quarta-feira, 3 de novembro de 2010

UM CONTO ALDEÃO

Alcandorada sobre o rio Douro, dele recebendo as neblinas matinais ou vespertinas, de casas em maioria ao correr do chão, uma ou outra senhorial, quelhos estreitos e lages lambidas pelo decorrer dos séculos, fica a povoação de São Gonçalo, assim chamada em devoção ao seu padroeiro.

Quem a conheceu no remoto, e a vê agora, não a imagina na década de cinquenta, anos poucos depois do fim da segunda grande guerra. Era uma aldeia de invernos enlameados e verões poieirentos. As crianças andavam descalças e vestiam calções rasgados no sítio do cu ou da “pilinha“, dividiam as sardinhas por várias bocas e a fome enegrecia-lhes os olhos. Um tempo de miséria; ainda havia quem morresse de tuberculose ou sífilis, e toda a gente se calava porque o medo lhes tolhia a vontade. Estava na sede concelhia quem recebesse os informes que ditavam o futuro de qualquer nascido, e os poucos chamados de ricos, por possuirem terras, não tinham outro remédio senão seguir-lhes os ditames se queriam vindimar, em cada Outubro, as uvas do remedeio. Um “senhor invísivel“ mandava em tudo, sabia de tudo, era como um Deus de carne e osso, que vivia em Lisboa, num palácio guardado; na escola estava com Cristo ao lado, e tinha em cada terra quem o representava. O regedor era o poder civil, o pároco o espiritual.

S. Gonçalo não fugia a essa tradição, cultivada por uma paciência popular aliada a influências pequeninas, disputadas nos concluios de taberna ou de mesas de cozinha, enquanto se fazia a folha do pessoal. Mas tinha, também, quem se não conformasse com a situação imposta.

Chamava-se Joaquim Faria da Silva, Quinzinho na oralidade do lugar. Era filho da união de Joaquim da Silva e Berta Faria, acolhida sob o mesmo tecto, mas não legalizada no altar da freguesia. Naquele tempo, essas mancebias – como lhes chamavam as devotas, quase sempre disfarçando com os padres-nossos as invejas de tal relação – eram muito contestadas pela gente das saias negras e opas brancas. A pilhéria feminina ou a gravidade masculina disso faziam proveito, adaptando, com versos chocarreiros, cantigas em moda, entoadas às escâncaras ou às escondidas, conforme eram carentes ou abastados os destinatários, na velho hábito da cobardia humana.

Quinzinho crescera nesse meio escuro e doentio. Fizera a quarta classe e começara a trabalhar com o pai nas vinhas para um dia ser Feitor. Não estudara mais porque ler e escrever, nesse tempo, já era um curso. Nunca tivera rédea solta, o pai, distante, julgava, assim, impôr-lhe o respeito; só a mãe lhe acariciava o cabelo e lhe satisfazia a boca, e, entre as escassas largas conquistadas, ia brincamdo com os amigos à patela ou às escondidinhas, aos pinhões ou ao rapa nas datas festivas, pontapeavam a bola, no adro da capela, em jogos a mudar aos seis e acabar aos doze, subia os montes à procura de ninhos. Às vezes, sentia-se deslocado, com a sensação de ter nascido em lugar errado. Comprava sempre o jornal que a Mariazinha trazia da vila, e sentia que lhe faltava mais qualquer coisa. Sob o temor paterno e a suavidade materna lá se fez homem para usar sacho e, a ele amparado, comandar os poucos trabalhadores permanentes e os variados eventuais. O mando pragmatizava-lhe a vida, distraía-lhe os anseios e encurtava-lhe os horizontes. Ao chegar a idade de ir à sorte pagou a licença militar, continuando no tirocínio de lavrador. Em certas alturas parecia-lhe ver olhares de soslaio, ignorando se eram de inveja ou de desdém. Ele sabia que o povo era mau, o falatório um eco surdo de alterados silêncios. Ele trabalhava na vinha, andava com os homens pelos socalcos, mas ia ficar com a fortuna que o pai ajuntara. Fora feito no meio dos bardos, consequência de uma paixão carnal entre o senhor rico e a jornaleira pobre. O padre Saraiva desaprovava aquela casa, arredada do santo sacramento do matrimónio. Joaquim da Silva perfilhara-o e a mais não se achava obrigado; desdenhava do carimbo sacerdotal, continuando as compras das bulas, o pagamento da côngrua e fartas ajudas de sacristia. Já vira muito na sua naturalidade e nas aldeias vizinhas. Só falava quem tinha que se lhe dissesse. Julgando aplacar a ira da autoridade eclesial, a mãe e o filho seguiam todos os preceitos da Santa Madre Igreja.

Tornara-se, ainda jovem e cobiçado pelo mulherio, um mestre no amanho da terra. Acabada a vindima deixava descansar as videiras, mas, em Janeiro, podava-as com carinho, nunca seguindo aqueles que esperavam por Março; o pai sempre lhe dizia «Quem poda em Março é madraço», e neste mês era a primeira cava. Às vezes, em primaveras chuvosas, fazia uma segunda, lá para Agosto, a fazer jus ao ditado «Cava em Agosto enche o tonel de mosto». Não havia trato que lhe escapasse. Era esmerado e um moiro de trabalho. Seguia os vários trâmites agrícolas com a sabedoria de um antigo. Nem a erguida ou a desfolha, a redra ou o sulfato lhe escapavam ao seu rigor. Então, neste último, era piquinhas, preocupava-o o desavinho, o pai falava-lhe algumas vezes dos tempos da filoxera, não se podia descansar do míldio e da maromba que atacavam tanto o moscatel com o malvasia e, até, o alvarelhão. Esquisitava-se na calda boldalesa e usava os pulverizadores as vezes que fossem precisas: olhava para as cepas e radiografava-lhes as necessidades.

Passou também a fitar as mulheres. Aí, a sua radiografia era inconclusiva. Umas matreiravam o olhar com fosforescências de esganação ou de fantasia, de intrepidez ou embaraço. Ele não era nenhum artista de cinema, mas não se podia deitar fora: de estatura meâ, olhos castanhos numa cara oval, com um ar de madureza precoce, apimentava-o a herança que um dia lhe adornaria o saldo, se a lógica comandava a vida. Nunca se agarrara a nenhuma, cada vez mais convencido de que, o que tivesse de ser, seria.

Uma manhã, andava com os homens na vinha do Gato, a Mercedes chamou-o do alto do valado, com uma voz esganiçada e sacudindo-se como se a estivessem a picar. De um fôlego se lhe juntou e soube que a mãe tido tido um ataque. Tão violento ele fora que nem tempo deu para chegar o tabuleiro em que a queriam levar ao médico.

Quinzinho chorou tanto que os seus gritos de espanto e de dor se ouviram nos fundos do vale. A vida acabava-lhe, tudo o que fizera até aí não era real, nada o ajustava ao mundo, um vazio negro e enorme o sugava para um poço de onde não havia retorno. O pai, a quem se agarrava como num vezo fúnebre, deixava cair umas lágrimas e incitava-o à aceitação. O filho é que piorava o amanhã, pouco recebedor dos afectos paternais, habituado ao deleite da mãe, cúmplices os dois do “segredo“ da sua nascença.

As três mulheres permanentes, que trazia, há anos, ao serviço, é que arranjaram Berta Faria, colheram as flores, desembaraçaram os castiçais com as velas, e trouxeram o Cristo revestido a banho de prata que estava no quarto da falecida. Só depois da chegada do caixão a expuseram na sala de visitas.

No dia seguinte, Joaquim da Silva, chamado de lado pelo seu compadre Manuel, a quem baptizara três filhos, quase ia fazer companhia à sua “companheira”: o padre recusava-se a fazer o funeral, nem permitia os estandartes das Irmandades, eles não estavam casados pela Igreja, impossível a sua presença. Aquele recompôs-se, meteu pés ao caminho, e disse ao padre Saraiva que ou alterava a decisão ou o “amaldiçoaria“ até à sua morte. O clérigo ainda teve um instante íntimo de hesitação, fez repentinamente algumas contas, mas há preceitos que, mesmo sem humanidade, são capazes de servir de alibi a almas pusilânimes. Quinzinho, quando soube, não acreditou. Impossível tal desfeita. Sua mãe não merecia um castigo daqueles; sempre fora temente a Deus e seguidora da sua Fé. O seu choro, desta vez, tinha um travo de revolta e ingratidão insuportável. Nado e criado no temor reverencial civil e canónico, esqueceu intentos que o enublaram.

Só passados uns dias decidiu: nunca mais frequentaria a igreja com aquele padre e dele fugiria assim que a distâncuia lhe desse viso. O pai, que já raramente lá fazia poiso, pediu, a todos os santos, vida para lhe fazer o funeral.

Passados uns meses, estava Quinzinho na bicha do pagamento da décima, sentiu uma mão a bater-lhe no ombro. Era o padre Saraiva. Assopapado, com a vontade dividida em como actuar, deixando prevalecer a educação, disse «Olá, Sr Padre...»; este respondeu: «Não te tenho visto na vinha do Senhor.»; aquele, já com o recibo na mão, e como quem se despede aliviado, retorquiu : «O senhor não a sabe cavar. Voltarei depois de o ensinar na minha vinha da Estrada. Ando lá. Apareça.»

Quinzinho saltou para o Castanho, e partiu em passo travado.
- Por M..Nogueira Borges*, 15/07/10 para ForEver PEMBA/Escritos do Douro.
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Recortes - RÉGUA, antes... RÉGUA, depois...

(Clique na imagem para ampliar)

As contas antigas

Nos bombeiros da Régua há o bom costume de arquivar os antigos relatórios e contas da gerência. Alguns deles são muito antigos, pertencem à gestão económica da Associação nos seus primeiros anos de existência, quando a Direcção tinha de cumprir perante os associados as obrigações que estavam estabelecidas nos estatutos de 1880.

Os relatórios e contas de gerência são documentos de valor e de grande interesse para quem tenha de fazer a história de uma instituição tão antiga como a dos bombeiros de Peso da Régua. Hoje, esses antigos documentos são relíquias guardadas no museu, são pedaços de memórias de um tempo de garbosos e heróicos bombeiros, para a observação dos mais curiosos e para deleite de quem gosta de conhecer a evolução dos proventos e o constante aumento das despesas. Ainda em bom estado de conservação, os documentos podem ser consultadas por quem deseje e se mostre interessado nas matérias de contabilidade, dos exercícios de gestão dos anos de 1882, 1887, 1891,1892 e 1904.

Não será um caso para se dizer que os primeiros relatórios e contas de gerência dos bombeiros da Régua sejam considerados documentos complexos e até de uma difícil interpretação. Pelo contrário, aqueles documentos espelham rigor e simplicidade. Apesar dos tempos difíceis no fim da monarquia, as contas dos bombeiros da Régua terminavam, quase sempre, com um pequeno saldo de exercício positivo. Os primeiros directores demonstravam uma gestão financeira boa e equilibrada, mesmo quando os subsídios não abundavam, nem a finalidade era o lucro e os serviços prestados eram gratuitos.

Nos termos dos estatutos de qualquer associação humanitária, o relatório e contas da gerência é o documento que a Direcção submete ao parecer do Conselho Fiscal, primeiro, e à aprovação da Assembleia-geral, depois, no final de cada exercício. Se o documento for bem elaborado traduz o balanço da actividade exercida. Quem prestar atenção aos números pode verificar em que medida os objectivos foram atingidos ou não, bem como o nível da vitalidade da associação.
Os primeiros relatórios e contas de gerência, mais do que informam os números, revelam pormenores interessantes para contar na história dos bombeiros. Eles permitem-nos saber como foram prosseguidos os objectivos dos primeiros directores, em tempos de dificuldade e austeridade, como foram os finais da monarquia e inícios da primeira república, de modo a conseguirem manter em actividade o corpo de bombeiros. Quando os consultamos com mais atenção, verificamos que para as insuficientes receitas que recebiam, tiveram de ser audazes, engenhosos e muito competentes. Como com tão pouco dinheiro, foram capazes de manter um verdadeiro serviço público de socorro e de protecção civil.

A título de curiosidade, o relatório e contas de gerência de 1882 da Real Associação dos Bombeiros da Régua – como então era designada – reportava-se ao segundo ano de existência. O que está documentado pela direcção presidida por José Joaquim Pereira Soares dos Santos era uma demonstração fiel das receitas e das despesas efectuadas (em réis), que se passa a transcrever:

RECEITA
Saldo do ano anterior - 98.265
Mensalidades cobradas no ano de 1882 - 174.800
Produto líquido do Bazar - 524.350
Subsidio da Câmara municipal para reparar as bombas - 49.980
Total - 844.080

DESPESA
Mobília, utensílios, tabuleta e pavilhões e despesas diversas - 113.777
Material e utensílios das bombas e reparações - 103.60
Despesas de expediente - 14.710
Capacete para o Clarim da Companhia - 7.600
Retrato de S.M.El-Rei e emolumentos da carta régia - 33.520
Despesas com a festa do 2º Aniversário - 56.640
Total - 329.600

Saldo para 1883 - 514.480
Aqueles números dizem tudo, ou quase tudo, a quem está habituado a ler estes documentos. Mas, também para quem não está tão habituado, expõe uma justificação sucinta para cada despesa. Só não se alargava em considerações para as que considerou de “despesas de expediente” ou as “absolutamente necessárias”, ou seja, as de normal funcionamento e as suportadas com as reparações das bombas e aquisição de outro material para serviço operacional dos bombeiros.

As outras despesas foram justificadas. Uma delas com as comemorações do 2º aniversário da associação, uma tradição que aí começava, refere gastos com o almoço de confraternização para o corpo activo, directores e beneméritos. E a outra na compra de um retrato de S. M El-Rei D. Luís I e liquidação de encargos régios. Surpreendentemente, esta despesa encerra um momento histórico relevante que foi a homenagem de gratidão para aquele monarca, que deu o título de “Real Associação”. Por isso, os directores reconheciam que era “ paga de uma divida de gratidão contraída com o nosso soberano e Presidente Honorário desta Associação, que a brindou com uma distinção assaz honrosa”.

O relatório e contas da gerência de 1882 apresentava as conclusões finais, que traduziam uma boa gestão directiva e resultados financeiros positivos. De uma forma simples, a associação encontrava-se a prosperar. Aqueles directores sentiam ter cumprido o “honroso dever de gerir por mais um ano os negócios da sociedade” e garantiam que “sobre a prosperidade da Associação cumpre-nos dizer que é muitíssimo lisonjeira, pois que a receita do ano de 1882 subiu à do ano anterior mais 57.380 réis, sem contar-se com o resultante do Bazar, receita considerada extraordinária para esta comparação”.

Como director em funções, estou convencido de que os directores que assinaram o relatório e contas de gerência de 1882 foram criteriosos na gestão da Associação.

Avaliando à distância, eles alcançaram os seus objectivos sem grandes receitas disponíveis. Ao tempo, os associados não devem ter ficado com dúvidas nem motivos para os censurar. Quando muito, ter-se-ão limitado a aplaudir a gestão, sem reparos nem criticas, mas com um incentivo para os directores fazerem mais no futuro… como acontece decorridos quase 130 anos.
Se bem que os actuais documentos sejam muito diferentes, produzidos com recurso a bons programas informáticos, os números das receitas e das despesas não deixam de ter o mesmo rigor e a clareza das contas antigas.
- Peso da Régua, Outubro de 2010. Colaboração de J A Almeida* para Escritos do Douro 2010. Clique nas imagens acima para ampliar.

  • *José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também crónicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária, fatos do passado da bela cidade de Peso da Régua de onde é natural e de figuras marcantes do Douro.
Jornal "O Arrais", Sexta-Feira, 29 de Outubro de 2010
Arquivo dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua
As contas antigas
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As contas Antigas

NOVEMBRO

(Gravura editada de imagem recolhida na net)

Quando o céu escurece nas tardes de Novembro,
Lembro:
O silêncio de um quarto alugado
Com uma velha a tossir no do lado
E gente cansada nas ruas do vento.
Quando as plantas apodrecem nas sacadas
- Uma chuva miudinha a entorpecer o mundo -
Abraça-me a saudade de antigas namoradas
- Promessas breves de um segundo -
Como cobertores de Inverno em corpo gelado.
Quando as pombas se arrolam no telhado
E se aproxima a neblina do mar,
A noite, deslizando na ampulheta do dia,
Espera os enjeitados da democracia.
Quando as Avós estendem as roupas dos netos
Nas cordas de uma vida de restos,
De fatalismos há muito arquivados,
Calando passados,
É como se viver
Fosse quase morrer.
Quando as árvores amarelecem
E se despem
Como esqueletos de ossos
Sem a carne da vida,
Os olhos ( os nossos e os vossos )
Choram as esperanças traduzidas
No silêncio das palavras reprimidas.
Quando os pássaros, esbaforidos,
Fogem aflitos
Para a defesa dos beirais,
Defecam no cego que tapa o acordeão
E na mão do pedinte sob os umbrais;
Quando os cauteleiros apregoam a sorte
E os sinos anunciam a morte,
A chuva lava o chão
Para onde irá o meu caixão.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua.