sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

UMA VOLTA CÁ POR DENTRO


Por Camilo de Araújo Correia

Relacionam-se com os nossos bombeiros as memórias dos seus primeiros raciocínios.

Estivesse onde estivesse, a brincar, a comer ou a dormir, logo acorria ao ruído marcial da sua passagem. Não ia longe o entusiasmo que me tinha arrancado ao que estava a fazer. Logo o meu espírito começava a intrigar -se com a rigidez daquelas fileiras, a limpeza daquelas fardas e a refulgência daqueles machados. Toda a gente me dizia que os bombeiros, mal tocavam a fogo os sinos do Peso e do Cruzeiro, acorriam, sem demora, à casa que estivesse a arder. Mas... como podiam correr, assim, em duas fileiras e com aquele passo? Depois, parecia-me impossível ficarem sempre como a prata as machadas, sendo a de partir a lenha em nossa casa uma vergonha de bocas e negrume, além de lhe estar sempre a sair o cabo... O que mais me intrigava ainda era a limpeza das fardas. É que eu, com duas voltas no quintal, sem apagar fogo nenhum, ficava logo com o bibe a merecer urnas surras da minha mãe.

Receio bem que o meu desejo de ser bombeiro não tenha sido tão puro como o de todas as crianças do mundo. Lembro-me perfeitamente de quando me apeteceu ser bombeiro. Foi logo a seguir a um grande ataque de inveja. É melhor contar tudo inteirinho...

Foi numa tarde de calor e de tourada. O Cimo da Régua era um mar de gente que se agitava de cada vez que aparecia um figurante de corrida, já vestido para o efeito. Eu andava ali bem seguro pelas mãos enormes de meu pai e de meu avô. De vez em quando, ouvia-se uma corneta que me enchia de entusiasmo e de medo. Houve até um certo pânico, quando um cavalo de grande pluma vermelha subiu o passeio. A certa altura que vejo eu? Um bombeiro de palmo e meio aos ombros de um homenzarrão!

Os meus olhos nunca mais se despegaram daquele capacete de oiro e da-quela machadinha de prata... Quando a inveja me deixou falar, perguntei a meu pai:

- Aquele menino é bombeiro?

- Não... é a mascote!

- É o filho do Zé Pinto – disse, depois, voltando para o meu avô.

Eu não sabia, é claro, o que era ser mascote. Mas fiquei a saber, dolorosamente, que as crianças podiam usar farda, capacete e machadinha como os bombeiros grandes.

É bem certo que neste mundo é que elas se pagam. Deus, na sua infinita ironia, acabou por me fazer bombeiro, cerca de trinta anos depois do meu ataque de inveja.

Vim a ser Presidente da Direcção por entusiasmo e crédito de um punhado de amigos. Não pensaram na minha desesperada falta de tempo...

Tive de abandonar com o dedo imperioso da profissão espetado nas costas. Tudo acabaria muito bem, se ficasse por aqui. Mas é que eu viria a ter anos depois, a sobrinha mais travessa que Deus ao Mundo deitou!...

Um dia, num chá de certa cerimónia e sem vir a propósito, saiu-se com esta:

- O meu tio já foi bombeiro, mas teve que sair porque não apagava nada. Os risinhos das senhoras, mal disfarçados, atravessaram-me como alfinetes...

De cada vez que me pregava esta partida, tentava fazê-la compreender que o meu papel de Director não era ir aos incêndios, nem apagar fosse o que fosse, por mais que as coisas ardessem à minha volta.

Em vão procurei convencê-la de que os bombeiros também têm escritório com secretárias cheias de papéis...

De cara fechada e olhos trocistas dizia sempre:

- Sim... Sim...

Paguei bem paga a inveja que me fez o capacete e a machadinha daquele bombeiro de palmo e meio aos ombros de um homenzarrão, numa tarde de calor e de tourada.
- Colaboração de J. A. Almeida para "Escritos do Douro" em Janeiro de 2011. Clique na imagem acima para ampliar. Imagem da "posse do Dr. Camilo de Araújo Correia" pertence aos arquivos dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua.

Recortes: Régua, antes... Régua, depois...

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quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

A SESTA

As amendoeiras estão secas, as favas-ricas espalham-se no chão, as buganvílias resplandecem nos jardins e os chorões beijam a relva. Os pinheiros mansos, oliveiras e raras acácias protegem os carros de latas escaldantes sob o calor do meio-dia.

Caminho por entre alas de arbustos, administrando as sombras, derreado com os sacos de praia engordados de toalhas, calções e cremes anti-solares. A petizada chilreia em volta da piscina, as Mães, com pratos de cerelac, imploram-lhes as bocas; anafados passeiam cães de marca, deixando-se levar pelo esticar das correias; mulheres de ondulantes proeminências derretem, sem precauções, a sua celulite; as esplanadas enchem-se de estrangeiros a enfardar batatas fritas com canecas de cerveja que mais parecem cubas, numa algazarra que a desinibição em terra estranha facilita. Respira-se uma mistura de cheiros a cloro, ambre solaire, perfumes franceses, sardinhas assadas e febras grelhadas.

Vim por aí abaixo, numa noite sem sono, para fugir ao calor e às bichas de esmigalhar paciências. Atirei-me, mal arrumadas as tralhas, à liberdade de um mar sereno e à vastidão dum areal que me imaginei, há muitos anos atrás, naquelas imensidões africanas com as palmeiras franjando o Índico. Quem me visse, tão criança, esbracejando como quem afasta repressões, julgar-me-ia fugido de algumas grades, mas, apenas abandonara as neblinas do litoral nortenho que, sem possibilidades de se virar o mapa ao contrário, se vingam aqui.

Ao longe, depois de uma ponte pênsil sobre o rio Gilão e ramificações da Ria Formosa, um comboiozinho artesanal ronrona tão lento – em estirar de mamba - que parece ali andar desde o exórdio do mundo. Vai e vem sempre esgotado, levando e trazendo banhistas, entusiasmados na ida, arrastando-se na vinda.

Os toldos amontoam-se ao pé de um antigo abrigo de pescadores em que restaurantes ocasionais gananciam em três meses pelo que não facturam em nove. A praia, de areias açucaradas, beijada por uma irresistível mansidão líquida, estende-se até os confins do olhar. Por ela se dispersa, num mosaico complacente, uma fauna de muitos lugares, condições, espécies e maneiras: há seios ao léu aprumados como setas, outros descaídos como moncos de peru, fios dentais a fazerem de conta que tapam sexos rapados, barrigas de maternidades, banhas de abafar, securas de espantar, esculturas de ébano, remedeios matrimoniais, cabelos loiros deslizando água, carecas sem um pêlo para flutuar, palhaços fora do circo a fazerem o pino para as palmas de senhoras que falseiam júbilos, vendedores de bolos cozidos pelo sol, sorveteiros esganiçados com
arcas a tiracolo, rostos felinando as ancas e os traseiros que passam, velas de windsurf que enfunam como barbatanas de tubarões, figuras televisivas que escondem, sob óculos de escuro espesso, a autenticidade que não é igual à que dá a sala da caracterização, iates atulhados de nudistas a cortar as águas junto à costa, pantominas de motos espirrando jactos como baleias, mamas em carne viva e besuntadas com guinchinhos de chamar a atenção. No meio disto tudo, um velhote, vestido à marinheiro com botas de montanha, chama os netos com um apito de ajuntar cães, observo-lhe a cara, os olhos alienados, e penso que deve ser triste conviver com a loucura. Deixo, com alívio, essa ontologia diversificada, morto por um chuveiro que me limpe as areias e a aspereza salina.

Quando o almoço acaba e a sonolência chega, a sesta é um prazer antes do gozo. Adormeço com um búzio nos ouvidos, numa leveza anestésica, já mal escutando o passar distante do comboio de Faro.
- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Beleza de Inverno

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A neve é sorrateira. Deslumbra todas as pétalas, mas inquieta a maior parte das almas. Cai entre silêncios absolutos, que só o de morte ou o de caos lhe dará rosto. Faz parte da Terra um sepulcro ou um regresso à primitiva luz. Cala e obriga a calar-se o mundo que sepulta. Mas se o homem alguma vez sonhou modificar o seu ninho com um grande sonho, foi a neve que lho realizou. A terra, ninho do homem, deixou de ser terra depois de uma nevada. E, para além do súbito abalo, um país ideal. É o reino da brancura.”

- De João de Araújo Correia, da crónica “Beleza de inverno”, do livro Ecos do País (1969) - Colaboração de J A Almeida para "Escritos do Douro 2011".