terça-feira, 4 de maio de 2010

As cartas de João de Araújo Correia

(Clique na imagem para ampliar)

Hoje ninguém ou quase ninguém escreve cartas, sejam de mera circunstância, afectos, negócios ou cortesia. Já lá vai o tempo em que se revelava sentidos pesares, em papel timbrado com fita preta ou se felicitava pelos sucessos pessoais. Tão pouco se escreve para corresponder a uma declaração de amor. As cartas perderam a sua função. Hoje manda-se uma pequena mensagem e, quando muito, envia-se um email. Começou uma nova era, a do correio electrónico. Pressagia-se que as cartas, como ainda as conhecemos, começam a ser uma coisa de outro mundo. Se não são já de um outro mundo, pelo menos, fazem parte de um mundo que já passou, de pessoas mais humanistas, como foram os nossos pais e avós, que gostavam de se comunicar num correio de trocas de cartas.

A.M. Pires Cabral é o autor de um interessante trabalho sobre as cartas de João de Araújo Correia. Quem o leu, entende-o como um breve estudo de introdução às cartas que o escritor escreveu a muitas das personalidades do seu tempo, amigos, leitores, conhecidos e oficiais do mesmo ofício, como foi o seu caso. Não sendo um suplemento do seu trabalho, surpreende-nos com a revelação de algumas cartas que o escritor fez questão de lhe dirigir, anotando-as com um pequeno comentário, a contextualizar os motivos de cada uma delas.

O seu trabalho e as cartas transcritas podem ser lidos no “In Memoriam de João de Araújo Coreia”, que acumula outros bons estudos e curiosas evocações pessoais, dedicados em homenagem ao escritor reguense, no ano em que se contam 25 anos após a sua morte.

Estas são algumas das cartas de João de Araújo Correia inéditas, mas ao que se sabe, fazem parte de uma vasta correspondência que escritor deixou guardada nos seus baús. Parece que aguardam quem as leia, estude, organize por temas e ideias, ou mesmo outros critérios, para que possam, muito em breve, ser publicadas em forma de livro. Alguém se encontra encarregado de realizar esse trabalho. Se o espólio do escritor guarda as cópias, os seus originais andam espalhados por múltiplos arquivos pessoais. Ninguém ignora que são incontáveis os destinatários das suas missivas e que, em alguns casos, caíram na posse de escrupulosos herdeiros, avessos a que elas percam o foro íntimo e privado.

O escritor duriense era mestre a escrever uma carta. Há quem afirme que o fazia ao “correr das teclas” da máquina de escrever. E, que nunca escrevia por escrever, como que se estivesse a cumprir uma obrigação. Como diz Pires Cabral, tinha uma verdadeira perícia no saber “bolear uma carta de maneira a que não fosse um recado seco, mas algo emocionalmente envolvido.”

Convém lembrar que João de Araújo Correia esteve, desde sempre, ligado aos bombeiros da Régua.

O escritor, como devoto admirador dos bombeiros, foi amigo de muitos directores, comandantes e dos velhos Soldados da Paz. Nunca escondeu a sua carinhosa simpatia e dedicação pelos valores do voluntariado e do associativismo. O seu pai que fora bombeiro, por algum tempo nas primeiras corporações, no tempo dos fundadores, permitiu-lhe conhecer os primórdios da instituição. Em sua casa guardou, até morrer, uma tábua dos sinais de incêndios, que o faziam saber em que rua da vila andava o fogo, quando sino da Capela do Cruzeiro dava os respectivos toques. Conviveu de perto com alguns dos bombeiros da velha guarda, com quem fez tertúlias, como os seus amigos, o artista e Comandante Afonso Soares e o delicado Lourenchinho. A convivência que deles tinha, levou-o a escrever sobre alguns dos seus personagens mais castiços. Recordou-nos do passado, figuras da estatura de Camilo Guedes, José Avelino, o Riço, o Justino Lopes Nogueira e o funeral do capelão Padre Manuel Lacerda, que não chegou a ver passar na rua…! Emocionou-se com a morte trágica do bombeiro João Figueiredo, o João dos Óculos, no incêndio da Casa Viúva Lopes, ao dedicar-lhe um soneto. Teve a sorte de frequentar o primeiro quartel e de admirar a velha estante cheia de livros, que o seu olhar de rapazinho de dez ou onze anos, nunca mais os esqueceu. Mais tarde, aceitou dar a sua colaboração no jornal da associação “Vida por Vida”, órgão oficial dos bombeiros, dirigido pelo talento literário do seu filho Camilo. Nas páginas desse extinto boletim, anos a fio, escreveu ele admiráveis crónicas, mais tarde reunidas nos livros “Pátria Pequena” e “Enfermaria do Idioma”.

João de Araújo Correia correspondeu-se, amiúde vezes, com os directores dos bombeiros da Régua. Algumas das cartas que lhes dirigiu, fomos encontrar arquivadas em velha caixas de madeira, ao lado de documentos menos valiosos, como facturas, orçamentos com previsões de grandes sonhos e obras e relatórios de contas do muito se recebeu e que se gastou.

Quando as consultamos, sentimos que o escritor nelas nos revela a sua envolvência no meio social. As suas pequenas observações da ambiente quotidiana privilegiam o valor e trabalho dos bombeiros como um exemplo de grandeza humana.

Aos seus olhos, os bombeiros são uma força invicta: “Quando tudo falece, pela palavra tudo, a longa vida dos nossos bombeiros é um sinal de força invencível. Comparo-a à vida de uma árvore, que tenha escapado à fúria dos temporais para se prolongar como símbolo de eternidade” e merecem-lhe este elogio: “A Régua, se não vegeta, é porque vai vivendo no ânimo dos seus Bombeiros.” Com uma apreciação assim, é suficiente para os bombeiros lhe ficarem, para sempre, gratos.

As cartas de João de Araújo Correia para os bombeiros da Régua, para lá do esmero e originalidade da linguagem em que são escritas, testemunham a sensibilidade do escritor, a sua urbanidade, o respeito no trato afectuoso pelos seus concidadãos, e a grande consideração que tributa à associação e ao seu corpo de bombeiros.

Propomos a leitura atenta de seis cartas das suas cartas:

PRIMEIRA CARTA:

"Exmo Senhor
Alfredo Baptista
Dig.mo Secretário da Direcção dos B. Voluntários

Eu e minha irmã solteira, Maria Ana de Araújo Correia, sócios contribuintes dessa Associação, agradecemos reconhecidos os serviços prestado pela sua ambulância no dia 18 do corrente. O que se não agradece, por falta de palavras próprias, é a solicitude com que foi executado. Há dedicações tão perfeitas, que só a gratidão silenciosa, indelevelmente guardada no coração, lhes poderá corresponder. Pertence a essa espécie, inefável por natureza, o modo como os Bombeiros procederam, transportando minha irmã, recentemente operada de fractura óssea, desde a Casa de Saúde de Lamego até o meu domicílio.
Queira V. Ex.ª aceitar os meus respeitosos cumprimentos.

Peso da Régua, 28 de Abril de 1955"

SEGUNDA CARTA:

“Peso da Régua, 4 de Agosto de 1960

Ex.mo Senhor
Dr. Júlio Vilela
Dig.mo Presidente da Direcção dos
Bombeiros Voluntários do Peso da Régua

Ex.mo Senhor e meu prezado Amigo:

Venho renovar a V. Exª o meu bem-haja pela sessão efectuada em minha honra, a 30 de Julho último, no salão nobre da associação a que V. Exª preside.
A sessão, realizada acto contínuo à minha chegada de Lisboa, onde escritores e amigos me festejaram como publicista, desvaneceu-me como reguense amigo da terra. Pude verificar o contrário do que imaginava. A Régua, pouco afecta a espiritualidades, salvou-se no meu conceito do labéu de ingrata com quem a representa, melhor ou pior, fora do limite das suas barreiras. Graças a V. Exº e outros membros da direcção, nomeadamente o Sr. Alfredo Baptista, patenteou-se a meus olhos e à consciência do resto do país a dignidade da nossa vila. Bem o estimo por mim e pelo meio em que vivo. Seria vergonhoso que o meu amor ao Douro, manifesto em cada um dos meus escritos, fosse correspondido com desdém na sua capital.
Respeitosamente me subscrevo,

De V. Exª
Admirador, patrício e amigo reconhecido”

TERCEIRA CARTA:

“Peso da Régua, 27 de Janeiro de 1970

Ex.mo Senhor
Dr. José Lopes Vieira de Castro
Dig.mo Presidente da Associação dos
Bombeiros Voluntários do Peso da Régua

Ex.mo Senhor:

Respondo ao prezado ofício de V. Ex.ª datado de 22 do corrente.
Tanto V. Ex.ª como a Ex.ma Direcção a que preside consideram imprescindível a minha colaboração do boletim VIDA POR VIDA. Não estou de acordo com V. V.Ex.as neste particular, Não falta quem escreva no boletim VIDA POR VIDA para lhe manter a boa tradição de brilho e de valor.
Concordo com V. V. Ex. as em considerar que foram alheios à actual Direcção os motivos que me afastaram do boletim VIDA POR VIDA. Nestas condições, recusar-me a colaborar de novo seria demasiada impertinência e até grosseria. Sou incapaz de praticar esses delitos perante a boa vontade que V. V. Ex. as manifestam no sentido do meu regresso ao VIDA POR VIDA – órgão de uma associação digna do meu zelo e até do meu sacrifício.
De acordo com a minha saúde, que vai sendo pouca, e com o meu vagar, quase sempre reduzido a escassos minutos, colaborarei confiado nas atenções que mereçam as minhas atenções. Assim o espero de V. Exª e de quem superintenda na redacção do jornal.
É-me grato manifestar a V. Exª, nesta oportunidade, a minha consideração e respeitosa estima.

A BEM DA HUMANIDADE”

QUARTA CARTA:

“Peso da Régua, 26 de Novembro de 1971

Exmo Senhor
Joaquim Lopes da Silva Júnior
Dig.mo Vice-Presidente da Direcção dos Bombeiros

Meu Ex.mo Amigo:

Venho agradecer-lhe o honroso convite para me associar às comemorações de novo aniversário dos nossos bombeiros. Muito obrigada por se lembrarem mim para tomar parte numa série de solenidades que inspiram grande simpatia. Sempre me comoveu, desde a minha infância, uma festa tão inefável como festa de família.
Muito gostaria de comparecer, como sócio contribuinte, no grupo dos meus consócios e perante o Corpo Activo para o saudar por mais uma vitória. Não é pequena vitória completar sem declínio 91 anos de idade.
Opõe-se ao meu desejo, neste fim de Novembro, a minha pouca saúde e outros empecilhos. Não me é possível removê-los neste momento para me sentar, como no ano passado, à mesa dos meus amigos, que são os nossos Bombeiros. Mas, para provar que lhe quero bem, não desisto de colaborar com eles no intervalo das festas.
É já um truísmo cansado isto de se dizer, a propósito dos nossos bombeiros, que são a única gente que teima em representar, neste nosso meio, um papel tão nobre, que a distingue da apatia comum. Convém, no entanto, fazer desse truísmo um motivo de orgulho. Convém repeti-lo em cada ano com tanta satisfação como desgosto. A Régua, se não vegeta, é porque vai vivendo no ânimo dos seus Bombeiros.

Cordialmente me subscrevo,

De V. Exª
Amigo certo e reconhecido”

QUINTA CARTA:

“Peso da Régua, 27 de Novembro de 1975

Ex.mo Senhor
Dias Montesinho
Bombeiros Voluntários
Peso da Régua

Ex.mo Senhor:

Na pessoa de V. Excia, digníssimo secretário da Direcção dos Bombeiros desta vila, felicito a nobilíssima corporação por mais um ano de vida. Cumpro este dever como se cumprisse um voto religioso. Quando tudo falece, pela palavra tudo, a longa vida dos nossos bombeiros é um sinal de força invencível. Comparo-a à vida de uma árvore, que tenha escapado à fúria dos temporais para se prolongar como símbolo de eternidade.
Por falta de saúde e outras atribulações, é-me impossível tomar parte nas festas comemorativas do venerável aniversário. Fico-me por casa, sem deixar de agradecer a V. Exª o honroso convite para o acompanhar na execução do programa constante do seu ofício 83/75.

De V. Exª
Cordial e respeitosamente”

SEXTA CARTA:

“13 de Julho de 1980

Ex.mo Senhor
Secretário da Direcção dos
Bombeiros do Peso da Régua

Ex.mo Senhor:

Para corresponder ao amável convite de V. Excia, para colaborar num livro comemorativo do centenário da sua Associação, tive a honra de lhe remeter, pelo Sr. António Luís Pinto, empregado da Imprensa do Douro, três originais.
Trata-se de uma crónica inédita, intitulada História dum Soneto, e de dois artiguinhos que devem ser agora republicados.
Suponho que nenhum dos meus escritos, enviados a V. Excia pelo Sr. António, destoarão da índole do livro. Todos aludem a tempos idos da Associação.
Como tenho tido medo a gralhas tipográficas, não dispensarei a revisão de provas. Podem estas ser enviadas pelo dito Sr. António Luís Pinto – seja qual for a tipografia que imprima o livro.
Com a maior estima e consideração.

At.ª e Obg.ª”

Se os bombeiros da Régua para evocar João de Araújo Correia não sabem expressar mais palavras de admiração, saudade e respeito, não se esquecem de retribuir a gratidão e a luz com os foi distinguindo ao longo de toda uma vida. Os bombeiros conhecem, como mais ninguém, esta verdade: não há no mundo exagero mais belo que a gratidão, ela é a memória do coração…!
- Peso da Régua, Abril de 2010, J. A. Almeida.

Cartas de longe: As conversas do dr. Camilo

A arte de contar do escritor, do médico-Amigo, do cidadão do Douro e da literatura portuguesa contemporânea Camilo de Araújo Correia:

Crónica - O cimo da Régua

Hoje em dia, já não se usa muito entre nós a designação toponímica de Cimo da Régua.

Como foi com ela que me criei, ainda hoje me sabe bem ouvi-la ou vê-la escrita.

O Cimo da Régua ia, mais ou menos, do Valente Novo à Casa da Fortuna, de um lado. Do outro, estendia-se da Valente Velho às lojas de ferragens do João Guerra e Domingos Figueiredo. Perpendicularmente, na Rua Serpa Pinto, chegava à loja do Antão, frente a frente com a Associação Comercial.

Pelo seu intenso e variado comércio, o Cimo da Régua era, pode dizer-se, a nossa "Baixa".

Toda a gente se via, toda a gente comprava isto e aquilo no Cimo da Régua.

O ponto nevrálgico desta nossa "Baixa" era a loja do Zé Pinto, onde se podia comprar do melhor arroz ao melhor café, do melhor papel de carta à melhor escova. Também se podiam engraixar os sapatos em cadeirão episcopal montado num pequeno estrado. O "Vintecinco", mesmo com um grãozinho na asa, engraixava a preceito, dava as novidades e vendia as cautelas delicadamente. Era na loja do Zé Pinto que se encontravam os figurões da Régua para longas cigarradas e longas conversas, a que não faltava uma pontinha de má língua local e nacional. O Zé Pinto, dentro do balcão, saía da conversa para atender os fregueses. Mesmo aos que apertava a mão com efusiva fraternidade, não deixava de apertar os preços do que viessem comprar. Implacável até ao tostão !

Fora da loja o Zé Pinto era a pessoa mais magnânima do mundo. Num passeio de amigos gostava de pagar tudo a toda a gente.

Muito perto do Zé Pinto, ficava o Quartel dos Bombeiros. Aí se reuniam estudantes, empregados e artífices. Além de mesas de jogo, havia um bilhar e uma grande estante de bons livros. As instalações eram de tal maneira exíguas que os carros se viam e desejavam para sair e entrar. Quando tocava o fogo, toda a gente que andasse por ali se juntava para assistir às manobras. O globo de entrada era tão baixo que o Justino Nogueira, garboso porta-estandarte, o partiu algumas vezes com a ponta do mastro.

- Ó Justino! Ó Justino... agacha-te! - avisavam os companheiros.

Junto dos Bombeiros ficava a oficina do João Latas. A oficina era de latoaria, mas tinha uns prateleirões até ao teto, onde adormeciam os mais variados artigos de ferragem.

Pelo seu temperamento e pela sua longa história de estranhas atitudes, o João Latas era, como então se dizia, um maduro. Foi das primeiras pessoas da Régua a lidar com automóveis, dando pelas escabrosas estradas de então grandes passeios com as pessoas gradas da terra. Chegavam a ir à Galiza o que, na altura, era longe e arriscado como ir ao fim do mundo. São muitas e pitorescas as aventuras que se contavam do Joâo Latas ao volante.

De tão maduro que era, tanto podia responder como não corresponder aos cumprimentos de quem lhe entrasse na oficina. Também podia ter toda ou nenhuma paciência com os fregueses:

- Boa tarde, senhor João!

- ... ...

- Tem desandadores assim, assim...?

- Tenho... tenho... Faltam-me ele desandadores desses! Olhe, estão lá em cima a ouvi-lo...

E apontava uma prateleira lá do alto.

- Faça o favor de me dar um...

- Disso está você bem livre! Tenho o escadote lá para trás... não estou para o ir buscar - respondia, continuando o tam-tam na lata que estava a afeiçoar.

E o freguês lá ia embora a resmungar, lamentando não ter ido ao João Latas em melhores dias...

....

- Bom dia, senhor João!

- Bom dia, ora viva o meu amigo! Que o traz por cá?

- Ando, desde o Porto, à procura de uma navalha espanhola, de duas lâminas e...

- Tenho ainda umas ou duas... - cortava o João Latas.

- Quero uma.

- Se tiver dinheiro para a levar!

- Ó senhor João... então não hei-de ter!?

- Pode não ter... pode não ter... eu lhe digo... estas navalhas são de antes da guerra... feitas as contas ao preço actual...

O João Latas caía, então, numa folha de costaneira, a fazer contas sobre contas, até afirmar, peremptório:

- A navalha está-lhe em 200$00 e pico.

- Ó senhor João... mas isso é uma fortuna!

- É pegar ou largar !
O freguês largava, com o fogo no rabo, sem a desejada navalha e sem compreender tamanho desconchavo.

O João Latas era também um caso único a mandar as contas aos seus fregueses. Tanto as mandava logo, com a solda ainda quente, como depois de muita insistência de quem lhas pedia.

Uma vez, mandou à Senhora D. Branca Martinho, por quem, como toda a gente, tinha o maior respeito, a seguinte conta:

- Um fundo novo numa cafeteira de litro - grátis.
- Um pingo numa panela - grátis.
- Soldar a asa de um funil - grátis.
- Mão nova num regador velho - grátis.
- Total: 4 serviços grátis a 2$50 - 10$00.

...Aquele Cimo da Régua... ... ...
- Por Camilo de Araújo Correia - Villa Regula de Março de 1999.
Crónica - o Douro de anteontem

O nosso rio era caudaloso no Inverno e sereno do findar da Primavera ao findar do Outono. Sempre alegre e corredio, o Douro era um potro à solta entre as margens. Vieram depois as barragens meter-lhe o freio e o bridão. Fizeram dele um amestrado e pachorrento cavalo de circo.

Muito lucramos com esta sucessão de enormes espelhos de água, permitindo um desporto e um turismo impensáveis no lombo de um potro irrequieto. Mas também muito perdemos...

O estrujão, o sável e a lampreia, de tanto marrarem contra o cimento das barragens, acabaram por desistir de procurar para a desova os rios ainda abertos às suas imperiosas condições de procriação.

Entre nós conhecido por solho, o estrujão foi-se extinguindo. Dele ficou apenas um dito, de que muita gente já não saberá a origem. Dormir como um solho quer dizer dormir profunda e serenamente. A imagem vem do tempo em que esses grandes peixes do nosso rio se deixavam levar pela corrente, muito quietos, como se dormissem à flor da água.

As lampreias também deixaram de se vender pelas ruas da Régua, oferecidas em regadores, ainda vivas, num desespero de pouca água e pouco espaço. Meu pai, médico de muitas caridades, recebia em abundância os mimos de cada época do ano. As lampreias eram, por vezes, tantas que era preciso largá-las no tanque do quintal, para lhes dar vazão. Agarrá-las era depois um alvoroço de gritinhos e fugas precipitadas.

O sável era ainda mais abundante que a lampreia. Por toda a Régua passavam homens e mulheres a apregoá-lo com dois ou três enfiados num vime. O saboroso peixe chegava a todas as casas, à boca do rico e do pobre, frito ou de escabeche.
O Dr. Júlio Vilela falava, a lamber o beiço, de um sável na telha arranjado pelos homens do rio. E descrevia:

- O sável, bem temperado com azeite, alho, pimenta e loureiro, entala-se entre duas telhas. Depois, é só ir virando sobre uma fogueirinha de lenha. Além de ficar delicioso, a espinha desembainha-se como uma espada.

O Dr. Júlio e os seus petiscos...

Um ano, o sável foi tão abundante que chegou a exaltar o homem mais sereno da Régua - José Afonso de Oliveira Soares.

Pintor e poeta de grande mérito, veio a merecer um busto no jardinzinho bem perto da casa onde morou.

Diz, assim, o pedestal:

Talento e bondade
Flor de simpatia
Que nos merecia
Esta saudade.

Também mereceu da Câmara Municipal uma segunda edição da sua História da Vila e Concelho do Peso da Régua.

Pois, um dia, o nosso sereníssimo Afonso Soares, cheio de sável até ao simpático bigode, largou de casa a esbracejar, ao ver que a esposa se preparava para lhe servir ao almoço, mais uma vez, umas postas de sável frito.

Foi do Cruzeiro para os lados da estação a remoer vinganças num grande nuvem de tabaco. Entrou na Pensão Borges e foi sentar-se à mesa mais recolhida. Logo se aproximou, todo mesureiro, o Adelino Gomes.

- Que temos para o almoço, Adelino?

- Para o senhor Soares arranjam-se umas postinhas de sável...

Ao virar do segundo para o terceiro milénio o Douro de anteontem acordou estremunhado do sono telúrico. Tomou o freio nos dentes, soltou-se da corrente e largou à desfilada pelas margens, galgando-as até onde lhe chegou o fôlego. Por quatro vezes, casas e vinhedos lhe sofreram a fúria. A Princesa do Douro ficou irreconhecível por uns dias. Mas, ao sol de Março pôde mirar-se ao espelho do seu rio, outra vez vaidosa e conformada.
- Camilo de Araújo Correia, Villa Regula de Março de 2001.
Crónica - O Pecador

O senhor Valentim era um homem triste e de poucas falas. Dizia-se, até, que fôra para aquela aldeia remoer grandes pecados da cidade.

Passava o ano em redor da vinha e da horta que granjeava com exemplar esmero. As árvores e o cão, que sempre tinha, eram a sua família e o seu único convívio.

Quando alguém o abordava ou quando aparecia na venda a fazer compras, era agradável de falas e de modos. Mas parecia sempre morto por regressar à sua tristeza, ao seu pequeno mundo de silêncio.

Ninguém lhe conheceu mulher legítima ou devaneio de ocasião. Eu próprio, quando o visitei na única doença que teve, não vi por toda a casa retrato ou sinal de família desfeita. Chamou-me a atenção uma litogravura de Nossa Senhora do Socorro colada na parede, como um selo, por cima da barra da cama.

Depois de o auscultar, olhei para a gravura e disse-lhe, sorrindo:

- Não o fazia religioso, senhor Valentim...

- E não sou. Essa gravura que aí vê comprei-a no ano em que resolvi não voltar à procissão do Socorro.

- Mas porquê? Fazia-lhe bem ir à festa, sempre se distraia um pouco...

- Eu sou enjeitado, senhor doutor; e sempre me senti enjeitado por onde andei, até me fixar aqui.

- Mas... as pessoas parecem estimá-lo...

- Estimam, sim... mas foi Nossa Senhora do Socorro que me fez sentir calor humano pela primeira vez na vida.

- Mais uma razão para não deixar de a visitar! Dizem-me que nem à Régua vai...

- Ia todos os anos... mas, a certa altura, senti que andava a pecar...

- A pecar?!

- Sim... a pecar. O senhor doutor não compreende... É preciso ser enjeitado para sentir toda a bondade e beleza de Nossa Senhora do Socorro. Muitos anos a olhei, da beira do passeio, como se visse a mãe que nunca tive. Depois... depois dei comigo a olhá-la como se ela fosse a mulher que nunca reparou em mim...

Viveu ainda muitos anos. Era um homem só, com a sua vinha, o seu cão e o seu pecado.
- Camilo de Araújo Correia - Extraído da brochura das festas de Nossa Senhora do Socorro de Agosto de 1982.

Camilo de Araújo Correia - Filho de peixe sabe nadar

Camilo de Araújo Correia, filho do escritor João de Araújo Correia, nasceu no Porto em 1925, mas vive na Régua desde os três anos. Aí fez a instrução primária na escola oficial e o 1º ciclo do liceu no extinto Colégio Reguense. Completou o curso nos liceus de Lamego e Vila Real. Frequentou depois a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, onde viria a formar-se em 1953.Enquanto estudante de Coimbra, viveu sempre em república (o Palácio da Loucura) e despertou para a literatura, colaborando nos jornais académicos da época - A via latina, A Briosa e o Pagode. Em 1961 foi mobilizado para Moçambique, integrado como anestesista no Hospital Militar 338, destinado a Porto Amélia. Ajudou a formar e a dinamizar o “Grupo Cénico de Porto Amélia”. Além de ter sido ensaiador, escreveu para um dos espectáculos daquele grupo a revista Atracou o "Troça Nova". Mantém no Arrais uma coluna semanal, desde 1978. Publicou entre outros: Histórias na Palma da Mão; Coimbra Minha; Livro de Andanças; Na Rota do Sal; Médicos, Doentes e Outras Gentes; Coimbra, Outra Vez. - Entrevista completa em: http://www.trasosmontes.com/eitofora/numero11/entrevista2.html

(Transferência de arquivos do sitio "Peso da Régua" que será desativado em breve)

O Retrato de D. Luís I

Aquele retrato emoldurado do Rei D. Luís, que sobressai na penumbra de uma parede da sala museu dos bombeiros da Régua, só pode causar algum mistério e uma certa admiração aos que desconhecem os méritos e a grandeza da associação.

O retrato do rei, de meia-idade, de olhar expressivo, misto de serenidade e bondade, faz parte da galeria de retratos de ilustres benfeitores e beneméritos da associação.

A razão para o rei figurar entre importantes personalidades da sociedade reguense é simples. Os primeiros bombeiros e fundadores da Associação deram a El- Rei D. Luís o título de sócio e Presidente Honorário, como manifestação da sua gratidão pelo reconhecimento de Sua Majestade à associação com a atribuição de uma das maiores distinções honoríficas: o titulo de Real.

Por carta régia, assinada em 13 de Junho de 1882, o Rei D. Luís, atribuiu à AHBV do Peso da Régua o título de Real, nestes termos:

“Dom Luís por graça de Deus Rei de Portugal e dos Algarves faço saber aos que lerem esta minha carta que atendendo ao que me representou a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Regoa e querendo dar-lhe público testemunho do apreço de que tenho a mesma Associação pelos seus úteis e filantrópicos fins a que se destina. Hei por bem conceder-lhe o título de REAL, podendo assim de ora em diante intitular-se Real Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Regoa”.

Uma associação que ostenta o retrato de um rei entre os seus maiores benfeitores revela serem radiosos os seus primórdios e estar repleto de glórias o seu passado. Fundados em 1880, os bombeiros da Régua nasceram da ideia de um grupo de 26 homens generosos, liderados pelo escrivão de direito Manuel Maria de Magalhães, que do nada, sem grandes apoios, souberam criar um corpo de bombeiros voluntários, inspirado na tradição humanista. Esse ideal vingou, cresceu e tornou-se cada vez maior nos nossos dias, reinventando-se nos seus nobres objectivos para conquistar o futuro. Por isso, o retrato de D. Luís tem um valor simbólico, ao fazer evocar o génio e a determinação dos fundadores da associação.

Em 28 de Novembro de 1882, a Associação comemorava o 2º aniversário da “instalação”. A organização estava no princípio. Eram dados os primeiros passos para afirmação de uma organização sólida na segurança e protecção de bens e vidas e que servisse para engrandecimento, bem-estar social, económico e cultural dos cidadãos reguenses. Os seus fundadores, homens de grande valia e formação moral, projectaram-na para servir os seus ideais humanistas. Só assim se explica que, quase desde a nascença, tenha alcançado o reconhecimento pelo poder público de um serviço de utilidade pública.

Não admira que a primeira grande distinção nacional tenha deixado regozijados o seu director, o Comandante Manuel Maria de Magalhães e os associados mais dinâmicos. O título de Real Associação era um sinal de prestígio para todos os bombeiros. Até àquela data, era das poucas associações humanitárias que podiam orgulhar-se de contar no seu historial, uma distinção honorífica tão valiosa.

Este homens, entendendo o seu significado e a sua importância para a afirmação dos bombeiros, querendo engrandecer as comemorações desse aniversário, decidiram organizar uma festa de agradecimento a Sua Majestade D. Luís I. Pretendiam demonstrar-lhe não só a gratidão pelo louvor concedido, mas também fazer em sua honra uma cerimónia de inauguração de um “retrato de sua Majestade, o Senhor El-Rei D. Luís I, Presidente Honorário da Associação.”

O Rei D. Luís esteve oficialmente, por duas vezes, na Régua. A primeira foi em 1872, ainda a corporação dos bombeiros não tinha sido fundada. O monarca deslocou-se para se inteirar do início dos trabalhos de construção da ponte rodoviária que ia ligar a Régua a Lamego. Sensível às causas sociais, ao tomar conhecimento que não havia hospital na localidade que visitava, apelou a que se criasse um, para o que fez, de imediato, uma contribuição monetária no valor de 500 mil réis. Os reguenses fizeram-lhe a vontade. Em pouco tempo, fundaram numa velha casa da Rua de Medreiros, um hospital, ao qual deram o nome do rei: Hospital D. Luís I. Mais tarde, em 1889, esse hospital foi transferido para a Casa Grande, um velho solar brasonado, onde funcionou até 1957, ano em que passou a ocupar um edifício construído de raiz, na Praça Delfim Ferreira. Apesar de ter cada vez menos valências e serviços, o velho hospital público, mantém-se em funcionamento, se bem que integrado no Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto-Douro.

Em 1881, o Rei D. Luís voltou a visitar à Régua, deslocando-se num comboio especial, numa viagem pela linha do Douro, acabada de construir, que fez a partir da estação do Porto. Chegado com a sua comitiva à estação da Régua, o recém-criado corpo de bombeiros da Régua esperava Sua Majestade com uma guarda de honra, ao qual apresentou continência, acompanhando-o em cortejo pelas ruas principais da vila, até aos Paços do Concelho.

Nessa segunda visita, Sua Majestade travou conhecimento com o Comandante Manuel Maria de Magalhães com quem ficou a manter uma relação de amizade. Isto é o que nos revela na crónica “Bons e Maus Exemplos”, o escritor João de Araújo Correia: “Contavam os antigos reguenses que o Rei D. Luís, dando o título de Real à associação dos nossos bombeiros, em 1882, se relacionou, amistosamente, com o fundador e primeiro comandante da corporação - Manuel Maria de Magalhães.

Contavam também que D. Luís se carteava com ele. Apesar de ser rei, não se desdenhava corresponder-se com um escrivão. Creio que foi escrivão o comandante Manuel Maria de Magalhães.”
(Clique nas imagens acima para ampliar)

Ao tomarmos conhecimento destes pormenores singulares, o retrato de D. Luís I, se já tinha elevado valor histórico, associado ao primeiro reconhecimento da associação pelos poderes públicos da nação, adquire maior significado como motivo orgulho para os seus activos quadros dirigentes, comando e corpo de bombeiros, que nunca podem esquecer um cidadão exemplar como foi o seu fundador e Comandante Manuel Maria de Magalhães.
- Peso da Régua, Maio de 2010, J. A. Almeida.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Cartas de longe: Lembrando o cidadão e o jornalista Jaime Ferraz Rodrigues Gabão

 ACHEGAS PARA A HISTÓRIA DURIENSE
Quase em simultãneo, e, já lá vão nove anos, morreram nesta cidade, dois excelentes e prestimosos colaboradores do "Notícias do Douro" : - JAIME FERRAZ GABÃO e Engº. Técnico Agrário, JOSÉ CASTANHEIRA PELOTAS.

O primeiro colaborador antiquíssimo, vinha já dos primórdios deste semanário, mas recomeçou com mais assíduidade na Direcção do nosso querido e saudoso Amigo, NOGUEIRA GOMES, então Provedor do velho hospital, sediado no Peso.

Nesse recuado tempo, o nosso JAIME FERRAZ, escrevia muito, sobretudo sobre o Sport Club da Régua, tendo posteriormente ocupado um lugar de destaque nos corpos directivos. Foi funcionário do Posto Vitivínicula da Régua, como então se designava, sob a égide de um competentíssimo Engº. Agrónomo: - TABORDA DE VASCONCELOS. Todavia na ânsia legitíma de dar melhores condições de vida a seu agregado familiar, com a anuência de outro Engº. Agrónomo, GUEDES DE PAIVA, rumou às terras de Moçambique (Porto Amélia, hoje Pemba), e, por lá se conservou alguns anos. Um dia encontramo-nos casualmente na Avenida dos Aliados, aqui no Porto, ele vinha em gozo de férias, mas o tema da nossa conversa foi inevitavelmente a Régua e as suas gentes, que tanto idolatrava.

Com o 25 de Abril, após a "descolonização exemplar", como ele gostava de referir este termo nos seus artigos, recomeçou a sua colaboração sempre oportuna, neste semanário, como aliás também o fazia de Moçambique, de quando em vez, sobretudo quando as saudades da Terra se faziam sentir...e talvez por este seu apego notável ao "Notícias do Douro", ocupou o "topo" da pirâmide: - Foi nomeado seu Director.

Nos últimos tempos da sua existência, de passagem pela Régua, estivemos no seu "escritório de sempre": - A oficina deste semanário na rua da Ferreirinha. Notei seu semblante muito carregado, mas sempre com a caneta e o bloco (as suas armas) prontas para disparar, e, assim dar começo a mais uma crónica jornalística, mas...suas mãos, já trémulas, não iam ao encontro do seu grande sonho de sempre: - A Notícia Aqui e Agora, para o semanário que ele devotadamente serviu ao longo de algumas décadas: O SEU NOTÍCIAS DO DOURO.

OBRIGADO, JAIME.
- Carlos Ruela - Porto/Setembro/2001

Meu à parte: - Pouco convívi ao longo do tempo com esta personalidade típica da Régua e da inesquecível Rádio Alto Douro que dá pelo nome de Carlos Ruela.

A vida traçou rumos diferentes para todos nós. Mas, em minha infância, antes de partir no navio "Pátria" (1957) para Moçambique (Porto Amélia) com meus Pais, onde estivesse e chegassem as ondas dessa Rádio, também chegava o entoar dinâmico, exclusivo do Carlos Ruela... Não tinha paralelo em dedicação nem concorrente que o suplantasse nessa época de tecnologia antiquada para os padrões de hoje (com as inovações tecnológicas atuais, é fácil ser locutor de rádio). Sua voz era a verdade sem edições e encenações, do amor à Rádio Alto Douro.

Porque aprendi a admirá-lo através de minha infância e de meu saudoso Pai, tomei a liberdade de transcrever para a home "Régua" este "Recordando" enviado por meu Irmão Júlio Gabão e que inícia espaço dedicado ao, acima de tudo, jornalista JAIME FERRAZ RODRIGUES GABÃO.

Obrigado CARLOS RUELA... Lamentávelmente a memória dos homens de agora é curta. Mas a nossa não !
- Jaime Luis Gabão - Março de 2002.

O Jaime

Com a chegada do Outono, das primeiras chuvas e de uma friagem a despertar as alergias, inicio o meu luto do Verão. Atenuo a saudade nos arquivos da minha memória e atraco ou aterro nos lugares do sol. Deixem-me aterrar, por hoje, no Moçambique inesquecível.

Era um fim de tarde de um Março de sessenta e oito. O velho DAKOTA da DETA, com óleo a espirrar nos parafusos das asas, vindo de Nampula, fazia a aproximação a Porto Amélia, cidadezinha plantada numa escarpa sobranceira ao Índico. Desenhou um arco para apreciar a baía e, desacelerando sobre o Paquitequete, apontou ao Aeroporto, designação pomposa para um casarão ao lado (e mais ou menos a meio) de uma fita vermelha de terra batida, qual picada de capim aparado. Descemos por um escadote que me lembrou aqueles que, antigamente, se encostavam aos carros de bois para levar os almudes até às pipas. A noite caía com um pôr do sol arrebatador sobre as águas de Wimbe. Em África os dias acordam cedo e esplendorosos como um grito de felicidade e adormecem envoltos numa plangência que angustia as almas mais empedernidas. Cem anos que eu durasse nunca - mas mesmo nunca - esqueceria aqueles anoiteceres com os chiricos e os barucos silenciados pelo concerto das cigarras e uma ferida de sangue inocente a despedir-se do mundo.

Eu viera à frente, feito explorador de logística, na companhia do Pires, furriel alentejano, esfuziante e solidário, sem futurar (mos) a sua morte numa curva da Serra do Mapé, nas terras de Macomia, deixando-me, estupidificado, com o seu fio de ouro no bolso que, numa trágica premonição, me confiara. O resto da tralha e do pessoal chegaria no Pátria(*), aproveitando a sua passagem por Nacala, em rota, desde Lisboa, carregado com mais um contingente.

Foi em Porto Amélia - esqueçamos más recordações - que conheci um dos grandes Amigos da minha vida: o JAIME. Para os leitores deste semanário, a quem devotou o melhor da sua colaboração, e dos reguenses em geral, a quem prestou variados préstimos: o JAIME FERRAZ GABÃO. Labutava nos escritórios de uma empresa algodoeira - a Sagal - e como correspondente, para toda a província de Cabo Delgado, do DIÁRIO (de Lourenço Marques). Com ele reencontrei as minhas (as nossas) raízes e mutuamente nos amparamos nas saudades delas. Saído da Capital Vinhateira em busca de uma vida mais desafogada... Pertencia aos cabouqueiros de África que se misturavam com as raças e as etnias numa confraternização de que só duvidavam os que nunca tiveram a oportunidade de serem felizes naquelas paragens. Não me admirava, assim, que, mesmo com a lembrança dos socalcos, ele desejasse morrer na terra onde readquiria a dignidade, acariciado pelas manhãs claras e as noites cacimbadas.

Passamos horas, nas cadeiras da pensão Miramar, ouvindo "estórias" das savanas, bebemos cerveja no Marítimo e café no Pólo Sul derramando o olhar para o pequeno cais à espera de um dia de "S. Vapor", vimos "E o Vento Tudo Levou" no cinema-barracão, subimos e descemos as escadinhas que ligavam a parte alta à Jerônimo Romero do comércio, abriu-me a porta e sentou-me à mesa de sua casa sem horas nem lugares marcados, relacionou-me na sociedade civil e facilitou-me as páginas do seu jornal sem uma censura ou "sugestão".

Mal sabia ele que haveria de acabar os seus dias na terra que o viu nascer, obrigado ao regresso por uma descolonização exemplar, com os olhos húmidos pelas lembranças dos corais da praia dos coqueiros e dos campos de algodão.

Quando vou ao Peso(**) visitá-lo, trago comigo o seu sorriso moçambicano.
- Por M. Nogueira Borges - In Arrais de Novembro de 2003

 (*) Pátria - Navio de passageiros português da antiga Companhia Colonial de Navegação e que fazia o transporte de cargas e passageiros entre o continente europeu (Lisboa) e a costa Africana (antigas colônias de Portugal).
(**) Peso - Parte alta da cidade de Peso da Régua. Ali se localiza o cemitério onde Jaime Ferraz Rodrigues Gabão está sepultado.

(Transferência de arquivos do sitio "Peso da Régua" que será desativado em breve)