segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Arquivos: Entrevista e nota da semana da Página de Cabo Delgado do Diário de L. Marques

Entrevista e nota da semana da Página de Cabo Delgado do Diário de L. Marques

Extratos da semanal "Página de Cabo Delgado" do então Jornal "Diário de Lourenço Marques".
Arquivo que retrata uma entrevista e uma nota da semana da página de Cabo Delgado - Diário de Lourenço Marques, realizadas em 1972/73. Essa página semanal era escrita/produzida pelo jornalista duriense (nascido na cidade de Peso da Régua-Douro-Portugal) e residente à época na bela capital do (então) Distrito de Cabo Delgado em Moçambique, Jaime Ferraz Rodrigues Gabão. Deve notar-se que o Emissor Regional de Cabo Delgado (citado na entrevista) do histórico Rádio Clube de Moçambique advém dessa época e ainda se encontra funcionando atualmente nas mesmas instalações. Pedimos desculpas pela fraca qualidade das imagens.
(Dê duplo click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)

sábado, 18 de dezembro de 2010

Rio velho, rio novo

por Camilo de Araújo Correia

Teria os meus quinze anos, quando fui da Régua ao Porto de barco rabelo, metido num grupo de familiares e amigos, em passeio sonhado por meu pai, sabe Deus há quantos anos...

Era verão e manhãzinha, quando partimos do cais da Régua por entre rabelos ancorados que me pareceram elefantes a chapinhar. O nosso barco era pequeno e logo nos deu a sensação de grande fragilidade, ao ser apanhado no meio do rio pela forçada corrente. O arrais chamava-se Passarada. Era um homem pequeno e magro, cor de castanho gretado, de idade indefinida como a da camisa aberta até ao atilho das calças, arregaçadas um palmo acima dos pés descalços. Recordo a importância que lhe dei, ao vê-lo passarinhar à popa, de mãos firmes na espadela e olhar atento no rio, até ganhar a linha de água que mais convinha à sua navegação.

Não tirámos os olhos da Régua, enquanto a pudemos ver. E quem os poderia tirar daquela terra linda, aconchegada a um chão de vinhedos sem fim, diante de um rio ainda sem bridão? Ninguém adivinhava nas entranhas da sua beleza a convulsão que viria a manifestar-se nos esgares de cimento que igualam todas as fealdades urbanas.
Foi uma viagem de encantos e de medos. Encantos e medos que da estrada ou do comboio ninguém podia suspeitar.

Até Entre-os-Rios, onde pernoitámos, a viagem decorreu ao ritmo do coração invisível de um gigante adormecido. O rio ora se estreitava entre despenhadeiros que quase se tocavam, ora se alargava em águas tão mansas que pareciam resolvidas a não continuar a correria. A sístole e a diástole em pleno peito de urna região forte, bela e poderosa.

Nos rápidos, que na linguagem ribeirinha chamam pontos, o barco gemia de humildade na fúria do cachão. As margens passavam como vertigens paralelas. E, quando a água lambia a borda do rabelo, os gritinhos das senhoras pareciam salpicar o silêncio pesado dos homens. Em certos pontos, por ventura com história de naufrágio, apareciam na face de um rochedo recolhido pinturas ingénuas de figuração religiosa. Os barqueiros tiravam as boinas surradas para uns segundos de prece. Lá no alto, frágil como um pardalito, Passarada manobrava a espadela com precisão e coragem. Ainda me soam na memória, como um eco repetitivo, as suas ordens aos remadores:

- Amó-lá-pá!  amó-lá-pá!.. amó-lá-pá! ...

De um e outro lado, depois das faixas mordidas pelo rio, as margens erguiam-se mais suaves ou mais escarpadas. Vinhedos desde o rio às matas da cumeada, pomares nos rechãos mais convidativos, povoados ribeirinhos e distantes, palácios arruinados e melancólicos, armazéns tristes e silenciosos na orla dos mortórios. Tudo se via do barco nessa paisagem rústica e humana marcada por crises e abundâncias ditadas pelo fatalismo.

Depois de Entre-os-rios o Douro não voltou a ser um rio de mau génio.

Entre margens aprazíveis, as águas corriam largas e quintas como sangue de animal arrependido foi preciso remar sempre para não perder o fio da corrente e forte para chegar ao fim da viagem antes de anoitecer.

Mais de quarenta anos passaram sobre a minha primeira viagem da Régua ao Porto pelo rio. Entretanto, a competição rodoviária e ferroviária foi, de ano para ano, reduzindo a zero o tráfego fluvial de pequenas e grandes distâncias. Pode dizer-se que ficaram apenas os barcos necessários à serventia das terras ribeirinhas que se miram de uma e outra margem.

Passarada, o arrais do rio velho, deve ter acabado ao canto da lareira a queimar, pedaço a pedaço, o barco que lhe deu o pão, as rugas e as brancas. Devem ter morrido assim os últimos arrais e os últimos rabelos.

Não sei se por raciocínio espontâneo, se por chuçadela de Neptuno, os homens andam ultimamente, muito voltados para as águas, como fonte de soluções até agora insuspeitadas. Se houve interferência de Neptuno, bem merece do homem embriagado de progresso galopante um tridente de ouro no dia das suas eternidades.
Alguém reparou e fez reparar, com olhos de futuro, no complexo potencial que o rio Douro e a sua região representam. Vieram primeiro uma a uma, as barragens satisfazer boa parte das necessidades energéticas do país. Depois, ganharia entusiasmo persistente a ideia da navegabilidade, aberta aos barcos de calado próprio do tráfego dos grandes rios. Pensou-se, e pensa-se, que só a navegabilidade do Douro poderá rasgar os mais vastos horizontes da agricultura, da indústria, do comércio e do turismo na região mais rica e mais bela do nosso país.

Com a navegabilidade conseguida até à Régua, um novo turismo pode começar entre nós. E já começou.

Municípios e Turismos, do Peso da Régua e de Lamego, atentos aos recursos de um rio que lhes é comum, deram as mãos, de uma e outra margem, e patrocinaram a primeira viagem de turismo fluvial, entre a Régua e o Porto.

Sábado 25 de Outubro de 1986 - uma data escrita na água, até entrar na História que aí vem do nosso rio e da nossa região.

O Ribadouro esperava no cais da Régua, embandeirado e feliz com a gente que chegava ao seu convés e com a gente que ficava para dizer adeus. O tamanho, a cor e o riso largo das suas janelas fez-me recordar o Santo António, o simpático barquinho que me levou de Sorrento à ilha de Capri.

Entre palmas e apitadelas o barco ganhou o meio do rio para logo começar a descer como diamante que risca um espelho imaculado. Outros tempos, outros barcos, outras águas.

Até à Ermida, tudo era bem conhecido de todos. As pessoas corriam de uma janela para a outra apontando, sorrindo e dizendo adeus a quem das margens nos acenava.

A diferença que logo se nota nas margens do rio novo é a falta daquela borda, lodosa ou ressequida, marcada pelo constante movimento do rio velho. As águas subiram, pararam e ficaram a beijar os vinhedos, as hortas, os pomares e até as casas mais ribeirinhas. Por tudo se passa à mesma velocidade. Já não há o medo e a hipnose das vertigens paralelas. Rápido e caudaloso era o Rogério Reis a ciceronar pelo microfone. Pena foi que o ronronar do motor nos tivesse roubado tanto da sua valiosa cultura regionalista.

Há mais casario e mais cultivo pelas encostas, mas, desgraçadamente, o mau gosto parece comum às vivendas e casa de lavoura. E faz pena ver tanta casa senhorial abandonada. Mas, não sei que me diz que todas elas voltarão um dia a recuperar a dignidade. Vem aí muita gente ver o que somos e o que temos.

Num trecho silencioso do rio ancorámos para almoçar no Convento de Alpendurada. Do ancoradoiro ao Convento é um salto, mas ninguém dispensou a serventia dos autocarros. Não é à hora física do almoço que se deve ver o Convento de Alpendurada. Sentir o que foi e adivinhar o que pode vir a ser. No enorme e belo edifício, até há bem poucos anos abandonado, já foi gasto muito dinheiro e muita coragem. Espera-se e deseja-se que nem uma coisa nem outra venham a faltar, agora que está bem perto de ser, ao que julgo, a maior pousada do país. Não tive tempo, nem teria olhos, para apontar inexactidões que porventura, se andem a cometer nas obras de restauro. No entanto, uma figura me pareceu despropositada no jardim fronteiro ao edifício. Uma elegantíssima mulher de bronze, em tamanho natural, oferece, em gesto donairoso, os mimos da sua nudez diante do olhar pisco das celas. Parece-me uma provocação aos fantasmas de quem tanto combateu os pecados da carne. Além disso, ninguém sabe do que é capaz um fantasma restaurado... A bela estátua ficaria bem melhor num rochedo, como que saída do rio para ensinar o caminho do paraíso, lá no alto, no Convento.

A Pala, vista do lago em que ali o rio se transforma, é de uma beleza e de uma ternura indiscutíveis. Parece um daqueles presépios gigantescos onde o construtor resolveu meter tudo e onde tudo se mexe por força de mola oculta em qualquer parte: Pontes, estradas, via férrea, vinhedos, pomares, casario, barcos, carros e comboio a passar...

Não vale a pena negar que havia uma certa preocupação com a passagem das eclusas... Não há razão para ter medo. Razão há, isso sim, para viver ali, bem no centro, a luta titânica da ciência e da natureza. Carrapatelo assombra sem amedrontar. Em Crestuma chega a comover o abrir, de par em par, daquelas portas colossais, E tão solene que até se estranha que, do outro lado apenas o rio continue. Só faltou um pouco de música de Wagner...
É impossível trazer para o papel todas as luzes, todas as sombras, todas as cores, todos os sons e todos os silêncios desta viagem pelo rio Douro. Até o atraso que sofremos, acabou por nos dar novo encantamento. As luzes reais e reflectidas são tantas, de uma e outra margem, que nos pareceu chegar, não à Ribeira, mas ao firmamento, em noite de festa.

Quando as barragens vieram partir o Douro pela espinha, imobilizando-lhe as águas, João de Araújo Correia exprimiu o seu luto chamando-lhe Rio Morto. Eu próprio lhe chamei Rio Perdido. Não. O Douro está vivo e achado.
- Colaboração de J. A. Almeida para "Escritos do Douro" em Dezembro de 2010. Clique nas imagens acima para ampliar.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

CRISTO E A MENINA

Era o tempo dos sonhos sem limites. Os risos das pessoas pareciam sinceros. Não havia ambição, nem inveja, nem ódio; a vida não se projectava no calculismo. O medo, esse, estampava-se nos dois retratos pendurados na parede da Escola, por cima do quadro preto; estavam em Lisboa e viam tudo, feitos mando e obediência, deuses e donos intocáveis da Pátria. No fim da tabuada e da redacção, estrada fora, de sacola às costas, a algazarra reconquistava a liberdade. Só as Avé-Marias, na torre da Igreja, pediam recato, olhando os adultos que se descobriam. Nas vinhas cavava-se a terra à procura de tesouros; no céu, com chuva ou com sol, Deus vigiava o Mundo. Havia quem arrastasse as grilhetas do destino de pés descalços e roupas esfiapadas, mas Ele assim o queria...

Com a chegada do Verão guardavam-se as samarras e brincava-se até à noite. Os montes pintavam-se de alegria e o Alto de São Pedro tinha silvas para desbravar, ninhos para descobrir, fisgas para apontar a ilusões e guardadores para vigiar.

O menino crescia para ser um grande homem. Todos os meninos crescem para serem grandes homens. Quando começava a vindima, o bulício das gentes, a música das concertinas e o fartum inebriavam-lhe os sentidos e permitiam-lhe os espaços pela atenção dispersada.

Um dia, ainda a corta não acabara, disseram-lhe que tinha de ir estudar para um Colégio. O menino parou de brincar e, sem entender bem o que lhe ordenavam, disse que sim, porque nada lhe adiantaria dizer que não. Dentro ou fora das famílias obedecia-se à imagem e semelhança do Chefe que, em Lisboa, de fato e botas pretas, mandava em tudo, até no que desconhecia.

Quando o deixaram à porta, num final de domingo de princípios de Outubro, não quis entrar, agarrou-se ao carro, do lado em que estava a Mãe, e gritou tanto que mais parecia um inocente a ser metido num cárcere. Nessa noite, os grandes – como se chamavam os alunos mais antigos -, arvorados em velhacos, abriram-lhe as pernas e, como uma forquilha, humilharam-no contra o tronco de uma árvore. Chorou, gritou e cuspiu-lhes, mas em vão que a risota deles encobriu tudo.

Era um casarão de três pisos por onde se espalhavam as salas de aula, os salões de estudo, o refeitório, a Capela e os dormitórios. À volta, as vinhas, já amarelecidas, davam alguma brandura àquela secura arquitectónica. O recreio, com duas balizas nas extremidades, enchia-se de vozes nos intervalos das aulas e desgastava-se o calçado a dar pontapés numa bola. Ele ia para a balaustrada contemplar os caminhos que levavam à sua terra e o casario da cidade, lá ao fundo, esmagado entre Igrejas antigas. Uma cidade medieval, tristonha, enregelada no Inverno, as pessoas embrulhadas em roupas como cobertores, sonolenta no Verão, o calor a flagelar os telhados em que dormiam os gatos como efebos quadrúpedes. Dir-se-ia um bispado recolhido em claustros secretos, memória hagiográfica perpetuada em gerações acomodadas por lendas de reconquistas visigóticas. As mulheres rezavam nas Igrejas e os homens falavam nos Cafés de vidas sem sentido, enquanto - sombrias visões - as sotainas passavam. Cidade fingidamente austera, espreitando, libidinosamente, os joelhos das raparigas que se sentavam, aos domingos, nos bancos de azulejos com cenas de santos, longe dos becos de casas com janelas de guilhotina sombreadas por uma torre de menagem que escutara, em tempos idos, os gemidos de fadas e mouras encantadas, perdidas de amor, nas noites de luar, por cavaleiros que as possuíam nas alcáçovas do desejo.

O tempo arrastava-se na rotina das almas domesticadas. Vivia num silêncio injusto e desnecessário. Um silêncio de vestes negras deslocando-se nas penumbras dos dias ou na escuridão das noites, por entre cicios, missangas contadas por lábios gélidos, olhos sempre despertos para as curvas da mínima infracção dos meninos que não baixavam os olhos. Cá dentro, onde nasce o desconforto, corriam as lágrimas que ninguém via, uma dor a entupir a garganta, a esmagar, absurdamente, a individualidade. Distantes, como choros de saudades, os sinos davam as horas e os clarins do Quartel tocavam a recolher.

As luzes, vaga-lumes fosforescentes, desenhavam as ruas de toponímia mediévica. Num recolhimento cavo, o vento, como sopro em gargalo vazio, assustava a noite; a folhagem dava muitas voltas até o sono tomar conta dos sonhos e da respiração que os alimentava com um intenso cheiro a barrela grudado nos lençóis.

Aos domingos, os meninos não acordavam às sete mas às oito. Alegravam-se por os vincos das calças ficarem nítidos depois de uma noite debaixo do travesseiro, lavavam a cara, untavam o cabelo com brylcreem, vestiam camisa, engravatavam-se, e iam para o refeitório. Após um intervalo curto, o salão durava até à hora da Missa, solenizada com o canto gregoriano, de estômagos ansiosos pelo bife com batatas fritas. Depois, em fila, como presidiários, desciam a rampa que levava à cidade. Distribuíam-se pela avenida das Tílias com o Salão de Chá a chamar os de hábitos citadinos ou pelos cafés-quasetascas onde os rurícolas mastigavam sandes de presunto acompanhadas por canadadrys e gasosas de pirolitos. Com o relato do futebol em fundo, os viciados do bilhar exibiam os seus dotes; alguns, nas mesas ao lado, desafiavam-se para as damas e, outros, de escondido do Padre-Prefeito, iam à entrada do Cinema ver as meninas do costume para à noite, pensando nelas, se masturbarem.

Mas o passeio de que mais gostava era o de subir a escadaria do Santuário e, mais ou menos a meio, já na protecção das torres do velho Templo, ficar por ali, num terreiro amplo, a beber uma larangina C no quiosque verde, dar umas remadas nos barcos do lago ou sentar-se num banco à espera da sua menina do Colégio Feminino.

Naquele domingo de Março, as férias da Páscoa à porta, viu-a no costumado vestido-farda-azul com uma gola branca e os cabelos compridos a sensualizarem a figura. Quando os olhares se cruzaram, o coração passou-lhe para a boca e, disfarçando o nervoso, esboçou um sorriso que ela retribuiu numa reciprocidade clandestina. Como era bom aquele diálogo sem palavras, as faces ruborizadas e o sangue incendiado! Não sabia o seu nome, chegava-lhe a imagem. Era isso que importava, o satisfazia e lhe espevitava a dimensão humana. Queria gritar-lhe que a amava, que sonhava passear com ela de mãos dadas pelas ruas da cidade como os namorados adultos, beijá-la sob uma varanda ou correr atrás dela até aos confins. Mas ficava preso, tolhido na sua timidez, apavorado pela opacidade do Prefeito. Era um inibido, um cobarde que não correspondia àquele sorriso, àquela dádiva sem nada em troca.

Ainda o dia seria dia, quando uma freira sorumbática, de olhos céreos, bateu as palmas para o reagrupar do rebanho. Foram bofetadas que o acordaram daquela ponderação, um chicote a vergastá-lo, um insulto à sua paixão. O sorriso da menina desapareceu, tal se o sol morresse diante de uma traição, e o seus olhos entristeceram por um brinquedo roubado. O último olhar deixou-o com um grito entalado num remorso sofrido. Perdera mais uma oportunidade de lhe falar, dizer qualquer coisa que lhe retribuísse aquele sorriso, um gesto heróico que o elevasse diante dela, que matasse o medo das figuras sinistras que os vigiavam, esmagasse de vez o acanhamento que o asfixiava numa luta suada entre o tiritar dos lábios e o cavalgar do coração. Não demorou que outras palmas, mais ásperas e rápidas, calassem a alegria dos meninos.

Estava tudo combinado, tudo igual, as horas marcadas, a vida também. Começaram a descer, em filas desconsoladas, com os vestidos das meninas a aparecerem e a desaparecerem por entre o arvoredo.

Naquela noite, no salão de estudo, tirou da carteira os Lusíadas e colocou-os em cima da tampa. Dissimulou, à frente deles, o caderno diário para rabiscar versos em que amor rimava com dor e paixão com coração. O esguio e escuro espectro em cima do alçado de madeira, no meio da vasta sala, espiava, para um lado e para o outro, como os gatos fazem quando vêem uma ave indefesa. Na parede, em frente, um enorme Cristo pendia mudo no seu suplício. O menino, pela janela aberta, olhava a noite a anunciar os cheiros da terra, das flores e do Verão que Junho daria; a ramagem a murmurar lembranças frescas. Ao longe, num declive montanhoso, ecoou o toque de clarim numa persecução aviltante a dilacerar a quietude. Mais abaixo, no meio de palacetes brasonados de fidalguias insolventes, o Colégio da menina tinha as luzes acesas e, nas vidraças, manchas difusas moviam-se como visões. Absorto, indefeso na sua inocência, saltou da carteira com o cachaço. Olhou o rosto congestionado da vertical negritude, enquanto umas mãos macilentas, numa fúria escusada, lhe rasgavam os versos. Depois, a boca estremecida, debaixo de uns olhos congestionados, vomitou-lhe: «O menino vai para o fundo do salão e fica lá, de joelhos, até acabar o estudo!» Não entremostrou um gesto de defesa, um esgar de revolta, uma palavra, uma simples interjeição. Lívido, percebendo, em seu redor, olhares amedrontados ou escarnecidos, absurdamente calmo, levantou-se, com o livro nas mãos, e foi, sob um silêncio de gruta, para a parede fundeira. Ajoelhou, sentiu umas alfinetadas de vidro esfarolado, fez que interpretava as estrofes, ergueu os olhos para a Cruz e viu que Cristo, de cabeça pendente e resignado, lhe sorria... Quando baixou os olhos, as letras embaciaram-se sob uma bátega de lágrimas grossas. Então, virando-se para trás, apanhou o tétrico semblante de costas, cabeça curvada para o breviário, e riu-se para os colegas que não fizeram caso, encolhidos de terror. Só Cristo lhe sorria... Mal soou a campainha, levantou-se sem pressas, limpou os joelhos das calças e as olheiras de sal, fitou aquele rosto coroado de espinhos, mas, quem lá estava, era já a menina com o seu sorriso imaculado... Reencontrou esse sorriso, alguns anos depois, numa cidade de colinas separadas por um rio alcunhado de bazófias; uma Coimbra trovadoresca, de cantigas de amigo e de alba, memórias de cancioneiros, ecos de segréis, amores para uma vida ou para um instante.

Já não eram meninos, mas continuavam naturais. Percorriam o dédalo das ruelas da Alta, feitos passarinhos esquivos em busca de poisos aconchegados, capas traçadas como se albergassem segredos. Das janelas da rua da Matemática, a voz de Adriano Correia de Oliveira cantava a Trova do Vento que Passa e do Palácio da Loucura ecoava a de José Afonso com as Cantigas de Maio; era a fraternidade dos sublevados contra os chacais e os pederastas das decadências ideológicas; as pedras das ruas libertavam saudades de Menano e de Bettencourt; na Porta Férrea formavam-se trupes. Eles ouviam e viam, ansiavam derrubar a intolerância e esmagar o arbítrio, para, no seu lugar, (re)construir o amor, um amor que não se misturava na aguadilha da languidez, antes no sangue perturbado que acalenta as ideias justas. Já se morria nas bolanhas da Guiné, nos mangais Angolanos ou no planalto dos Macondes Moçambicanos. Essa realidade os magoava e essa perspectiva os consumia.

Era uma cidade de mito e de romance, de orgulho e de raiva, de tristeza mesmo triste e alegria mesmo alegre, proibido fingir, expressamente proibido concordar com a ignomínia. Davam cigarros ao Teixeira, liam o Kalinas na Brasileira, iam às sessões do Avenida, passavam pela Torre D’Anto à procura do fantasma desesperado de António Nobre e beijavam-se nos bancos do Penedo da Saudade com os poemas escritos entre as heras. Nas manhãs de aulas, nos Gerais, depois da chamada do Bedel, trocavam de lugares para ficarem juntos e juntos anotavam as dicas dos Mestres que as sebentas eram caras. Nas tardes de sol, na praça da República, discutiam a Vértice, no Mandarim ou na Clepsidra trocavam esboços de comunicados, nas Escadarias cruzavam pressas ou códigos e, na Associação, comiam por cinco crôas.

Naquela noite cearam no Aeminium, beberam um café no Internacional, arrastaram os passos pelo Parque Manuel Braga, a automotora da Lousã a sugerir despedidas de cais e o Mondego a levar para a Figueira desejos de praia. Iniciaram, pelo Arco de Almedina, a subida para os seus refúgios. No Largo da Sé Velha, sentados nos degraus onde começam todas as Queimas, conversaram sobre o futuro. Ele guardava uma guia de marcha e ela a determinação antiga, mas, o menino, já feito carne para canhão, agora, recusava-a. Combinaram que ela acabaria o curso e ele retomá-lo-ia no regresso. Então, sem mácula, só por estímulo, ela chamou-lhe cobarde. Por que não fugiam para as terras do salto? Como fizeram alguns: o Jaime e a Joana, por exemplo. Seguira-lhe as ideias e juntos haviam percorrido o caminho do desafio, mesmo ignorando o que alcançariam.

Achava-o mudado, orgulhoso do que antes criticava raivosamente. Mandara-lhe, de Mafra, fotografias com cara de mau e a arma apontada a fingir-se de combatente; até a convidara para ir ao juramento de bandeira, sabendo que ela detestava braços e mãos estendidas. Tinham-lhe lavado o cérebro, aquele cérebro que ela conhecera rebelde na doçura de uma alma terna. Podia lá ser! « Eu vou contigo para o fim do mundo, mas não vás para a guerra! Fugimos os dois! », gritou-lhe lavada em lágrimas. Ele, calado, deu-lhe um beijo como quem se desculpa. «Promete que esperas por mim...», pediu-lhe, envolto em submissão. Acariciou-lhe o cabelo cortado, ele que o usara sempre comprido, e murmurou-lhe que sim.

Esperou.

Esperou-o numa tarde de Novembro, fria e enevoada, junto da capela da casa onde ele nascera. Acompanhou a aldeia no funeral do seu menino. Enquanto uma fila de militares disparava para o céu, a urna descia para a terra. Foi, então, que ela deitou a pasta negra, com fitas vermelhas como rasgos de sangue, para cima do caixão, deu um grito que gelou, ainda mais, o cemitério, e desapareceu. Dizem, os que a viram mais de perto, que os seus olhos faiscavam de loucura.
- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.