quinta-feira, 27 de maio de 2010

CARTA AO PRESIDENTE DA DIRECÇÃO DOS BOMBEIROS

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Ex.mo Senhor
Dr. José Alfredo Almeida,

Os meus cumprimentos e as minhas saudações.
Quase dá a impressão de que estou a dirigir-me, em simultâneo, a duas pessoas diferentes, ao activo presidente da Direcção dos Bombeiros da Régua e ao amigo Dr. José Alfredo Almeida. Na verdade, a mesma pessoa congrega e une as duas personagens.

No entanto, o importante não está em destrinçar a união ou a separação das duas personagens, está sim no que o caro amigo tem vindo a fazer, há cerca de dois anos, para com a Associação Humanitária dos Bombeiros do Peso da Régua. Refiro-me à divulgação de dados históricos da associação reguense, no jornal local “O Arrais”.

Infere-se das suas peças jornalísticas que o senhor dispõe de numerosos baús de fotografias da associação. Em momentos de descontracção laboral, repassa vagarosamente esse acervo fotográfico, até que algumas unidades lhe despertam a atenção, pela recordação das pessoas, pela observação das viaturas, pela consideração das actividades registadas…sabe-se lá, por qualquer pormenor que o faz magicar sobre o passado da nossa associação, principalmente, em comparação com a realidade do presente. Infere-se também que, a partir das fotografias, o amigo é conduzido para e por outros registos dos Bombeiros da Régua. Magica, compara e vai confiando ao papel o fruto das sua meditações, do seu deleite, talvez do seu devaneio, vindo a construir aquelas dezenas de publicações que já fez – e por certo continuará a fazer – a respeito dos Bombeiros da Régua.

Da minha parte, considero este trabalho altamente meritório. Propor-se alguém escrever a história dos Bombeiros da Régua afigura-se como projecto empolgante, mas capaz de não passar de pretensão a mais, voo demasiado arrojado. Aliás começamos, logo, por nos defrontar com a questão de saber o que se pretende com aquele enunciado e até o que se entende por “história” e pelos “protagonistas da “história”. Sem ruído, o meu amigo tem vindo a fazer um trabalho muito importante, que consiste em associar elementos dispersos, a primeira associação dos elementos mais dispersos do percurso desenhado pela associação dos bombeiros que dirige. Modernamente, poderá alguém usar a expressão “partir pedra” para caracterizar o seu trabalho. Confesso que não gosto dessa expressão, mormente aplicada no presente contexto, uma vez que a pedra partida fica toda separada, quando antes de partida formava um só bloco maciço e sólido; depois de partida, apresenta-se desaglutinada, em múltiplos pedaços. Ora, o seu trabalho tem operado exactamente o contrário: tem procurado pacientemente os pedaços dispersos do palmilhar dos homens da sua associação – tantas vezes parecendo desconexos – e tem-nos aglutinado em peças coerentes, com sentido, autênticos painéis prefabricados que, a qualquer momento, podem ser utilizados no fabrico duma “casa de campo”.

Considero que está a organizar a primeira etapa duma inevitável futura História dos Bombeiros do Peso da Régua e confio que aperfeiçoará o trabalho em execução, dando-lhe um mínimo de organização e autenticidade, de modo a constituir, verdadeiramente, o tal primeiro passo de envergadura global, que acima referi.

Já que tem tido em mãos as memórias do passado, registadas em fotografias e em textos, permita-me a ousadia de lhe pedir que tome medidas de preservação de todos esses documentos. Não os deixe perder. Proteja-os numa estante arquivo, que, só por si, venha a ser capaz de obrigar a pensar duas vezes a alguém que se disponha a estender a mão assassina para os destruir, a pretexto de que já não fazem falta nenhuma.

Por outro lado, também é importante cuidar dos documentos que o presente vai gerando, tanto fotografias como textos. Muito rapidamente, o presente se transforma em passado. Não podemos esquecer que somos portugueses, consequentemente, desordenados, descuidados e pretensos facilitadores das coisas difíceis, com a desculpa sempre pronta, na miragem de que ela resolverá os problemas, os azares e os fracassos. Sabe muito bem que os problemas se resolvem com conhecimento, trabalho e organização.

Na sua crónica de 1/4/2010, "Viagem Inesquecível a Chaves", o amigo socorre-se da curta legenda que descobre no invólucro das cinco fotografias que registam o acontecimento, mas sente-se que queria saber mais, que fica insatisfeito com a informação obtida. Esta circunstância insignificante não poderá dar origem a um processo de tratamento do material produzido actualmente, de modo que não se limite à satisfação de meras curiosidades, no futuro, mas antes adquira o valor e a força de autêntico documento para os vindouros? Legendar, com algum pormenor, cada fotografia, no verso, talvez mantenha visíveis todas as pontas da meada, que permitam, mais tarde, urdir consistentemente, o tecido histórico da associação dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua, durante os seus gloriosos cento e trinta anos de existência?

Espero que as dificuldades de encontrar novidades, todas as semanas, a justificar nova crónica, não façam nascer o desânimo, nem tão pouco, possíveis incompreensões e oposições, ou criticas, ao trabalho que vem desenvolvendo. Isso são labirintos por onde tem que passar quem faz alguma coisa. O amigo está a fazer, nos Bombeiros, um trabalho que seria extremamente útil fazer em todas as instituições do concelho, o que viria, então sim, permitir e obrigar à organização duma verdadeira História do Concelho do Peso da Régua.

Na esperança de que as reflexões que acabo de lhe confiar não sejam mal interpretadas, mas antes, constituam um pequeno contributo para o registo das memórias dos Bombeiros reguenses, subscrevo-me com consideração e estima

Damas da Silva - Maio de 2010.
- Colaboração de JAAlmeida, Peso da Régua, Maio de 2010

terça-feira, 18 de maio de 2010

O CRISTO DE PAU PRETO

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O hotel dos sul-africanos, rodesianos e laurentinos endinheirados regozijava na noite morna. Luzes de cenário furavam as sombras das palmeiras de luxo que as pobres estavam no mato misturadas com os cajueiros e as imbilas. Carros espelhantes entravam e saíam em ritmo de recepção oficial. Negros de libré salamalecavam de um lado para o outro. No tecto, lustres prateados desenhavam figuras de cera. Os sussurros das vozes sugeriam futilidades e alguns risos tilintavam hipocrisias. O calor desfibrava o cacimbo e o ar flutuava de lubricidade. As fardas brancas, número um, de peitos medalhados, pareciam disfarces de corso e as piscinas espelhos polidos em que se reflectia a lua.

Uma névoa de leite descia para o Índico, um cargueiro apontava a proa para o Cabo, almadias diligenciavam marisco, a cidade adormecia embrulhada na indolência.

João deixara o Norte, muito para lá do Zambeze, os fornilhos dos atalhos de pé descalço, as minas dissimuladas na terra vermelha das picadas, o estalar das culatras das armas sem religião. Os homens que combatiam tinham coração e um Deus, mas disso se esqueciam quando os indicadores puxavam os gatilhos e as balas explodiam a morte. Agora, estava ali, embasbacado diante dos portões do hotel rico, espia da curiosidade a deambular sem mapa, pensando que, enquanto uns andavam de camuflados desbotados pelo suor, o sangue e a poeira, sujeitos a levar com um tiro ou um estilhaço nos cornos, cá em baixo, na capital provincial, os que gizavam nos mapas, em gabinetes climatizados, as operações de grande envergadura, escreviam sitrepes e perintrepes, comunicados para a Imprensa e convites para repórteres vendidos, desfrutavam as delícias do requinte colonial.

A guerra parecia-lhe uma função dividida entre fazedores de lixo e os que o recolhiam, ou, para não ser tão prosaico, um jogo de xadrez em que os peões são sempre as primeiras vítimas e os bispos, na sua obliquidade, os defensores do rei, com a rainha debaixo de olho, sem descurar os saltos dos cavalos ou a rectilínea das torres.

Sentiu uma saudade desculpável, que mais não era do que um desconforto perante o fausto que o agredia. Lembrou-se das noites de petrolina, das escâncaras do céu, do silêncio falante para lá do arame farpado, do calor gorduroso a derreter-se sob a orvalhada que crescia entre as copas do matagal, da espera do grupo que, à volta de Nangololo, pediria para que as armas não gritassem; recordou o Silva, a sua alegria para sempre perdida; o medo tão físico e manifesto que se cruzava nos olhares, misturava-se com o cheiro a urina das latrinas no canto mais afastado do polígono; a angústia dosanoiteceres - porque se o dia mostrava as formas que aquietavam os espíritos, a escuridão inquietava-os - que aumentava a espera dos sitiados. Percebeu-se necessitado de alguém que lhe falasse, um abraço sem factura, um beijo de uma boca que nunca mais visse, uns olhos que não lhe lembrassem raiva, nem loucura, nem teimosia; alguém que o entendesse sem lhe perguntar quem era, donde vinha, nada lhe impusesse nem exigisse, lhe murmurasse apenas que estava ao seu lado. Não era amor que ele pedia, só fraternidade, aquela ajuda que nunca se recusa a uns olhos aflitos, aquele preenchimento do vazio do egoísmo do mundo. Olhou as luzes embaciadas da cidade numa respiração de chafurda lacustre, os guindastes do cais do Gorjão como espectros dum filme de docas secas, um ar de desamparo que lhe exagerava a clausura.

Desceu por ruas sem passeios, ornadas de árvores, absorvendo aquele odor único de humidade e catinga, com as buganvíleas trepando pelos muros das casas e os cães despertados pelos seus passos. Tentaria um machimbombo para o levar ao centro, à avenida em que desfilara pela última vez. Depois, retrocederia para o porto e, nos botequins da rua Araújo, esperaria o amanhecer.

À porta, negros, em riso de folga, balouçavam ao ritmo do rádio que um deles segurava em cima do ombro. Não seriam macondes nem ajauas, talvez senas. Ao fundo, um cocuane, de cigarro ao contrário, avivou-lhe a memória de um maconde de cabelos brancos que lhe vendera um Cristo em pau preto: «Chi! É caro cem escudo? Arranja mais barato no Lisboa? Patrão, faz favorzinho, num diz qué caro!» Comprou e deu vinte de mata-bicho.

Negras, brancas, mulatas e algumas de ascendências asiática tinham o mesmo objectivo: a venda do corpo, a chantagem das privações dos meses a armazenar esperma, o acicate das bebidas com percentagens acertadas. A música de ritmos acelerados não deixava escutar ninguém, o suor rançoso não separava perfumes, os corpos meios desnudos alvoraçavam desejos, a promiscuidade não respeitava educações, reinava a avidez pelos que ostentavam mais dinheiro, não subsistiam fronteiras, uma desordem venial acotovelava-se e apalpava-se por entre gargalhadas e tonturas de bebidas falsificadas.

Cá fora, a balbúrdia não tinha tons nem modos, a rua era um esgoto de detritos, vómitos de misturas, escarros de bronquites relentadas, um metralhar de palavrões, «Estou farto deles! Só mandam vir e não fazem nada! Vou pró Puto e quero que se fodam todos!», uma náusea de sombras desconfiadas e gonorreias mal curadas. A bruma de algodão penetrava as roupas e adivinhava as formas. Era a neblina das noitesafricanas que manchava as ilusões dos poetas sem editores, feitos guerrilheiros à força  pelos facínoras do Terreiro do Paço. Os barcos, fundeados, simbolizavam rumos velhos traçados pelo leme de uma Pátria que, entre a liberdade e a mordaça, sempre andara fora de casa a engrandecer ou a desbaratar o seu futuro.

Acima do Zambeze ficariam as suas pegadas, diluir-se-iam as lágrimas das saudades dos seus mortos. Olharia de frente, sem medalhas, a sua história. Em Mafra haviam-lhe dito que «o Rei não manda chover, manda marchar!» Marchou. O Cristo de pau preto, numa mesa de cabeceira da casa onde nascera, seria o grito refreado da memória desses dias.
- Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória.
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