quinta-feira, 13 de maio de 2010

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Cartas de Longe: Apontamentos de Histórias Perdidas...


Nos anos 60 esteve em Porto Amélia um médico de nome Camilo de Araújo Correia que, em 1991, publicou um livro denominado "Livro de Andanças". Desse livro extraímos:

APONTAMENTOS DE HISTÓRIAS PERDIDAS - Quando recordo o tempo de Porto Amélia, muitas vezes me salta na memória o meu amigo Armando Cepêda.

Era um homem largo, inteligente e bondoso. No carão de pugilista a linha dos olhos e a linha da boca traçavam, a miúdo, um sorriso paralelo a deixar transparecer uma acomodada filosofia de vida.

Era casado com D. Maria, senhora absoluta da Pensão Miramar. E digo senhora absoluta porque ali quem mandava era ela. Nem o marido nem os filhos davam a mínima ordem naquela nau de tripulação negra, capaz de todas as preguiças e descuidos. Com dois berros e dois cascudos aquela criadagem indolente andava numa roda viva. D. Maria era uma senhora robusta, de língua solta com sotaque do Porto.

Parecia um salpico, na costa de Moçambique, do pincel genial de Abel Salazar, em momento de inspiração tripeira. Armando Cepêda mandava na sua oficina de reparação de motores de que era especialista em Diesel. A oficina ficava na Rampa, aquela encosta medonha que nem a bordadura de acácias rubras conseguia suavizar. Medonha e obrigatória na ligação da parte alta com a parte baixa de Porto Amélia.

Passei muitas horas naquela oficina entre carcaças da mais diversa maquinaria avariada, à espera que Armando Cepêda lhe restituísse a serventia perdida. E dava gosto ver aqueles dinossauros sair de um sono pesado e regressar ruidosamente à floresta, com uma palmada na anca. Uma palmada que só o meu amigo Cepêda sabia dar.

Conseguíamos conversa entre roncos de motor e marteladas de todos os sons. E tudo servia para dois dedos de conversa, a fazer sede para dois goles de cerveja. Guardo ainda um cinzeiro de pé alto que Armando Cepêda me fez numa pausa do serviço. É a estilização de uma cobra erguida na ponta do rabo a equilibrar meio coco na fúria da cabeça.

Antes e depois de jantar, Armando Cepêda derramava o corpanzil naquelas cadeiras do jardinzinho da pensão à espera de todos os cansaços, de todos os tédios e nostalgias. Recordo ainda o perfume adocicado das magnólias que o calor da noite parecia libertar suavemente.

Os hóspedes vinham chegando, um a um, à roda das cadeiras e a eles se juntavam residentes de Porto Amélia para dois dedos de conversa. Pessoas vindas de toda a parte pelas mais variadas razões, algumas delas muito roladas pelas mais diversas geografias. Comerciantes, agricultores, médicos, funcionários públicos, engenheiros, militares, todos enleados naquele fio de nostalgia tropical que parece igualar todos os homens.

As palavras iam ficando mais espaçadas e moles com o andar daquelas noites suadas. Mas se a conversa caía sobre o mato, Armando Cepêda erguia-se um pouco da posição quase horizontal, para, pouco a pouco, dominar o assunto.

E todos nos erguíamos um pouco também para o ouvir contar histórias de camiões atolados no matope, dos perigos e dos encantos do mato. E de caça. Armando Cepêda não era, digamos, um caçador de safaris. Era caçador solitário, muitas vezes por exigência da esposa, quando a despensa fraquejava. Apertado por ela, Armando Cepêda ia ao mato abater um javali como quem vai ao fundo da capoeira buscar um frango.

Por duas vezes o acompanhei nesta caça de subsistência. A ele e ao Jacinto dos Caminhos de Ferro devo o conhecimento do mato. Sem eles a minha África teria sido pouco mais do que uma África de cidade. Jacinto era uma velha glória do Benfica. Ter sido guarda-redes das primeiras categorias era uma recordação que lhe fazia ainda rebrilhar os olhos. Jacinto era um caçador tão metódico como apaixonado. Dois pisteíros negros, o velho Land Rover, um bom farolim e a arma escolhida para o tipo de caça determinado. E eu, às vezes, graças a Deus! Sim, dou graças a Deus por ter vivido o emocionante espectáculo de andar a esmo pelo mato, com o jeep aos solavancos, farolim a esquadrinhar os espaços mais suspeitos e a surpreender os animais na intimidade da noite.

Inesquecíveis aquelas imbabalas saltitantes e graciosas como bailarinas a fugir ao palco de luz que lhes ofereciamos. E aquela sensação de liberdade plena que se experimenta, ao descansar nas quinandas, ouvindo o crepitar da fogueira e do falajar dos negros contra o silêncioprofundo do céu?Sempre me pareceu que Jacinto, mesmo a mexer na burocracia do seu emprego, tinha os olhos no mato. Tanto que, mal deixava a secretária, caía no quarto a pintar. A pintar o mato; sempre com animais em primeiro plano e, tão recortados, que pareciam postos ali depois do quadro pronto. Não era um bom pintor. As telas eram o seu mato teórico para onde gostava de ir, a qualquer hora. Uma vez, só porque me demorei um pouco mais a ver três gnus a pastar, ofereceu-me o quadro. Na bagunça do regresso, o quadro perdeu-se. E tenho pena. Estaria hoje numa das minhas paredes com as saudades da África a retocá-lo todos os dias.

De uma vez o Jacinto convidou também para a caça o Dr. Manuel Jóia, médico do «Bartolomeu Dias», ancorado na baía de Porto Amélia, em patrulha da costa de Moçambique. Foi o seu baptismo de mato. O grande entusiasmo com tudo o que ia acontecendo redobrou quando, ele próprio, abateu um javali. Entre as seis e as dez da manhã é fácil encontrá-los nas áreas da sua predilecção. Passam como carruagens de um comboio rápido. Jacinto aconselhou:

— Aponte a um dos primeiros... Pode ser que acerte num dos últimos...

E o Manuel Jóia acertou, julgando, a princípio, não ter acertado. O raio do bicho com um rombo na barriga ainda se fartou de correr como se nada fosse com ele! Depois lá caiu como se tivesse caído do comboio.

No «Bartolomeu Dias» os oficiais comeram javali até lhe chegarem com um dedo e festejaram o seu médico como um herói da selva.

Voltemos ao meu amigo Armando Cepêda. Ele era, como já lhes disse, um caçador solitário. Saía antes da madrugada e regressava antes do entardecer. Da segunda vez que fui com ele «à carne» aconteceu uma coisa que me apetece contar.

O sítio escolhido para o abate foi uma velha machamba de milho abandonada, entre Porto Amélia e Mecufi.

— Aqui é um sítio bom por causa dos restos do milho e não há macacos a denunciar a nossa presença com a gritaria — disse o Armando Cepêda, saindo da picada.

Não havia meia hora de sol, quando apareceu um javali do outro lado da pequena veiga que dominávamos completamente de onde nos haviamos instalado. Era um animal relativamente pequeno, a grunhir e a estraçalhar a um e outro lado do focinho temeroso.

Parecia nada recear e, no entanto, toda aquela energia de patas e focinho parava, de vez em quando, como se tivesse havido um curto-circuito. Depois de uns segundos de imobilização total, a fúria do javali restabelecia-se para, daí a pouco, sofrer nova pausa.

— O bicho está desconfiado... eles são muito desconfiados... — disse Armando Cepêda, à boca pequena, sem tirar os olhos do javali.

Como vinha na nossa direcção, a certa altura ficou a uma boa distância de tiro.

— Então?! — perguntei baixinho.
— Quanto mais perto o abatermos, menos custa a arrastar para o jeep...
— Pois é... —  disse, reconhecendo a minha inexperiência.

Armando Cepêda sorriu aquele sorriso de linhas paralelas.

Quando o javali ficou a uns trinta metros, perguntou-me se queria atirar.

— E se falho e não aparece mais nenhum? Não podemos aparecer à D. Maria de mãos a abanar!...
— Deus nos livre!... Ninguém a aturava!...

Soaram dois tiros com intervalo de um segundo. O javali caiu no meio da erva como um saco de batatas.

Com um arame atado às patas de trás e um pau atravessado na outra ponta foi fácil arrastá-lo até ao jeep.

O «mata-bicho» à sombra daquela mangueira isolada no mato rasteiro, ainda hoje me sabe. D. Maria era uma senhora farta. Arranjou-nos um farnel que dava para atravessarmos a África. Fígado de cebolada, meio metro de omelete, carne assada, queijo, muito pão, cerveja e água mineral. Do começar ao palitar, foi uma larga hora a comer. A comer e a contar coisas.

No fim de arrumar a tralha, com o método e a lentidão que o caracterizavam, disse o Armando Cepêda, já todo contente com a ideia:

— Vamos cumprimentar o meu amigo Rosas! É chefe de posto aqui perto. Vai ficar todo contente!

Era realmente ali perto e o senhor Rosas ficou todo contente. Quis logo que nos sentássemos na varanda e foi dizendo:

— Vindes em boa altura! Tenho uma esplêndida carne de búfalo novo; vou já arranjar uns bifes e umas costeletas...
— Para mim, não! — cortei, aflito.
— Ora essa!... Por quê?! — admirou-se o senhor Rosas.
— Desculpe... é que acabámos agora mesmo de comer este mundo e o outro...
— Bem... Bem! — respondeu desalentado, mas logo a berrar lá para dentro:
— Hassan!

Apareceu um negro, a limpar as mãos, a fazer vénias e a sorrir de orelha a orelha.

— Prepara uns bifinhos e umas costeletas daquela carne... com aquele molho... Tu sabes como é!

Hassan sabia como era. Meia hora depois, apareceu na varanda com uma travessa enorme no meio de uma pequena mesa portátil, já posta para três pessoas. O cheiro da carne apanhou-me de surpresa. Era de tal maneiras agradável e penetrante que até as glândulas salivares me doeram!

— Vai uma pontinha, doutor, só para provar? — perguntou-me o senhor Rosas de olhinho irónico.
— Isso cheira pela vida... — consegui dizer em plena vertigem.

A pontinha de carne que o senhor Rosas me pôs no prato «só para provar» foi uma costeleta do tamanho de uma raquete de ping-pong espessa, suculenta e aromática...

A princípio com uma certa cerimónia e depois com uma certa gula lá fui andando pela costeleta fora. Acabei a «raquete» como mandam as regras: pegando-lhe pelo cabo... Quando pousei o osso rapado, diz-me o senhor Rosas com sorriso de vitória:

— Então, doutor, estava boa?

A vitória não foi do senhor Rosas. Foi da África. Daquele sentir tudo de novo, como uma estreia dos sentidos, em cada momento que passava.

Conheci Megama Abdul Kamal muito antes de o vir a encontrar, frequentemente, na Pensão Miramar.

Megama era régulo do Chiure, com influência religiosa numa larga faixa de terreno entre o Rovuma e o Lúrio. Homem abastado, senhor de terras e camiões, era também transportador habitual da grande companhia algodoeira Sagal.

Fui a sua casa a convite do Armando Cepêda, chamado a consertar o motor de um poço. Nas apresentações vi que eram grandes amigos. Julgo que, por isso, Megama me olhou logo com respeito e franqueza, sem duvidosa humildade dos negros daquele tempo.

O motor ficou composto num instante. Nós levámos mais tempo... Megama quis que provássemos de todos os seus petiscos. Seu era também o café, da planta à chávena. A mâozada firme e confiante com que nos despedimos havia de repetir-se, vezes sem conta, por todo o meu tempo de Porto Amélia.

No regresso ao jeep, ouvi falas e risinhos por detrás de uma paliçada. Notando a minha estranheza, Armando Cepêda logo me esclareceu:

— São as mulheres de Megama...

Na cidade, vim a saber pelo Jaime Ferraz que deveriam ser umas sete... Em Porto Amélia o Jaime sabia um pouco de tudo!

Um dia, Megama apareceu no Hospital Militar todo dobrado e cheio de dores. Era uma hérnia estrangulada, há três dias... Os cirurgiões costumam «berrar» com os doentes por virem tão tarde, em evidentes situações de solução cirúrgica. Mas o Dr. Manuel Simões Coelho não berrou. Tratava-se de Megama Abdul Kamal! E por se tratar de tão importante personagem o post-operatório teve aspectos de peregrinação.

Vinham negros de toda a parte, trazidos por aquele fio invisível que é o sentimento religioso, temperado na fé e na obediência.

Com o vai e vem da gentiaga, a vida do hospital acabou por se perturbar. Ao ponto de, pelo terceiro dia, o Simões Coelho me pedir:

— Tu, que és todo amigo do Megama, podes garantir-lhe que está livre de perigo, que tudo vai correr bem... e pedir-lhe que faça constar as suas melhoras, a ver se acaba esse corrilório!...

Assim fiz. Megama compreendeu e actuou muito bem. As visitas acabaram de um dia para o outro. Nem umas só voltou a aparecer! Ainda hoje me espanta o extraordinário poder de comunicação dos negros naquelas lonjuras primitivas, sem rádio, sem telefone e sem correio.

Armando Cepêda era um caso curioso de fotógrafo. Nem amador, nem profissional. Era fotógrafo de ocasião, para ganhar uns cobres suplementares. Essa ocasião surgia quando os indígenas precisavam de retrato para a caderneta. Dava-lhe jeito aproveitar os domingos, que no mato não têm qualquer significado. Era sempre recebido nas aldeias com grandes manifestações de contentamento. Nas pausas da algazarra, fotografava quatro negros de cada vez, sentados numa tábua. Depois, no «estúdio», a tesoura lá os separava. No domingo seguinte, a caminho de outra, passava pela aldeia fotografada e distribuía os retratos. Havia corridinhas e gritos de alegria, com todos a querer ver a cara de cada um no retalhinho de papel.

Um dia houve um pequeno acidente... Toda a gente parecia satisfeita, quando apareceu uma reclamação, já com o jeep a ronronar a partida.

— Patrão!... Patrão!... esta não é do nosso!
— Não é tua?! É tua, sim senhor!! — garantiu Armando Cepêda olhando para o negro e para o retrato.
— Não é!... Não é!... Nosso não tem chapéu!

Armando Cepêda sabia lidar com os negros. O grande respeito e admiração que lhes infundia emanava do seu grande espírito de justiça e bondade. Além disso, era um branco forte, compunha máquinas e matava leões.
Não teve a mínima dificuldade em desfazer o equívico. Pôs a mão no ombro do negro e sossegou-o, assim:

— Ah!... o chapéu?... Fui eu que pus. É saguate! (brinde, oferta).

Os olhos do negro rebrilharam com aquela gorjeta inesperada. Depois vieram as palavras de gratidão de uma boca babada de riso:

— Brigado, patrão!... Brigado, patrão!...

E partiu, a misturar-se com os outros. Talvez a fazer-lhes inveja.
- Por Camilo de Araújo Correia, Livro de Andanças.

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Cartas de longe: Artistas do Douro e da Régua

FERNANDO GUICHARD - Começou a pintar aos seis anos, quase por obrigação, ainda que tivesse gosto e o talento tivesse despontado muito cedo.

A avó e a mãe, que também pintavam, descobriram-lhe o jeito e insistiram para que o aperfeiçoasse desde muito cedo. "Quando se nasce com um dom, ele vem sempre ao de cima", diz.

Anos mais tarde, Fernando Guichard foi estudar para a faculdade de Belas-Artes do Porto, onde começou por freqüentar o curso de pintura, com Júlio Resende como professor. Algum tempo depois, passou para o curso de escultura e foi aluno de outro grande nome das artes plásticas:o escultor Barata-Feyo.

A meio da vida universitária, Fernando Guichard foi chamado para a tropa e durante quatro anos a sua vida foi na Guiné, longe das aguarelas e dos pincéis. Quando regressou, decidiu deixar a faculdade: "cheguei à conclusão que não andava a aprender nada!", afirma.

Na época, a banca oferecia postos de trabalho bem remunerados e com uma grande estabilidade, por isso tornou-se a melhor opção profissional para Fernando Guichard, ainda que essa não fosse a sua paixão. "Nunca tive afinidade nenhuma com a banca, até porque sempre disse que nunca na vida haveria de estar sentado a uma secretária", conta Guichard. Por isso, ao chegar a casa depois de um dia de trabalho no banco, os pincéis e as aguarelas foram sempre a companhia preferida.
A aguarela é a técnica mais usada por Guichard, mas, de vez em quando, também utiliza tinta-da-China. "Prefiro pintar com aguarela porque é uma técnica que exige mais rapidez, o que se começar tem de se acabar o mais depressa possível, não há interrupções nem pode haver erros", explica o pintor. E como sempre foi "um apressado" e nunca gostou de ficar muito tempo a trabalhar no mesmo quadro, encontrou na aguarela a técnica ideal para a sua forma de ser e de estar.

A primeira exposição aconteceu em 1985, quando Fernando Guichard integrou a III Bienal de Pintura, que teve lugar na Régua e foi promovida pela Associação Cultural do Alto Douro. A partir de então, seguiu-se uma série de exposições individuais....No total, já foram cerca de meia centena de exposições realizadas em todo o país e em Espanha, Espinho, Ovar, Guimarães, Covilhã, Viseu, Chaves, Mirandela, Bragança, Zamora, Lisboa e Tomar são apenas algumas das cidades que já tiveram o privilégio de apresentar as aguarelas deste artista nascido na Régua.

Para Fernado Guichard a pintura é uma forma de ocupar o tempo, mas acima de tudo, uma grande paixão. Agora, que está reformado da profissão de bancário, tem o tempo todo para estar entre os pincéis e as aguarelas, inspirado pela música clássica, na tranquilidade do seu atelier improvisado em casa. A paisagem urbana é o que mais cativa Fernando Guichard: "sou um fanático pelo património e gosto muito de o pintar. É pena que o património da região esteja tão degradado". Por isso, Fernando Guichard acredita que os seus quadros podem ser um grito de alerta para as pessoas no sentido da necessidade de conservar e valorizar o património.

Lamego, Guimarães e Viseu são as cidades preferidas para as suas aguarelas, mas por todo o paísmuitas vilas e cidades apaixonaram Fernando Guichard e foram retratadas por ele. Onde houver madeira, ferro e granito, há de certeza motivo para pintar mais uma aguarela, porque são os materiais que Fernando Guichard mais gosta de retratar.
No caso da Régua, o que inspira Fernando Guichard não é propriamente o património arquitectónico, mas antes a paisagem magnífica que envolve a cidade: "o património aqui é muito pobre, mas há o rio Douro e os socalcos, que são lindíssimos", explica. Mesmo assim, garante que já pintou a Régua em todas as suas formas e vista de todos os ângulos possíveis. Para o artista ha três lugares de onde a Régua é mais bonita: de Loureiro, de Valdigem e da Serra das Meadas.

Mas apesar de tudo, Fernando Guichard diz que gosta da sua cidade e que não se imagina noutro lugar.
- Villa Regula de Março de 2001, texto de D. Olga Magalhães.

DE VILA SECA DE POIARES, ACÁCIO CARVALHAIS E SUA ARTE - Acácio Carvalhais dedica-se a rotular garrafas de Vinho do Porto em estanho, uma arte que já levou bem longe seu nome.

De todos os cantos do mundo chegam encomendas à sua oficina, em Vila Seca de Poiares, e em todo o lado é conhecida esta forma original e única de rotular garrafas. Mais uma imagem da nossa terra, graças à ciatividade e ao empenho de Acácio Carvalhais.

As garrafas rotuladas em estanho nasceram na Régua e aqui continua a ser o único lugar onde elas são feitas. Acácio Carvalhais foi o percursor desta forma de arte e o seu nome e o seu talento já passaram para além das fronteiras do país. Diz que não faz publicidade, mas que os clientes lhe aparecem, não sabe como, vindos de todos os cantos do mundo, à procura das típicas garrafas.

Em tempos, Acácio Carvalhais dedicava-se a todo o tipo de artesanato, que foi a atividade que desde sempre o encantou. Um dia, devido a problemas de saúde, o médico avisou-o que era melhor parar com os grandes esforços e então viu-se obrigado a desistir da profissão. Mas como nunca gostou de estar parado e precisava de sustento, depressa o artesão procurou uma forma diferente de trabalhar e foi então que surgiu a idéia de rotular garrafas de Vinho do Porto em estanho.

O cliente leva as garrafas e Acácio Carvalhais rotula-as e fecha-as. Os rótulos podem ter o aspecto e as imagens que a imaginação deste artesão permitir.

Depois, é ele próprio que desenha e que faz a gravura no estanho, artesanalmente. Barcos rabelos, cachos de uvas, e até os emblemas dos grandes clubes nacionais servem de motivo para ilustrar estes rótulos.

Cada garrafa rotulada em estanho custa ao cliente cerca de Esc.: 1.700$00, mas o preço pode variar conforme as quantidades encomendadas.

Acácio Carvalhais afirma que o negócio lhe rende porque não tem mãos a medir, trabalha o dia inteiro e, muitas vezes, também pela noite dentro. "O artesanato dá muito bem para viver quando as pessoas têm gosto pelo trabalho e fazem as coisas bem feitas, como deve ser", afirma o artesão. Por isso não acredita quando houve outros artesãos queixarem-se da vida difícil que levam e das dificuldades econômicas. E, apesar de ter apostado nesta arte por necessidade, tomou-lhe o gosto e apaixonou-se.

A oficina de Acácio Carvalhais, à entrada de Vila Seca de Poiares, está transformada numa verdadeira empresa familiar. A mulher e a filha entregaram-se também a este ofício até porque, de outro modo, era impossível dar conta de todas as encomendas. Se a filha optar, entretanto, por outra atividade, talvez a arte dos rótulos de estanho fique por aqui.

Acácio Carvalhais já lecionou dois cursos em S. João da Pesqueira, mas diz que nenhum dos seus alunos deu continuidade ao que aprendeu, apesar de muitos terem demonstrado bastante talento. "O problema é que toda a gente quer um emprego, mas ninguém gosta de trabalhar", afirma o artesão. E nesta arte, a capacidade de trabalho e a paciência são condições indispensáveis, segundo este artesão.

Acácio Carvalhais diz que há dez anos que anda a tentar inserir a sua empresa na Rota do Vinho do Porto, mas até agora não conseguiu nada. Mas, apesar de tudo, já conseguiu fazer com que o seu nome, a sua arte e a nossa terra viajem por todo o mundo nas garrafas de Vinho do Porto.
- Villa Régula de Setembro de 1999, texto de D. Olga Magalhães.
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Cartas de Longe: Personagens do Douro - A Ferreirinha

D.Antónia, que nasceu no concelho de Godim no ano de 1810 viveu a sua infância na casa de Travassos, vindo a falecer em 1896 na casa das Nogueiras.

Dois anos depois da sua morte foi criada a Companhia Agrícola dos Vinhos do Porto, mais conhecida por "Casa Ferreirinha".

Ao falar do Douro, há nomes que se impõem e o de D. Antónia Adelaide Ferreira é um deles, conhecida carinhosamente por "Ferreirinha" ou "Ferreirinha-da-Régua" pelas gentes da sua terra.

Seu avô, Bernardo Ferreira, que vivera no tempo de D. José I, foi obrigado, sob pena de prisão, pelo Marques de Pombal, a grangear umas terras denominadas de Montes e de Rodo, convertendo-as em bonitas quintas. Por este processo não muito ortodoxo, o Marquês de Pombal conseguiu que muitos proprietários na época aumentassem os seus bens agrícolas, beneficiando desta maneira a região do Douro.

Um dia, quando Bernardo Ferreira regressava dum passeio, parando para descansar e matar a sede ao seu cavalo na fonte de Covelinhas, foi interpelado por duas patrulhas francesas, a quem teria respondido num impecável francês. As patrulhas pensaram tratar-se de um desertor e fuzilaram de imediato o pobre senhor sem ouvirem qualquer explicação. O Douro acabava assim de perder um grande homem.

Deixou três filhos, José, o mais velho, o António, e o mais novo, o Francisco.

José Bernardo Ferreira, de grande bondade e respeito, foi o pai de D. Antónia Adelaide Ferreira, que seria mais tarde a grande administradora da maior casa agrícola do Douro.

António Bernardo Ferreira era o mais inteligente e de espírito mais comerciante. Quando ainda só se falava de um possível confronto das lutas liberais, este senhor mete-se num barco rabelo e vai até Vila Nova de Gaia, onde vende os armazéns com todo o vinho por preço inferior ao praticado na altura. Quem não gostou nada deste negócio foi o irmão mais velho, porque os bens também eram dele e não fora consultado para o efeito.

Mas o negócio estava realizado e com o produto da venda compraram todo o vinho existente no Douro, transportando-o de seguida em carros de bois e récuas para a Figueira da Foz.

Entretanto rebenta a guerra civil e os armazéns de Vila Nova de Gaia são saqueados e o vinho derramado para o rio Douro pelos soldados enlouquecidos pela guerra. Mas enquanto o Norte sofria na carne a desgraça de uma guerra civil e a barra do Douro estava bloqueada, estes senhores faziam as exportações do vinho generoso para Inglaterra pela barra da Figueira da Foz.

Fizeram um excelente negócio e a família Ferreira ficou muito mais rica e poderosa...

O outro irmão, o Francisco, embora honrado, era um pouco excêntrico. Vivia no Alentejo e só voltou ao Douro para receber a herança depois da morte trágica de seu pai.

D. Antónia Adelaide Ferreira e António Bernardo Ferreira, primos em primeiro grau e filhos de José Ferreira e António Bernardo Ferreira respectivamente, unem suas vidas pelo matrimonio e têm dois filhos, a menina Maria d'Assunção, mais tarde Condessa de Azambuja, e um rapaz a quem deram o nome do avô e do pai.

Mas só depois da morte do primeiro marido é que o espírito empreendedor desta senhora se manifesta de forma admirável, fazendo grandes plantações no Douro e obras de benfeitoria, tornando-se numa figura de primeira grandeza. Tão importante que o Duque de Saldanha, então Presidente do Conselho, pretende que o seu filho, o Conde de Saldanha, contraia matrimonio com a filha de tão distinta senhora.

D. Antónia recusa tal convite, embora se sentisse muito honrada, alegando para o efeito a tenra idade de sua filha, que só tinha onze anos, e que também gostaria que fosse ela a escolher o seu esposo. O Duque, habituado a não ser contrariado, manda os seus homens raptar, numa noite, a menina, à Casa de Travassos.

Mãe e filha, quando souberam o que lhes pretendiam fazer, fugiram, vestidas de camponesas e ajudadas por amigos, por caminhos difíceis, para Espanha e depois para Londres, onde se refugiaram. Depois da filha casada com o Conde de Azambuja, D. Antónia casa com Francisco José da Silva Torres, seu secretário.

Com pouco mais de meio século de existência e no auge das suas capacidades de administradora, D. Antónia compra todo o vinho do Douro para dessa forma ajudar os agricultores na luta contra os baixos preços praticados por consequência de uma crise de abundância.

Com todo o vinho comprado e guardado nos seus armazéns, eis que surge uma praga terrível chamada "filoxera" que destrói a quase totalidade dos vinhedos, lançando os durienses na miséria. Era horrível de se ver... Mas com o poder negocial que se lhe conhecia e com todo o vinho nos seus armazéns, D. Antónia pôde com facilidade negociar da melhor maneira com os ingleses tornando a casa agrícola Ferreira muito mais rica. Depois da catastrófica praga da filoxera, manda replantar as vinhas. Paga a construção de quilómetros de estrada e de caminho de ferro, dá trabalho a mil operários e, desta forma, cobre as suas vinte e três quintas com milhões de cepas.

Em 1880 D. Antónia ficou novamente viúva, mas mesmo assim continuou com a sua obra benfeitora, ajudando a construir os hospitais do Peso da Régua, Vila Real, Moncorvo e Lamego. Mandou também construir no Moledo um palácio para acolher o rei D. Luis, as termas, a piscina e um fabuloso parque. Ajudou a Misericórdia do Porto, ficando esta obrigada a socorrer qualquer familiar seu, se porventura a roda da vida fosse menos favorável. Criou inúmeras bolsas de estudo, entre as quais é de realçar a concedida ao engenheiro agrónomo, Dr Tobias Sequeira.

D. Antónia, que nasceu no concelho de Godim no anos de 1810, viveu sua infância na casa de Travassos, vindo a falecer em 1896 na casa das Nogueiras. Dois anos depois da sua morte foi criada a Companhia Agrícola dos Vinhos do Porto, mais conhecida por "Casa Ferreirinha".

O Douro perde assim sua rainha, contando o povo ainda hoje muitas histórias interessantes a seu respeito.
- In Villa Regula, Setembro de 1999, texto de Marco Aurélio Peixoto.

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