Durante o Estado Novo, a Defesa Civil do Território (DCT), foi a estrutura responsável pela protecção civil nacional até ao 25 de Abril de 1974, que tinha como missão principal de “assegurar o regular funcionamento, em tempo de guerra ou de grave emergência, das actividades do país”.
No decorrer da Segunda Guerra Mundial, em Abril de 1942, perante a possibilidade de uma invasão alemã, o governo de Salazar decidiu criar uma organização de Defesa Civil do Território (DCT), na dependência do Ministério da Defesa Nacional. A sua coordenação era atribuída à Legião Portuguesa. A partir do fim da Segunda Guerra Mundial e com a entrada de Portugal na OTAN, passou a ministrar cursos básicos de socorrismo e a preparar a população para a defesa civil, no caso de eventuais ataques nucleares.
A DCT era uma organização que possuía alguns veículos, equipamentos e pessoal treinado, sobretudo militares, mas que nunca teve como objectivo se substituir aos corpos de bombeiros, a única estrutura de protecção civil, organizada para intervir em qualquer situação de catástrofe natural ou tecnológica. Contudo, para realizar essa campanha de divulgação da defesa civil das populações pelo país, a Legião Portuguesa precisou da mobilização dos corpos de bombeiros.
A partir dos anos 50, os bombeiros da Régua mantiveram contactos permanentes com a DCT-LP, nomeadamente em acções de formação, apesar de serem pouco conhecidos e revelados os seus contornos, o que tem deixado na penumbra muitos factos e situações interessantes da vida e da história da Associação. Se bem que os documentos existam em arquivo, até à presente data, não foram divulgados e referenciados os pormenores mais significativos, nem as pessoas que estavam alistadas, simultaneamente, na Legião Portuguesa e no corpo de bombeiros, para se evitarem interpretações erróneas de comportamentos cívicos de cidadãos exemplares e de não se fazer apressadas conotações à política ditatorial do Estado Novo.
O relacionamento da Legião Portuguesa com os corpos de bombeiros não foi muito pacífica por razões de vária ordem, apesar de não existirem estudos divulgados que possam sustentar esta afirmação. Apenas se sabe que um sector dos bombeiros não gostou que as questões da protecção civil e socorro - objectivo da defesa civil - fossem dirigidas por uma organização de carácter paramilitar, com fins de propaganda politica, que controlava a vida privada dos cidadãos, como era a Legião Portuguesa. Com os seus ideais de “defesa do património da nação contra os inimigos da Pátria e da Ordem”, a Legião Portuguesa manteve uma tensão no relacionamento com os corpos de bombeiros. Alguns conflitos devem-se às condutas dos chefes da milícia, onde marcavam presença os caciques locais, mais preocupado em manter o poder à força do que em zelar pelos interesses gerais da comunidade. No destacamento da Régua, eram frequentes os desmandos de um legionário, conhecido pela alcunha de “Chefe Quina” – pessoal menor da estrutura local - que gostava de afirmar autoridade, sem ter respeito pelas pessoas.
Quem abordou essa questão foi Frederico Pereira Jardim, presidente da Assembleia-geral dos Bombeiros Lisbonenses. Este dirigente publicou no jornal “Vida por Vida”, de Agosto de 1956, um artigo de opinião para defender a isenção e o carácter apolítico da DCT, nestes termos: “O facto de estarem esses serviços superiormente entregues à Legião Portuguesa tem, de algum modo, diminuído o interesse de várias Corporações ou dos seus componentes nos Cursos Básicos da DCT ou pelo espírito de colaboração na Organização. Uns por maldade, outros por ignorância não deixam de fazer uma campanha contrária, pretendendo insinuar que o ingresso nos serviços da DCT implica automaticamente nas actividades políticas ou de milícia da Legião Portuguesa. Isto demonstra, portanto, que na DCT não há o menor intuito de seguir qualquer politica”. Convencido que havia vantagens na adesão, incentivava os bombeiros a colaborarem com servilismo: “Por outro lado, devem todas as Corporações de Bombeiros Voluntários atentar nas vantagens de colaborarem, dedicada e intensamente, nos trabalhos da DCT para, em justa retribuição fazerem jus aos benefícios, importantíssimos, que podem vir a receber”.
Não desconhecendo os condicionalismos políticos da época, os responsáveis da Liga dos Bombeiros Portugueses, no seu Boletim de 1954, garantiam a colaboração dos bombeiros à DCT e ao Governo da Nação “que podem contar, incondicionalmente, com a bravura e dedicação de 13.000 bombeiros voluntários portugueses”. Nesse Boletim, o tenente A. Norte da Silva, do comando da DCT, escrevia “algumas sugestões”, a aconselhar que “as Corporações de Voluntários criem “Cadetes, jovens de 15 anos que vão andando pelos quartéis e que, poucos anos depois, são competentes e valorosos Bombeiros É preciso que as Corporações de Voluntários, à semelhança do que se fez noutros países, criem o seu Serviço Auxiliar Feminino, constituído por senhoras que prestem valiosos serviços nos telefones, nas radiocomunicações, enfermagem, socorros, auxílio social e serviços de apoio aos seus bombeiros”.
Seguindo a orientação da Confederação, os bombeiros da Régua não só colaboraram com a D.C.T.-L.P. como se mostraram disponíveis para lhes ceder uma dependência do seu quartel, para instalarem a sede dos serviços concelhios da organização. Em troca pediam que a Legião Portuguesa os fornecesse de material logístico e de treino, como as máscaras anti-gaz, fatos de amianto, macas, bolsas com material de enfermagem e uma barraca de hospital. Como não possuíam ainda nenhum tipo de máscaras anti-gaz, pensavam que iam resolver esta carência. Mas, os bombeiros eram avisados de que “quanto à sua utilidade, é de fazer notar que a máscara utilizada pelos nossos serviços, se destina a actuação em tempo de guerra, pelo que se indica, no mapa seguinte, qual o seu comportamento, em face dos gazes e fumos acidentais, mais prováveis em tempo de paz”.
Em 5 de Julho de 1954, o comando dos bombeiros da Régua promovia uma acção com a DCT, ao realizar um “Curso Básico de Defesa Civil”, destinado aos bombeiros e representantes da sociedade civil. O Comandante Lourenço Medeiros cumpria uma recomendação emanada do Conselho Nacional do Serviço de Incêndios. Numa carta circular, o Inspector do Norte, Coronel Serafim Morais Júnior comunicava que “havendo conveniência em difundir, tanto quanto possível, conhecimentos úteis sobre D.C.T, que interessando, de um modo geral, a toda a população, não podem deixar de interessar, em especial aos Corpos de Bombeiros, que, na DCT têm o seu papel definido, dentro das funções que normalmente lhe competem (sem perderem, porém, a subordinação aos regulamentos a que estão sujeitos, e ao C.N.S.I., através das Inspecções de Zona) ”. O curso estava definido com as seguintes disciplinas: a guerra atómica, biológica e química, os projécteis explosivos e a luta contra o fogo. Cada uma dela podia ser estudada num Manual de Defesa Civil, editado pela Legião Portuguesa. As matérias foram leccionadas pelo Comandante Lourenço Medeiros, os graduados Claudino Clemente, Gastão Mirandela, António Guedes Castelo Branco, os directores Alfredo Baptista, o médico Rui Machado e o jovem Carlos Cardoso.
Em 1960, o Comando Distrital de Vila Real da Legião Portuguesa promovia a realização de um “Curso de Primeiros Socorros”, destinada aos bombeiros da Régua. Pela que está documentado na Ordem de Serviço nº 18 de 31 de Julho de 1960, emanada do Quartel daquela instituição, onde constam os nomes dos bombeiros inscritos e a sua classificação, verifica-se que houve uma boa adesão. Os cidadãos que se alistaram como “Agentes” na DCT e alguns que já eram “Legionários” - pessoas conhecidas na sociedade reguense – que também faziam parte do corpo de bombeiros, foram obrigados a frequentar o curso.
Nessa época, o Comandante Cardoso admitia que a formação de defesa civil orientada pela Legião Portuguesa não era novidade. Estava a ser ministrada pelas corporações onde havia médicos, pelo que os bombeiros possuíam uma preparação eficiente no capítulo do socorro. O jovem comandante sabia do que falava, mas não acreditava que tais acções, apesar da sua importância, adiantassem para mudar a qualidade da instrução dos seus bombeiros.
Assim, desta maneira, a Legião Portuguesa ramificou os tentáculos do seu poder pelos corpos de bombeiros. Em alguns deles, colocava as pessoas da sua confiança à frente do comando e dos órgãos sociais, para que cumprissem, sem críticas e sem reivindicações, as orientações do regime político, respeitando os lemas nacionalistas de Salazar, como este: “Todos não somos demais para continuar Portugal”, por muitos mais anos, até ao dia 25 de Abril de 1974, data em surgia um autêntico Serviço Nacional de Protecção Civil.
- Peso da Régua, Novembro de 2010. Colaboração de J A Almeida* para Escritos do Douro 2010. Clique nas imagens acima para ampliar.
- *José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também crónicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária, fatos do passado da bela cidade de Peso da Régua de onde é natural e de figuras marcantes do Douro.
Jornal "O Arrais", Sexta-Feira, 12 de Novembro de 2010
Arquivo dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua
Os Bombeiros e a Legião Portuguesa - 1ª Parte.
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