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sexta-feira, 22 de outubro de 2010
O Comandante Joaquim de Sousa Pinto - O merceeiro bem disposto
Quando se fala de Joaquim de Sousa Pinto, evoca-se um dos primeiros comandantes dos bombeiros da Régua (1924 -1930) e um dos sócios fundadores que, em 1880, se juntaram numa “Comissão Instaladora” dirigida pelo escrivão de direito Manuel Maria de Magalhães, para fundarem a AHBV de Peso da Régua. Quem muito o louvou no seu livro sobre a história da Régua foi um homem do seu tempo, ele também comandante dos bombeiros, José Afonso de Oliveira Soares. Dizia o historiador, que mercê da sua grande actividade e do seu amor aos bombeiros, a associação não parou de progredir nos seus primórdios.
Nos primeiros anos de actividade do Corpo de Bombeiros da Régua, Joaquim de Sousa Pinto desempenhou, no comando, o posto de segundo comandante. Ajudou nessa função o seu amigo Comandante Manuel Maria Magalhães. Depois da morte deste, em 1892, apoiou o Comandante Afonso Soares e a seu lado continuou a trabalhar, como antes.
Ainda lhe sobejou tempo para fazer parte dos órgãos sociais da associação. Na direcção, eleita em 1882, ocupou o lugar de “fiscal da companhia”. Cargo de responsabilidade que era atribuído a uma pessoa muito experiente e de confiança do presidente da direcção. Soube, com rigor e disciplina, cuidar da conservação e asseio do material e de ter sempre devidamente actualizado um inventário de tudo quanto pertencia à companhia.
Não foi apenas a usar a farda de comandante dos bombeiros que este homem serviu a sociedade reguense e a causa pública. Durante algum tempo, exerceu funções políticas na autarquia, como hoje se diria, nos últimos anos do regime monárquico. Em 1908, era vogal da Comissão Administrativa, presidida pelo regenerador Dr. Júlio de Carvalho Vasques. Como membro desse executivo, não se absteve de votar uma proposta de louvor à sua corporação de bombeiros, no combate a um incêndio numa casa que “podia ocasionar grandes prejuízos e muitos perigos”.
Se votou a favor da proposta de louvor, na qualidade de politico, já o agradeceu na de segundo comandante da corporação dos bombeiros voluntários, orgulhoso por tão sincero reconhecimento. Discutido e aprovado, por unanimidade, em sessão ordinária, pelo significado histórico, vale a pena registar para conhecimento actual o teor do louvor, transcrevendo-o na integra:
“O senhor Presidente disse antes de mais nada que se queria referir ao incêndio que na noite de vinte e nove de Setembro passado se manifestara na casa de José de Magalhães, à rua dos Camilos, e na continuação do qual os bombeiros voluntários desta vila não desmentiram a fama de coragem e brio com que vêm esmaltando as suas glórias. Que foi seu desejo falar deste assunto em sessão extraordinária, mas não podendo convoca-la, por se achar ausente em lugar onde ocupações particulares o privaram para pedir aos seus colegas que fosse aceite um voto de louvor à louvada corporação em combater um incêndio que a esta vila podia ocasionar grandes prejuízos e muitos perigos. Que bem informado do que se passara, cada vez admira mais a coragem, a intrepidez e a sublime abnegação desse grupo de valentes bombeiros que ali trabalharam incessantemente, sem que o amor pela vida e pela sua família lhe fizessem desvanecer em nada o dever que se impôs de fazer bem embora com risco das próprias vidas.
Que também é digno de grande louvor o competente inspector do caminho de ferro, Senhor Edmundo Pedreira, pelos esforços que empregou não só em ser útil à corporação dos bombeiros, à qual prestou relevantes serviços, mas em trabalhar também, propondo por consequência, aos seus ilustres colegas se exare nesta acta um voto de louvor à digna corporação dos bombeiros voluntários e ao Senhor Pedreira e que se lhe faça constar, enviando-lhes a parte da acta que a este assunto diz respeito.
A Comissão aprovou unanimemente a proposta do Senhor Presidente.
O vogal, Senhor Joaquim de Souza Pinto, agradeceu à Comissão o voto de louvor tão sinceramente dado à corporação dos bombeiros, da qual faz parte como segundo comandante”.
Mas, infelizmente, pouco mais se sabe da vida deste influente cidadão. Nasceu por volta de 1851 e faleceu na Régua, com 79 anos de idade, no estado de viúvo, em 30 de Julho de 1930.
O que mais se sabe é que foi comerciante, no tempo em que a Régua começava a ter fama de balcão de prósperos negócios. Era dono de um estabelecimento de mercearia e tinha os depósitos de sabão, enxofre, cereais, carvão de coke e forja. A mercearia de Joaquim de Sousa Pinto, segundo o que descobrimos num anúncio, ficava na Rua dos Camilos, num prédio com o número 45, da antiga Regoa. Ao certo, é difícil dizer onde, hoje, a mesma ficaria. Agradecemos a quem souber onde esse comércio se localizava que nos faça chegar a informação.
O escritor João de Araújo Correia, que muito bem o conheceu, numa das suas crónicas a evocar a Régua do passado e as suas figuras interessantes, dizia que ele era um “dedicado comandante de bombeiros” e um “merceeiro bem disposto”.
Que Joaquim de Sousa Pinto foi um dedicado comandante dos bombeiros não há sequer dúvidas. A sua grande actividade e amor aos bombeiros não passaram despercebidos. Da sua actividade de comerciante pouco ou nada se pode garantir em seu abono, a não ser que era sociável. Era alguém que frequentava uma tertúlia, que reunia na “Botica do Anastácio”, para, com os seus amigos, conversar sobre a política do tempo e contar anedotas recessas.
Este homem deixou de si uma sombra muito vaga. As palavras que o escritor reguense lhe dedicou devem ser lidas como se fossem um elogio à figura de reguense influente na sociedade do seu tempo. A um cidadão que se distinguiu mais a trabalhar para o bem da comunidade, do que a ganhar fortunas nos seus negócios.
O seu exemplo de cidadania solidária merece muito mais que a nossa admiração. E, sobretudo, que em sua memória, se respeitem os ideais mais nobres do associativismo e da causa do voluntariado, os grandes pilares que fizeram criar e manter, ao longo de 130 anos, a AHBV do Peso da Régua.
- Peso da Régua, Outubro de 2010. Colaboração de J A Almeida* para Escritos do Douro 2010. Clique nas imagens acima para ampliar.
- *José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também crónicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária, fatos do passado da bela cidade de Peso da Régua de onde é natural e de figuras marcantes do Douro.
Jornal "O Arrais", Sexta-Feira, 22 de Outubro de 2010
Arquivo dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua
O Comandante Joaquim de Sousa Pinto - O merceeiro bem disposto
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quarta-feira, 20 de outubro de 2010
O SEVILHA
O Sevilha, em serviço de carrada de feno, chegara de Leomil, havia mais de uma hora, e não abrandava a respiração. A taquicardia assustava. Suado, babando-se anormalmente, recusando a manjedoura ou o balde da água, irrequieto, o cavalo dava quase a certeza de se ir acabar. A cena amargurava-o: tonto e trémulo, a lutar aflitivamente pela sobrevivência, meneando a cabeça, o desespero nos olhos mortiços.
O Pedro e o Raul olhavam e pediam que aquilo parasse.
João, contudo, veio espraiar-se na noite. A tortura, fosse de quem fosse, causava-lhe uma espécie de vómito, um remorso de impotência. Mandou um berro ao Farrusco, um « Chus! » ao Marquês, e sentou-se num degrau das escadas. Sentia-se frustrado, cheio de cansaço. Não era lá muito dado às coisas equestres, mas apreciava um passeio pelos caminhos da serra, escutando o eco do repisar dos cascos, em trote cadenciado, no asfalto da estrada. Lembrava-se do Castanho da sua meninice, que o seu Avô usava nas idas a Portelo, e de encolher-se todo a assistir à sua ferragem numa loja do cimo de Medreiros. Uma manhã, com o sol bem aberto, foi à cavalariça, mas o Castanho já lá não estava. O Avô, que aliava a diligência ao pragmatismo, vendera-o quando a paralisia lhe encurtou os caminhos e as esperanças de o voltar a montar.
O Sevilha aparecera numa tarde inflamada de Julho, admitido em morosa caravana de ciganos, a caminho de Bagaúste. Vinham de Moimenta, um dos pousos intercalares da peregrinação que se iniciara nos campos de girassóis Bejenses em demanda de novos comércios. O bando tinha a epiderme do Sul, o remoque andaluz e o engodo colé de pespegar um estorvo. Por umas notas discutidas de comprador e valorizações aumentadas de vendedor, o Sevilha ficou perto do final da viagem e muito longe da nascença. Não fora feito para o exacto: ora gazil, ora mofino, não tinha domação. Nunca se esqueceria daquela tarde, no Paraíso, uma chuva miudinha, num contra-senso de Agosto, a bater no descampado: o Quim, teimoso e valente, à terceira ou quarta vez, monta-o em pêlo, agarra-se às crinas e chega-lhe as esporas. Rapaz!, aquele desalmado voa pelos carreiros, salta o muro da vereda, estanca como se tivesse visto uma serpente, empina-se na vertical, à moda dos seus congéneres domesticados no Circo, e o Quim, deslizando como bola em gelo, vem por ali abaixo espojar-se no chão. Furioso, volta a insistir, grita-lhe meia dúzia de pragas; o Sevilha, enraivecido, abana-o impiedosamente, ergue-se de novo e espanta-se, lamaçal fora, como se levasse o diabo no corpo, sumindo-se pelos atalhos da caruma humedecida, deixando o teimoso cavaleiro aos berros, depois de se levantar, qual Ranger liberto do charco lodoso.
Tinha pena do animal, simpatizava com ele, com aquela insubordinação selvagem, mas, rodeava-o a uma prudente distância, que um coice dele mandaria um homem para o cemitério. De uma vez, no fundo do Caminho Velho, com os presos, pendurados nas janelas de grades abauladas, a fumarem os cigarros oferecidos, bem vira, montado no Dourado, um burro manhoso mandar uns pinotes traiçoeiros ao próprio dono que se esfalfava em elogios para melhor o mercar. O asno, logo de seguida, posto de banda o patrão agarrado à sua virilidade, arremete-se à égua do Pedro, tasquinhando-lhe o traseiro em sanha louca. Esta, tomado o freio nos dentes, desata em desenfreada correria com o burro a pisar-lhe a poeira. Transcorrido o caminho em escassos minutos, a perseguição só terminou à vista das primeiras casas do Fontão, o povoléu, aos janelos, a julgar que uma ventania se levantara da terra. João, que não morrera de susto em África, de tanto esporear o Dourado para alcançar os fugitivos, chegou ao fim tão exausto que até lhe parecia ter despertado dum sonho assombrado.
Agora era este bicho, rude e corpulento, que agonizava. Puxou de um cigarro. A família estava diante da televisão. Era a época das praias e das curas de águas. Os que podiam, procuravam as cidades da beira-mar ou as termas das bicas e dos arvoredos. Os que ficavam, sentiam-se mais livres e a calma das noites tornava-os donos do mundo.
O dia correra abrasador e os interlúdios de chuva, pelo fim da tarde, amansaram a febre da terra. As vinhas, aganadas, esmoreciam agora; as hortas engoliam a água das regas vesperais e um odor de fertilidade dispersava com a brisa. Estava uma lua cheia, de cor sílice, tão bonita e arrebatadora como a que o enfeitiçara nos matos africanos. Os castanheiros erguiam-se, no morro em frente, envoltos por manchas eternas. Os vinhedos, taciturnos, estendiam-se de cachos túmidos a aguardar os fins de Setembro. Um pinheiro manso, no cimo de uma lacónica elevação, lembrava, no seu aprumo, um Rei sem trono, em exílio prateado, a fingir que mandava. À direita, para os lados do pomar, um riacho lambia as margens, alargando-se um tanto depois da ponte, junto da Capela da Senhora das Neves. Mais acima, a Casa Grande, enorme e abandonada, alimentava lendas de lobisomens em madrugadas de medos. Atrás, no monte do Calvário, fronteiro ao povoado, erguiam-se as cruzes das bruxarias arcanas onde os loucos gemiam e as mulheres de porta aberta espolinhavam nos penedos.
João escutava a noite, a música da água da mina, insinuando-se por entre os feijoeiros, a cair na valeta em ruído inalterável. Respirava-se uma leveza claustral, uma percepção abstracta sobre a materialidade das coisas, aquele cheiro a terra molhada, aquela força de vida que tanto nos explode em megalegoria como nos constrange em abatimento diante da grandiosidade da Criação.
Como um soco à falsa fé, um estrondo seco, de fim rápido, fê-lo saltar. Desceu as escadas com uma dor esquisita no peito, um pressentimento de certeza antes de confirmada, e entrou de sopetão na cocheira. O que temia já não tinha remédio: estendido, inerte, em posição de mortal renúncia, o cavalo acabara o seu ciclo. João olhou o Pedro, debruçou-se na divisória de madeira e ali ficou pregado àquele cadáver gigante.
O Sevilha era um equídeo de bela estampa, desenhado a traços precisos. A morte dera-lhe a perfeição: um focinho ósseo e geométrico, uma crina rebelde, um dorsal bem realizado em ondulação de boa estirpe a terminar numa cauda espessa e patas firmes com umas mãos que pisavam garbosamente; no conjunto era um cavalo de tom acinzentado a calhar com umas malhas brancas dispersas. O seu corpo enrijecia a pouco e pouco, as patas saídas do taipal. À violência anterior sucedia a calma-fim-de-tudo.
- E agora? – perguntou a palidez do Pedro.
- Temos que o enterrar, não pode ficar aqui! – exclamou o Raul, de cigarro a tremer entre os dedos.
- E tem de ser no Paraíso, era onde ele se sentia realizado - acudiu João, acentuando as palavras. – Ao menos na morte, deve-se-lhe dar o espaço da liberdade - completou numa sensibilidade que soou excêntrica.
Não falaram, mas pensaram. Como levá-lo dali? O Raul que, no seu estatuto de Feitor, se achava necessário para resolver os assuntos mais complicados, alvitrou o tractor do Penteado que ele conhecia bem e não recusaria o pedido, mesmo que, já deitado, tivesse que se levantar. O Pedro e o João, cultores do recato do sangue, não queriam falatório e puseram-se de acordo na utilização de um velho carro que, bem descrita a sua estória, exemplificaria uma saga familiar. Enlaçaram uma corda às patas do Sevilha, passando-a pelo resto do corpo como quem ata um embrulho, e prenderam-na ao semieixo do automóvel.
- Isto vai rebentar tudo! Vamos ficar com o cavalo no meio do caminho e o carro desfeito! Vai ser o bonito! – esbaforiu o Raul. – Eu fujo! Não estou para levar umas troviscadas de algum maluco do Calvário! – continuou, para cá e para lá, como se andasse à procura de outra solução.
O temor do Raul, mais faceiro que autêntico, não amenizou as preocupações. Arranjaram-se umas pás e enxadas e arrancou-se lentamente para evitar algum esticão repentino, não forçando a primeira, até se conseguir manter uma velocidade uniforme. O volume do animal impressionava; as chispas dos cascos, na estrada, assemelhavam-se a línguas de fogo em borbotão; o Pinheiro Manso, quando o passaram, dir-se-ia que teve uma súbita tremura; da casa Grande, sem uso, veio um guincho de rapina; na Capela da Senhora das Neves, de paredes sem reboco há muitos anos, o pavio da lamparina do altar tremeluziu como sob o cicio de uma prece mais intensa; e, no monte da bruxaria, só se conjecturavam indícios. Quando chegaram perto das primeiras casas aceleraram um pouco para se furtarem a hipotéticos olhares. Porém, dois aventais brancos que fumavam à porta da padaria, assim que ouviram o roncear de motor, ultrapassaram a soleira e, à visão daquilo, espantaram-se para dentro como se esgazeados por uma visão demoníaca. «Porra!, já nos viram!», desolou-se o Pedro, «Aqueles já não dizem mais nada! Ficaram tolhidos!», descansou o Raul. Alcançada a orla da mata, o chão, amaciado pela chuva da tarde, apagou as faíscas e refrescou o cadáver do Sevilha. Um bando de aves adejou, em alvoroço, por sobre o barulho, em busca de outros galhos.
Abriram, durante horas, uma cova junto do improvisado picadeiro onde o Sevilha dera mais voltas que uma qualquer mota do Poço da Morte. Ia alta a madrugada quando o cavalo, finalmente, descansou da sua insubmissão.
Sentaram-se os três numas pedras deslocadas debaixo do souto secular. O satélite da terra, sobre São Gregório, filtrava uma claridade de luto e uma perdiz cantou no vale da Teja. Os caminhos de Gogim esperavam o dia para levantarem a poeira e a ermida de Arícera vigiava o descampado.
Quando abandonavam o lugar, João ainda viu o Sevilha, de focinho levantado e crinas ao vento, zunindo pelos castanheiros num vendaval de liberdade.
- Texto de M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O lagar da Memória"
- Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua.
segunda-feira, 18 de outubro de 2010
O Bombeiro Pintor
Quando esta fotografia me chegou às mão, fez-me regressar à Rua dos Camilos, na década de 1980, para junto à mercearia do Sr. Arnaldo Marques, perto da antiga agência do Banco Nacional Ultramarino, assistir à passagem de mais um desfile dos carros de bombeiros da Régua, num dia de um aniversário da associação.
Não foi o velho Buick, de 1930, a reluzir no seu vermelho vivo, que abria o desfile, mas o homem que o conduzia que fez escrever sobre aquele momento. Já há algum tempo, que o António Rodrigues da Silva, o Toninho Pintor, como era conhecido entre amigos, merecia ser recordado como um dos mais abnegados bombeiros. Sempre que revejo a fotografia, sem grande qualidade de nitidez na imagem, lembro-me de bombeiro dos velhos tempos, que ainda conheci, um exemplo de dedicação, boa vontade e de generosidade.
Nascido na Régua, em 1925, sobrinho de um grande bombeiro da velha guarda, o corajoso “patrão” Álvaro Rodrigues da Silva. Por influência deste seu familiar, alistou-se no corpo de bombeiros, nos finais de 1960. Não quis fazer parte do quadro activo. Apenas se fez bombeiro para poder ajudar como motorista e, se fosse preciso, como pintor dos carros e das ambulâncias.
Desde que ficou a fazer parte quadro auxiliares, nunca mais deixou de ser bombeiro. Umas vezes, era mais um dos motoristas dos velhos prontos socorros e das ambulâncias. Outras vezes, para evitar as despesas das oficinas, pintava qualquer carro que não estivesse em condições. Este homem, simples, afável e bem disposto, deixava a sua família, os amigos para ir para o Quartel fazer o que fosse necessário. Não era preciso que a sirene tocasse para ser o primeiro a aparecer e pegar nos carros. Quando o pessoal assalariado, os motoristas profissionais, não chegavam para tanto serviço, era com o Toninho que podiam contar para fazer os transportes de doentes que costumavam dar mais trabalho ou tinham como destino os hospitais do Porto, uma longa distância a percorrer pela velha estrada nacional nº108.
Dessas longas viagens de transportes de doentes que fez vezes sem conta e sem receber qualquer gratificação, o seu filho Norberto Gonçalves recordou uma delas que fez na sua companhia, assim:
“Recordo que numa madrugada depois de chegar de uma festa, bateram à porta de nossa casa, para o meu pai ir levar um doente a sua casa que ficava em Miranda do Douro. Meu pai que estava já deitado, depressa se levantou e vestiu a sua farda para seguir para o quartel, que ficava ainda afastado. Mas antes de sair veio ter comigo ao meu quarto e perguntou-me se não queria fazer com ele aquela viagem. Como eu já era bombeiro e o meu seguro de acidentes estava garantido, disse-lhe que sim ainda meio ensonado. Levantei da cama sem saber para onde íamos. Eu estava cansado de uma grande e divertida noitada com amigos, mas quis fazer a vontade ao meu pai. Lembro-me que me disse que eu podia continuar a dormir na ambulância, enquanto ele guiava. Como havia muita estrada para percorrer, ele pensava que não tardava a acordar, o que não aconteceu, mas ele deixou-me descansar sem me incomodar. Não me lembro de mais nada depois de me sentar ao seu lado. Só sei que acordei para ir com ele tomar um saboroso pequeno-almoço e… depois voltei a adormecer até ao nosso regresso à Régua. Quando acordei, o meu pai já estacionava a ambulância no quartel e me perguntou: Fizestes boa viagem? Ele sabia que sim, meu pai era um às a conduzir. De olhos bem abertos, sorri e percebi a sua troça, mas sentiu-o feliz pela companhia que lhe fiz naquele dia. Eu também estava feliz com a ternura e carinho do meu pai que me tinha deixado descansar de uma noite de folia nas festas do Socorro. Nunca mais voltei a fazer com meu pai assim uma viagem igual. Até ao fim da minha vida, o meu pai será sempre o meu herói”.
Enquanto o Toninho foi bombeiro pintor, o parque automóvel da Associação muito beneficiou. Não havia nenhum pronto-socorro nem nenhuma ambulância que circulasse avariada ou com a pintura estragada. Como era pintor de carros nas oficinas da famosa “Garagem Janeiros”, passou também a fazer esse serviço nas viaturas dos bombeiros, sem qualquer custo para os cofres da Associação. Sempre que fosse preciso dar uma pintura, ele não perdia tempo, chegava a perder noites inteiras, para os deixar em perfeito estado. Das suas mãos saíam a reluzir como novos…! O parque automóvel dos bombeiros, nesse tempo, tinha poucas viaturas, talvez as necessárias… Mas o Toninho Pintor estimava como mais nenhum, o elegante Buick, que cuidava como se fosse o seu próprio carro. E, quando havia oportunidades, a sua felicidade era conduzi-lo, nos desfiles, festas e aniversários e até nos funerais.
Foi um bombeiro admirado e respeitado pelos seus superiores e companheiros. Os bombeiros mais novos gostavam da sua presença. A sua humanidade contagiava-os. Ouviam-no contar as histórias da sua vida. A sua simplicidade fez do Toninho um ídolo no corpo de bombeiros da Régua.
Alguém tinha de lhe reconhecer os seus méritos. A Liga dos Bombeiros Portugueses agraciou-o com as medalhas de mérito, grau ouro e grau prata, que recebeu em 1991 e 1994.
Quando faleceu, em 19 de Setembro de 2005, tinha perto de 80 anos. Se acreditarmos que a vida contínua, esteja onde estiver, ele não deixará de ser bombeiro da Régua, para ajudar como motorista e pintor de carros. No Quartel Delfim Ferreira haverá sempre uma velha ambulância à sua espera, para a conduzir como antigamente ou um pronto-socorro Buick a precisar de uma pintura de um profissional como era o Toninho Pintor.
- Peso da Régua, Outubro de 2010. Colaboração de J A Almeida* para Escritos do Douro 2010. Clique nas imagens acima para ampliar.
- *José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também crónicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária, fatos do passado da bela cidade de Peso da Régua de onde é natural e de figuras marcantes do Douro.
Jornal "O Arrais", Sexta-Feira, 15 de Outubro de 2010
Arquivo dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua
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O Bombeiro Pintor
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