, e da lição de vida dos bombeiros voluntários de uma época, por certo, generosos e abnegados a cumprirem as suas missões de paz e de socorro.

Nos bombeiros, quando as medalhas, não são comemorativas de datas históricas, certificam reconhecimentos pessoais aos bombeiros, directores, associados e beneméritos.
Uma medalha é um objecto de dimensões apropriadas para fazer um agraciamento público. E, por assim dizer, uma espécie de lembrança a quem se quer reconhecer, umas vezes, pelos seus gestos altruístas, fora do normal no comum dos mortais e, outras vezes, pelos actos de dedicação, comportamentos exemplares, serviços distintos, de mérito e de valor, de coragem e de abnegação.

A medalha não premeia apenas os bombeiros que são considerados, pela opinião geral, como heróis. Se, quase sempre, esses a merecerem pela coragem que revelaram perante a grandeza dos perigos que correram as suas vidas para salvar a dos seus semelhantes, muito outros, a receberam apenas pelo seu exemplo de cidadania, espelhados nos puros ideais de generosidade e de fazer o bem.
Quem recebeu uma medalha pelos seus méritos de humanidade guarda para sempre como uma prova de um justo reconhecimento as suas qualidades humanas.

E quem guardou uma medalha religiosamente no meio dos seus objectos pessoais, sabe que o seu real valor, seja ela de que título for, é sempre o afectivo, vale pelo prestígio que confere e acrescenta ao curriculum pessoal.

Sobre a bonita medalha de 1918, pouco ou muito pouco sabemos, o que sabemos foi-nos contado e aceitamos ser a verdade e a essência do que aconteceu ao homenageado, ao cidadão  que ela distinguiu.

Sabemos que medalha pertenceu a um homem de uma família muito conhecida na Régua, os Eliseus, que tiveram durante negócios prósperos espalhados pela Rua da Ferreirinha. Esse homem, nascido em 29 de Junho de 1890 e falecido em 1 de Junho de 1968, chamava-se António dos Santos Eliseu. Foi ainda do tempo dos briosos bombeiros da velha guarda. Recebeu-a, ao que nos contaram os familiares, pela sua bravura no combate a um incêndio num velho armazéns de vinhos que existiu junto ao rio, na zona da Meia Laranja. Depois de morrer, deixou-a entregue em boas mãos, nas de uma filha que a soube manter entre as memórias mais sagradas que lembram, para sempre, os que mais amamos e nunca morrem no coração dos vivos.

A filha, a senhora D. Amelinha, dona da preciosa relíquia, com o seu carinho e admiração pelos bombeiros e o exemplo do seu pai, que o não queria esquecido, fez-nos escrever a verdadeira história da medalha.

O melhor será dizer: fez-nos escrever a história, mesmo que muito sumária e breve, da vida maravilhosa de um bombeiro, de um anónimo herói, um bom exemplo para divulgar as gerações mais novas.

Para acabar, retiro uma conclusão para a história da medalha, a vida de um bombeiro nunca é efémera. 

-Colaboração de J. A. Almeida* - Régua, para "Escritos do Douro" em Junho de 2011. Edição de J. L. Gabão. Clique nas imagens acima para ampliar.

*José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também crónicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária, fatos do passado da bela cidade de Peso da Régua.
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História de uma medalha
Jornal "O Arrais", Quinta feira, 16 de Junho de 2011
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História de uma medalha