sábado, 13 de novembro de 2010

Recortes - RÉGUA, antes... RÉGUA, depois...

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Os Bombeiros e a Legião Portuguesa

Durante o Estado Novo, a Defesa Civil do Território (DCT), foi a estrutura responsável pela protecção civil nacional até ao 25 de Abril de 1974, que tinha como missão principal de “assegurar o regular funcionamento, em tempo de guerra ou de grave emergência, das actividades do país”.

No decorrer da Segunda Guerra Mundial, em Abril de 1942, perante a possibilidade de uma invasão alemã, o governo de Salazar decidiu criar uma organização de Defesa Civil do Território (DCT), na dependência do Ministério da Defesa Nacional. A sua coordenação era atribuída à Legião Portuguesa. A partir do fim da Segunda Guerra Mundial e com a entrada de Portugal na OTAN, passou a ministrar cursos básicos de socorrismo e a preparar a população para a defesa civil, no caso de eventuais ataques nucleares.

A DCT era uma organização que possuía alguns veículos, equipamentos e pessoal treinado, sobretudo militares, mas que nunca teve como objectivo se substituir aos corpos de bombeiros, a única estrutura de protecção civil, organizada para intervir em qualquer situação de catástrofe natural ou tecnológica. Contudo, para realizar essa campanha de divulgação da defesa civil das populações pelo país, a Legião Portuguesa precisou da mobilização dos corpos de bombeiros.

A partir dos anos 50, os bombeiros da Régua mantiveram contactos permanentes com a DCT-LP, nomeadamente em acções de formação, apesar de serem pouco conhecidos e revelados os seus contornos, o que tem deixado na penumbra muitos factos e situações interessantes da vida e da história da Associação. Se bem que os documentos existam em arquivo, até à presente data, não foram divulgados e referenciados os pormenores mais significativos, nem as pessoas que estavam alistadas, simultaneamente, na Legião Portuguesa e no corpo de bombeiros, para se evitarem interpretações erróneas de comportamentos cívicos de cidadãos exemplares e de não se fazer apressadas conotações à política ditatorial do Estado Novo.

O relacionamento da Legião Portuguesa com os corpos de bombeiros não foi muito pacífica por razões de vária ordem, apesar de não existirem estudos divulgados que possam sustentar esta afirmação. Apenas se sabe que um sector dos bombeiros não gostou que as questões da protecção civil e socorro - objectivo da defesa civil - fossem dirigidas por uma organização de carácter paramilitar, com fins de propaganda politica, que controlava a vida privada dos cidadãos, como era a Legião Portuguesa. Com os seus ideais de “defesa do património da nação contra os inimigos da Pátria e da Ordem”, a Legião Portuguesa manteve uma tensão no relacionamento com os corpos de bombeiros. Alguns conflitos devem-se às condutas dos chefes da milícia, onde marcavam presença os caciques locais, mais preocupado em manter o poder à força do que em zelar pelos interesses gerais da comunidade. No destacamento da Régua, eram frequentes os desmandos de um legionário, conhecido pela alcunha de “Chefe Quina” – pessoal menor da estrutura local - que gostava de afirmar autoridade, sem ter respeito pelas pessoas.
Quem abordou essa questão foi Frederico Pereira Jardim, presidente da Assembleia-geral dos Bombeiros Lisbonenses. Este dirigente publicou no jornal “Vida por Vida”, de Agosto de 1956, um artigo de opinião para defender a isenção e o carácter apolítico da DCT, nestes termos: “O facto de estarem esses serviços superiormente entregues à Legião Portuguesa tem, de algum modo, diminuído o interesse de várias Corporações ou dos seus componentes nos Cursos Básicos da DCT ou pelo espírito de colaboração na Organização. Uns por maldade, outros por ignorância não deixam de fazer uma campanha contrária, pretendendo insinuar que o ingresso nos serviços da DCT implica automaticamente nas actividades políticas ou de milícia da Legião Portuguesa. Isto demonstra, portanto, que na DCT não há o menor intuito de seguir qualquer politica”. Convencido que havia vantagens na adesão, incentivava os bombeiros a colaborarem com servilismo: “Por outro lado, devem todas as Corporações de Bombeiros Voluntários atentar nas vantagens de colaborarem, dedicada e intensamente, nos trabalhos da DCT para, em justa retribuição fazerem jus aos benefícios, importantíssimos, que podem vir a receber”.
Não desconhecendo os condicionalismos políticos da época, os responsáveis da Liga dos Bombeiros Portugueses, no seu Boletim de 1954, garantiam a colaboração dos bombeiros à DCT e ao Governo da Nação “que podem contar, incondicionalmente, com a bravura e dedicação de 13.000 bombeiros voluntários portugueses”. Nesse Boletim, o tenente A. Norte da Silva, do comando da DCT, escrevia “algumas sugestões”, a aconselhar que “as Corporações de Voluntários criem “Cadetes, jovens de 15 anos que vão andando pelos quartéis e que, poucos anos depois, são competentes e valorosos Bombeiros É preciso que as Corporações de Voluntários, à semelhança do que se fez noutros países, criem o seu Serviço Auxiliar Feminino, constituído por senhoras que prestem valiosos serviços nos telefones, nas radiocomunicações, enfermagem, socorros, auxílio social e serviços de apoio aos seus bombeiros”.

Seguindo a orientação da Confederação, os bombeiros da Régua não só colaboraram com a D.C.T.-L.P. como se mostraram disponíveis para lhes ceder uma dependência do seu quartel, para instalarem a sede dos serviços concelhios da organização. Em troca pediam que a Legião Portuguesa os fornecesse de material logístico e de treino, como as máscaras anti-gaz, fatos de amianto, macas, bolsas com material de enfermagem e uma barraca de hospital. Como não possuíam ainda nenhum tipo de máscaras anti-gaz, pensavam que iam resolver esta carência. Mas, os bombeiros eram avisados de que “quanto à sua utilidade, é de fazer notar que a máscara utilizada pelos nossos serviços, se destina a actuação em tempo de guerra, pelo que se indica, no mapa seguinte, qual o seu comportamento, em face dos gazes e fumos acidentais, mais prováveis em tempo de paz”.

Em 5 de Julho de 1954, o comando dos bombeiros da Régua promovia uma acção com a DCT, ao realizar um “Curso Básico de Defesa Civil”, destinado aos bombeiros e representantes da sociedade civil. O Comandante Lourenço Medeiros cumpria uma recomendação emanada do Conselho Nacional do Serviço de Incêndios. Numa carta circular, o Inspector do Norte, Coronel Serafim Morais Júnior comunicava que “havendo conveniência em difundir, tanto quanto possível, conhecimentos úteis sobre D.C.T, que interessando, de um modo geral, a toda a população, não podem deixar de interessar, em especial aos Corpos de Bombeiros, que, na DCT têm o seu papel definido, dentro das funções que normalmente lhe competem (sem perderem, porém, a subordinação aos regulamentos a que estão sujeitos, e ao C.N.S.I., através das Inspecções de Zona) ”. O curso estava definido com as seguintes disciplinas: a guerra atómica, biológica e química, os projécteis explosivos e a luta contra o fogo. Cada uma dela podia ser estudada num Manual de Defesa Civil, editado pela Legião Portuguesa. As matérias foram leccionadas pelo Comandante Lourenço Medeiros, os graduados Claudino Clemente, Gastão Mirandela, António Guedes Castelo Branco, os directores Alfredo Baptista, o médico Rui Machado e o jovem Carlos Cardoso.

Em 1960, o Comando Distrital de Vila Real da Legião Portuguesa promovia a realização de um “Curso de Primeiros Socorros”, destinada aos bombeiros da Régua. Pela que está documentado na Ordem de Serviço nº 18 de 31 de Julho de 1960, emanada do Quartel daquela instituição, onde constam os nomes dos bombeiros inscritos e a sua classificação, verifica-se que houve uma boa adesão. Os cidadãos que se alistaram como “Agentes” na DCT e alguns que já eram “Legionários” - pessoas conhecidas na sociedade reguense – que também faziam parte do corpo de bombeiros, foram obrigados a frequentar o curso.
Nessa época, o Comandante Cardoso admitia que a formação de defesa civil orientada pela Legião Portuguesa não era novidade. Estava a ser ministrada pelas corporações onde havia médicos, pelo que os bombeiros possuíam uma preparação eficiente no capítulo do socorro. O jovem comandante sabia do que falava, mas não acreditava que tais acções, apesar da sua importância, adiantassem para mudar a qualidade da instrução dos seus bombeiros.

Assim, desta maneira, a Legião Portuguesa ramificou os tentáculos do seu poder pelos corpos de bombeiros. Em alguns deles, colocava as pessoas da sua confiança à frente do comando e dos órgãos sociais, para que cumprissem, sem críticas e sem reivindicações, as orientações do regime político, respeitando os lemas nacionalistas de Salazar, como este: “Todos não somos demais para continuar Portugal”, por muitos mais anos, até ao dia 25 de Abril de 1974, data em surgia um autêntico Serviço Nacional de Protecção Civil.
- Peso da Régua, Novembro de 2010. Colaboração de J A Almeida* para Escritos do Douro 2010. Clique nas imagens acima para ampliar.

  • *José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também crónicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária, fatos do passado da bela cidade de Peso da Régua de onde é natural e de figuras marcantes do Douro.
Jornal "O Arrais", Sexta-Feira, 12 de Novembro de 2010
Arquivo dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua
Os Bombeiros e a Legião Portuguesa - 1ª Parte.
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Os Bombeiros e a Legião Portuguesa - 1ª Parte

Jornal "O Arrais", Sexta-Feira, 19 de Novembro de 2010
Arquivo dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua
Os Bombeiros e a Legião Portuguesa -  2ª Parte.
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Os Bombeiros e a Legião Portuguesa - 2ª Parte

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

UM HOMEM

Aqueles doze dias que me deram, antes do embarque, pareceram a satisfação da última vontade de um condenado. Para dizer a verdade, só o sono me descansou. De dia contava o tempo, olhava o fundo do vale, com o Douro ao fundo, e nunca a estrada me foi tão curta e tão detestada; chegava a pedir o impossível: que ela desaparecesse do mapa. Era uma dor que nunca soube definir: a barriga em espasmos, uma vertigem no olhar, mas o que me custava mais era uma ardência no lado esquerdo do peito; acho, até, que era a angústia transformada em revolta, que, como sabemos, não mata mas dói. Cheguei a pedir que os dias saltassem para me ir embora depressa, acabava-se com aquilo, abandonada, há muito, a ideia de me escapar com o Artur para Paris. Ficava meio mundo a falar que eu me “cortara”, e sei lá se o Salazar não era eterno e nunca mais eu cá voltaria. Minha mãe, sabe Deus como, lá ia aguentando, e havia ali, entre nós, um penoso jogo de disfarçar sentimentos, que chegava a ser desumano.

Mas, quando chegou a hora de me despedir, o mundo desmoronou-se. Julguei mesmo que se encerraria o sofrimento: ficaríamos esticados pelo fatalismo da síncope e o Niassa rumaria a Angola com menos um camuflado. Penso ter escutado o comboio – é melhor usarmos a ironia porque, às vezes, nestas coisas de contos, não se sabe como encurtar a volta a situações intoleráveis –, e lá me despeguei para o carro de praça, que me esperava. Não ouvi mais nada, ou não quiz ouvir. Quando ia na recta, antes da curva que tapava a vista da casa onde nasci, olhei para trás, dei um grito e chamei nomes do piorio aos donos da Nação; o chaufer riu-se, disse-me que , com ele, quando foi para a Guiné, tiveram que o ir buscar ao café, e rematou: « Sr. Gilberto, deixe lá; o senhor vai como oficial, eu fui como soldado. » De repente, não entendi onde estava a vantagem, mas conversar era o que menos me apetecia.

Eu estava habituado a viajar, de comboio, da Régua para o Porto, e vice-versa, mas daquela vez o pouca-terra parecia nunca mais chegar. Pedi a todos os santos para que o Gualter estivesse à minha espera no Embaixador, e abri a mala para tirar um livro dos que levava, juntamente com alguma roupa. Calhou-me o Fio da Navalha. A primeira coisa que li foi a citação introdutória: «DIFÍCIL É ANDAR SOBRE O AGUÇADO FIO DE UMA NAVALHA; É ÁRDUO, DIZEM OS SÁBIOS, É O CAMINHO DA SALVAÇÃO.» Havia de saber quem era o Katha – Upanishad, mas só quando, e se, acabasse a comissão. Foi mais o tempo em que espraiei os olhos pela paisagem do que pelo romance de Maugham, o que me agravou o estado de alma. Imaginei minha mãe, vestida de luto, deitada sobre a cama, com a Laurinda a confortá-la; a minha aldeia, de caminhos e casas sem água e sem luz, com a fome à espreita nos cardenhos dos cavadores, as crianças sem culpa da injustiça dos adultos. Deixaria o meu país sem uma pinga de progresso, triste e desolado, cheio de bufos.- até , se calhar, o velho que se sentava ao meu lado -, uma terra sem uma disparidade na côr, tudo cinzento, até as palavras eram sempre as mesmas, o único contrário era a morte. Lembro-me que enxuguei os olhos, na paragem em Penafiel, quando vi, à janela, uma velhinha, de lenço preto na cabeça, subir com dificuldade para uma carruagem das traseiras. Ali ia eu, adolescente feito à pressa atirador de infantaria, para uma guerra que a teimosia de um ditador velho e de falsete, sem filhos e sem carinhos, transformara em destino patriótico. Os campos, ao longe, cumpriam, na nostalgia do abandono, o calendário primaveril: os rebentos pascais, com as maias em saliência.

Mal o comboio parou em S. Bento, corri como um desalmado, de mala na mão, fazendo uso dos quinze meses de tropa, receoso que o meu amigo já tivesse ido com o pai para Lisboa. Pedi ao engraxador que guardasse a mala, com a promessa de que depois me limparia os sapatos, subi as escadas para o primeiro andar, onde alguma  gente já comia, e só nos bilhares é que o encontrei, encostado a uma janela a ver uma partida de snooker. Fazíamos a festa do costume, quando ele me atirou: «Consegui uma baixa no Hospital Militar. Vou para lá amanhã.» Levei um murro na boca do estômago; aquilo soube-me a traição. Toda a gente se tentava safar, inventando pés chatos ou úlceras repentinas, até água gelada deitavam nos ouvidos para criar ou agravar uma otite, mas isso era mais naqueles que pagavam bons cabritos; ignorava que ele fizesse parte desse esquema, e, para disfarçar, pedi-lhe que me arranjasse uma baixa também. Fomos comer umas tripas à Flor do Congregados, contou-me como o pai se mexera e das esperanças que tinha de ir para os Serviços Auxiliares. Ficou de me escrever ou telefonar para contar como lhe correra a patranha.

No Foguete, a pensar no golpe do Gualter, dei por mim a inebriar-me com o meu heroísmo e, para ser franco,perpassou por mim uma excitação de bandeira ao vento. Por meados de Aveiro, adormeci, ajudado pelo feijão e pelo fino. Em Santa Apolónia, consultadas as horas, hesitei entre ir para o Cais do Sodré ou para a Amadora. A mala das primeiras necessidades determinou a minha recolha decente, matando o tempo na conversa de sala numa messe quase vazia , com a televisão a repetir o Aqui há fantasmas e a emissora nacional a transmitir um Serão para trabalhadores.

Passadas que foram três semanas, já só de ordem unida para reforçar o espírito de corpo, o batalhão estava na Rocha do Conde de Óbidos, disperso com os familiares, numa algazarra ensurdecedora, enquanto não recebia ordem para formar. Eu fazia parte dos que não tinha compromissos desses, assim o pedira. Sem dormir e cheio de café queria que o embarque acelerasse para aproveitar o balanço do Niassa; resolveria dois problemas: não assistiria à despedida dos lenços, e dos gritos, e dos gemidos, e dos desmaios e o sono ficaria em dia ou em noite. Estava a conversar, já não me recordo com quem, quando me baterem nas costas. Virei-me, repentinamente, não fosse o capitão da minha companhia, quando caí nos braços do Gualter. Reparei que, ou estava com uma bebedeira ou louco, as lágrimas cobriam-lhe as faces, «Gilberto, parto daqui a oito dias para a Guiné. Aqueles filhos ...», balbuciou, sempre agarrado a mim. Percebi, então, que a armadura por mim inventada para aquela ocasião estava a derreter-se, provocando-me queimaduras de muitos graus. Toques de clarim e vozes de comando repercutiram no bruá reinante que, a pouco, se esbatia. Sem saber como proceder, apertei-o mais, apressadamente, os diques rebentaram-me, e senti-me verdadeiramente UM HOMEM.
- M. Nogueira Borges*, Porto 23/7/10, para ForEver PEMBA/Escritos do Douro 2010.
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

sábado, 6 de novembro de 2010

O Bombeiro e a Religião

Padre Luís Gouveia Marçal Monteiro

Ao ser-me dada a honra de colaborar neste opúsculo comemorativo do I Centenário dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua sugeriram-me o tema: o Bombeiro e a Religião. Nunca vi tão fácil o meu trabalho.

È próprio do homem como ser inteligente e livre querer saber o porquê da sua vida, dos seres que o rodeiam, das coisas de que se serve. Mais cedo ou mais tarde começa portanto a ser “filósofo” na pesquisa dum sentido final e dum significado concreto para a sua existência.

Não obstante todos os seus esforços, não encontrará, em si resposta suficiente para as suas interrogações. Tem de sair de si, de deixar de ser “ilha”, e procurar nos outros, no mundo e nas pessoas, a realização dos seus anseios: o homem começa a ser “social”.

Contudo ainda assim subsistem enigmas insolúveis, aspirações insatisfeitas, horizontes inacessíveis, sedes vivas de infinito porque ele, o mundo e os outros são limitados, têm fim. Então o homem, ou se recusa a sair do seu mundo por preguiça, por medo, por egoísmo, e deixa de ser “inteligente”, ou tem de abrir-se ao transcendente, ao Outro, a Deus: e o homem começa a ser “teólogo”.

A “filosofia" dos seres conduz finalmente o homem à “teologia” da vida.

Naturalmente “filósofo”, naturalmente “social”, o homem é também naturalmente “religioso”.

O Bombeiro, porque é homem, é religioso tam¬bém. Mais. Nada tão, favorável e propício à prática da religião, refiro-me agora à religião cristã, como a actividade humanitária do Bombeiro.

São três as palavras que identificam o bom¬beiro com o cristão, que exprimem a afinidade de objectos, a comunhão de ideais: VIDA POR VIDA.

“Vida por Vida" - é a divisa do bombeiro, é o seu dever a cumprir.

"Vida por Vida" - é o sinal do cristão, o seu divino mandamento.

“O meu mandamento é este: que vos ameis uns aos outros como vos amei”, diz Jesus Cristo. “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos” acrescenta.
O cristão não tem outro dever senão AMAR. O cristão e o não-cristão. Não há outra forma de viver em plenitude que não seja AMANDO. “Viver é Amar”. O amor é a única forma válida, aceitável, HUMANA, de estabelecer laços interpessoais. É a única “lei natural" para garantir e alimentar a vida social do homem. O amor supõe a coexistência ou então realiza-a porque só o amor consegue a permuta “dar e receber” que constitui o segredo e o caminho da felicidade verdadeira, suprema aspiração humana.

O cristão, dado o seu compromisso de fé, não pode contentar-se com a simples dimensão humana do amor e muito menos com a dimensão erótica, carnal desse sentimento que, assim aviltado, em vez de nobilitar o homem o inferioriza.

O cristão tem do amor o conceito original que Cristo lhe trouxe, que pôs em prática e mandou que se praticasse.

“... Como Eu vos amei”, diz Jesus Cristo. Jesus propõe-se como modelo de amor.

O cristão terá de “amar como Jesus amou”.

Jesus amou sem fronteiras de qualquer espécie, sem excepção de qualquer pessoa. Amou os bons e os maus, os amigos e os inimigos. A partir do exemplo de Jesus Cristo o Papa Paulo VI 'traduz assim a universalidade do amor cristão:

“... Amaremos o nosso próximo
e amaremos os que estão longe de nós.

Amaremos a nossa pátria
e amaremos a pátria dos outros.

Amaremos os que merecem ser amados
e os que não merecem.

Amaremos os nossos adversários
e nenhum homem pode ser nosso inimigo”.

Jesus amou sem medida, até ao fim: “não há maior prova de amor que dar a vida pelos seus amigos”. Jesus o afirmou e confirmou pelo seu gesto na Cruz.

“Dei-vos o exemplo para que, como Eu fiz façais vós também”, disse. Como se dissesse: assim como Eu dei a minha vida pela vida de cada homem assim vós deveis dar a vossa vida pela vida de qualquer irmão!

Jesus amou desinteressadamente, sem nada esperar em troca. E se algo recebeu em troca não foi amor, foi ingratidão.

Amor universal, total, gratuito - eis o amor de Cristo que deverá ser o amor do cristão.

Não é assim o amor do Bombeiro?

Ao toque da sirene o bombeiro não procura saber quem o chama: se amigo ou inimigo, pobre ou rico conhecido ou desconhecido. Vai porque é universal no seu gesto.

O bombeiro não condiciona o seu serviço, não põe limite algum na sua acção. Esvazia-se dos seus problemas para viver os problemas dos outros. Sai de casa e não sabe se regressa. Não sabe se será o último o beijo ou o olhar com que se despede dos seus. Vai pôr a vida ao serviço de outras vidas: é total na sua entrega.

O bombeiro nada exige e nada espera pelo seu trabalho: é voluntário na sua resposta.

Quando o bombeiro descobre no silvo da sirene a voz de Deus que o chama e no irmão que socorre a pessoa de Cristo a sofrer, o seu gesto que é senão AMOR?
Notas:
1- Este magnifico artigo do Senhor Padre Luís Gouveia Marçal Gouveia, actual Arcipreste da Régua, encontra-se publicado no Boletim do 100º Aniversário da AHBV do Peso da Régua, comemorado em 28 de Novembro de 1980.

2- As duas fotos mais antigas são da autoria do mestre Baía Reis, sendo que uma delas mostra a bênção do S. Marçal, na Igreja Matriz, realizada pelo antigo Pároco Miranda Guedes e a outra a colocação da sua imagem por um bombeiro, no seu nicho construído numa parede do Quartel Delfim Ferreira.

3- A foto mais moderna é da autoria de Sónia Coutinho e fixa um momento da Procissão de Nossa Senhora do Socorro de 2010, onde o andar com a imagem de S. Marçal é transportado por eles do actual quadro activo dos bombeiros da Régua.
- Colaboração de J. A. Almeida para "Escritos do Douro" em Novembro de 2010. Clique nas imagens acima para ampliar.

Jornal "O Arrais", Sexta-Feira, 07 de Janeiro de 2011
O Bombeiro e a Religião
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O Bombeiro e a Religião