sexta-feira, 9 de abril de 2010

O Quartel do Cimo da Régua

(Clique na imagem para ampliar. Peso da Régua - Rua dos Camilos - anos 30)

Dedicado à empresária reguense viúva Vilela.

Não foi no volver das páginas dos álbuns da associação que encontrei a fotografia mais desejada, a do quartel dos bombeiros da Régua, quando ainda era na Rua dos Camilos ou, como os antigos diziam, no Cimo da Régua.

Tenho a certeza de que não consegui a fotografia ideal, a que me mostrasse todos os pedacinhos das memórias dos bombeiros desse tempo, mais ou menos intactas, que me permitissem um reencontro com o seu passado. Apesar de tudo, tive a felicidade de descobrir uma reproduzida na revista “Ilustração Portuguesa”, que me permite ver ao longe, com a Rua dos Camilos em festa, a entrada do quartel, no dia em que foi inaugurado: 5 de Dezembro de 1923.

Com pompa e circunstância, no dia em que a Associação festejava solenemente o seu 43º aniversário da sua fundação, Artur Gonçalves Martinho, Presidente da Direcção, figura distinta da sociedade reguense, casado com a benemérita D. Branca Martinho - a quem nesse dia se inaugurava o seu retrato de Presidente Honorária - e o comandante Camilo Guedes Castelo Branco, reconhecido poeta do nosso meio, inauguraram solenemente o novo quartel, que se situava no lugar mais central da Régua.

Em 1923, os bombeiros da Régua fechavam um ciclo sua história. Para trás, ficavam os tempos gloriosos dos heróicos fundadores, de grandes bombeiros como Manuel Maria de Magalhães, Joaquim Sousa Pinto, Afonso Soares, Joaquim Maria Leite e muitos outros, que nunca esmoreceram de levar o seu sonho até ao fim, com paixão, coragem e determinação perante todos os obstáculos, para que a Régua tivesse também uma das primeiras corporações de bombeiros voluntários. Pela última vez, fechavam as portas do quartel do Largo dos Aviadores, o primeiro, que abrigou os primeiros bombeiros da Régua e guardou as duas primeiras bombas de incêndio, oferecidas pela Câmara Municipal, e o pouco material com que deram início à sua missão.

Aquela casa, era muito mais que um quartel, era um ponto de encontro da sociedade reguense, onde se encontravam todas as pessoas. As salas amplas do primeiro andar eram assiduamente frequentadas pelos associados, amigos e conhecidos. Para muitos, serviram para fazer reuniões, amenas cavaqueiras para discutir o quotidiano, os negócios e as intrigas da política que dividia regeneradores e republicanos, enquanto outros preferiam entregar-se à diversão do jogo, das cartas, xadrez, quino e do dominó. Outros deleitavam-se na leitura dos jornais, nacionais e locais e os interessados na leitura do “Bombeiro”, de uma enciclopédia e dos romances de escritores na moda, acondicionados numa velha e larga estante. Os reguenses encontravam ali uma biblioteca pública, à medida dos seus gostos e necessidades culturais.
(Clique na imagem para ampliar)

A casa que albergou o primeiro quartel ainda resiste ao tempo, mas o seu estado de conservação não lhe augura grande futuro. A ruína apercebe-se no telhado e nas madeiras das portas e janelas, não sendo de estranhar que o seu destino esteja marcado em ambicioso projecto de arquitectura. É uma preciosa memória viva da cidade que caso seja demolida vai levar na poeira dos escombros os restos do passado dos primeiros bombeiros. Se ninguém tiver o cuidado de a preservar ou, de pelo menos, assinalar nela a existência do primeiro quartel dos bombeiros, para memória futura, apenas ficam as velhas fotografias, a amarelecer no tempo, e as recordações do escritor João de Araújo Correia, vividas quando menino, o frequentava com o seu pai, um bombeiro que fez parte das primeiras corporações. O escritor recordou as suas visitas na fantástica crónica “Uma velha Estante”: “Quando o quartel dos bombeiros funcionou modestamente numa casa situada no actual Largo dos Aviadores, frequentei-lhe as salas recreativas com o meu pai - era eu rapazinho.
Na sala dos jogos, inofensivos jogos de cartas, dominó e quino, lembro-me de ver, encostada a uma parede, uma alta e larga estante de madeira rica, toda envidraçada e repleta de livros.
Creio que ninguém lhes tocava. Quem se entretinha com a sueca, o dominó e o quino talvez nem reparasse na volumosa estante, abarrotada de livros.
Reparava eu... E o meu regalo seria abrir aquela estante e colher de lá um livro para o folhear e ler antes de me deitar. Assim eu o percebesse. Era ainda tão novo… Teria onze, doze anos.
Os meus encantos, naquele clube, eram aquela estante. Mas, sempre fechada e muda. Até que uma noite, e em noites seguidas, a vi abrir. Um senhor, que usava óculos, ia retirando e colocando de novo, no seu lugar, rimas de volumes. Arrecadava-os depois de lhes escriturar os títulos num grande livro de papel almaço.
Livros que nunca mais esqueci. Quando, depois de instalados os bombeiros no quartel novo, alguém me disse que todos esses volumes estavam à matroca, empilhados num monte, sem o mínimo vislumbre de arrumação, caiu-me a alma aos pés. E assim, esteve, de rastos uma porção de anos.
Até que ontem, dia que marquei com uma pedra, vim a saber que os livros já estão arrumadinhos na estante – bela estante de mogno.”

Com a abertura do quartel na Rua dos Camilos, os bombeiros ainda ficavam mal aquartelados, sem as condições merecidas para o movimento dos serviços que prestavam à comunidade. Como a fotografia nos deixa ver, a casa era velha e modesta e nunca seria o local ideal, nem desejado para os bombeiros instalarem o seu quartel. A única razão que fez mudar de residência deve ter sido o aumento da renda no edifício do Largo dos Aviadores.

Nos anos 20, os bombeiros da Régua viviam de fracos recursos, tinham pouco apoio da câmara e sobreviviam da generosidade dos benfeitores. Tendo necessidade de reduzir algumas despesas, encontraram uma oportunidade de se instalarem graciosamente numa casa pertencente à empresária e abastada viúva Vilela – de nome completo Margarida Gomes Vilela - uma “reguense castiça, de palavra rude e alma branca, que morreu com 93 anos de idade(…) estabelecida na Régua com uma prestimosa aquilaria marcou uma época servindo os transportes públicos com uma frota de carros, tirados por cavalos que adquiria nas famosas feiras de Salamanca(…), os quais serviram no fim do século transportaram o Rei D. Luís quando visitou a Régua(…) e que pela sua bondade prestou muitos serviços gratuitos à Associação, emprestando cavalos e cocheiros que puxavam o Carro Grande, para onde as chamas irrompessem”. Esta anónima benemérita dos bombeiros – a quem nunca foi prestado póstumo reconhecimento - ao tomar conhecimento das suas dificuldades, prontamente emprestou a sua casa para servir de quartel.

Quem conheceu este quartel dos bombeiros e, algumas vezes, o frequentou foi o Dr. Camilo de Araújo Correia, antigo presidente da direcção. Com o seu fino humor descreveu-o uma das suas crónicas assim: “velho, modesto e pequeno, mas muito querido dos seus frequentadores e visitantes fortuitos, sem falar do rapazio, incapaz de passar adiante sem se deslumbrar com o pronto-socorro de cadeirinha e com a ambulância, uma caranguejola esquinuda, de um branco duvidoso e um conforto ainda mais duvidoso… Os carros entravam à justa na porta estreita, sempre com grande vozearia de indicações e avisos."

Os bombeiros desse tempo muito tiveram de improvisar para dar conta do seu trabalho. As condições precárias impunham voos arrojados para a sua solução. Nasceu o sonho da construção de quartel de raiz. A Direcção e Comando procuram apoios na sociedade e na Câmara Municipal. Em 1930 conseguiram uma parcela de terreno para edificarem o novo quartel. Elaborado o projecto pelo consagrado arquitecto portuense Oliveira Ferreira, é iniciada a obra no ano seguinte, mas o empreiteiro, por falta de dinheiro, abandona-a inacabada. Assim ficou a obra até 1954, ano em que a direcção do Dr. Júlio Vilela mete mãos à obra para a acabar. Em 1955, os bombeiros da Régua inauguram o seu novo quartel, onde permanecem até aos dias de hoje.

Há alguns anos, a casa que serviu de quartel na Rua dos Camilos foi demolida. Em seu lugar ergueu-se um edifício de rendimento (onde loja da Singer). Os seus vestígios desapareceram, nem um ficou. Desse tempo, os únicos sinais da actividade humanitária no lugar, que restam são os breves traços e as pinceladas do ambiente circundante, que o Dr. Camilo de Araújo Correia inseriu na sua crónica “O Cimo da Régua”: “Hoje em dia, já não se usa muito entre nós a designação toponímica de Cimo da Régua. Como foi com ela que me criei, ainda hoje me sabe bem ouvi-la ou vê-la escrita.
O Cimo da Régua ia, mais ou menos, do Valente Novo à Casa da Fortuna, de um lado. Do outro, estendia-se do Valente ás lojas de ferragens do João Guerra e Domingos Figueiredo. Perpendicularmente, na rua Serpa Pinto, chegava à loja do Antão, frente a frente com a Associação Comercial.
Pelo seu intenso e variado comércio, o Cimo da Régua era, pode dizer-se, a nossa “Baixa”. Toda a gente se via, toda a gente comprava isto e aquilo no Cimo da Régua. O ponto nevrálgico desta nossa “Baixa” era a loja do Zé Pinto, onde se podia comprar do melhor arroz ao melhor café, do melhor papel de carta à melhor escova. Também se podia engraxar os sapatos em cadeirão episcopal montado num pequeno estrado. O “Vintecinco”, mesmo com um grãozinho na asa, engraxava a preceito, dava novidades e vendia cautelas delicadamente.
(…)
Muito perto do Zé Pinto ficava o Quartel dos Bombeiros. Aí se reuniam estudantes, empregados e artífices. Além de mesas de jogo, havia um bilhar e uma grande estante de livros. As instalações eram de tal maneira exíguas que os carros se viam e desejavam para sair e entrar. Quando tocava a fogo, toda a gente que andasse por ali se juntava para assistir às manobras. O globo da entrada era tão baixo que o Justino Nogueira, garboso porta-estandarte, o partiu algumas vezes com a ponta do mastro.
- Ó Justino! Ó Justino… agacha-te! -avisavam os companheiros.
Junto dos Bombeiros ficava a oficina do João Latas.”
Como mais ninguém o soube fazer, Camilo de Araújo Correia deixou-nos uma saudosa memória do quartel dos bombeiros…! Ele que faz parte das recordações dos mais velhos e dos que apreciavam fazer as compras nas lojas e mercearias tradicionais no Cimo da Régua.
- Peso da Régua, Abril de 2010, J. A. Almeida.

sábado, 3 de abril de 2010

No Centenário da República - Um fogo esquecido no Asilo José Vasques

O incêndio que deflagrou no Asilo José Vasques Osório, uma casa de beneficência às crianças pobres e desprotegidas, na madrugada do dia 14 de Fevereiro de 1919, é um dos que merece especial relevo na história dos bombeiros da Régua, pelo heroísmo e a abnegação revelada pelos seus homens.

Este fogo esquecido está apagado nas memórias das pessoas. A Régua ainda não fez a história do acontecimento que lhe deu origem. Pouco se sabe e, esse pouco, encontra-se apenas relatado nas notícias dos jornais da época e nas evocações dos bombeiros.

A sua origem do fogo no Asilo José Vasques Osório está relacionada com um acontecimento que marcou a vida política nacional após o derrube da Monarquia. Depois de 5 de Outubro de 1910, os monárquicos procuraram restaurar a Monarquia, através de movimentos de insurreição, em incursões monárquicas, para devolverem o trono ao Rei D. Manuel.

Na última incursão monárquica, o capitão Paiva Couceiro declarou a restauração da Monarquia, no dia 19 de Janeiro de 1919, na cidade do Porto. Aí nomeou um governo provisório que, durante 25 dias, vai administrar o norte do país, num regime efémero conhecido por “Monarquia do Norte” ou como os republicanos lhe chamavam o “Reino da Traulitânia”.

O triunfo vitorioso das forças monárquicas – chamados de trauliteiros ou talassas - depressa se alargou às principais cidades e vilas do norte do país. Em quase todas derrubam o regime republicano, pela força das armas. Num interessante estudo dessa época, a historiadora Helena Moreira da Silva, dá conta que “em várias localidades esse acontecimento é assinalado com o hastear de bandeiras azuis e brancas nos mastros dos edifícios públicos, o Hino da Carta, o repicar dos sinos, procissões e com o enceramento de serviços públicos…As populações davam largas ao seu contentamento, rebentando foguetes e prendendo democratas republicanos da terra. Convictos de que com a Monarquia seria possível ter novamente a paz e prosperidade…”

A vila Régua foi uma das tomadas pelas tropas monárquicas. Conseguiram sem grande oposição mas com atrocidades, perseguições e detenções a algumas pessoas partidárias de regime republicano, restaurar a Monarquia, ao içarem nos mastros do edifício dos paços do concelho, uma bandeira azul e branca.
Os excessos dos trauliteiros contra algumas pessoas são conhecidos. Quem quiser saber mais pode ler, nos jornais da época, um depoimento impressionante do Sr. Joaquim Pinto Barbosa, preso nos arredores da Régua e barbaramente agredido. Na Régua, para garantir o poder, mantiveram um improvisado quartel-general numas das dependências do Asilo José Vasques Osório, por ficar no centro da vila e perto da estação dos caminhos-de-ferro.

Esta situação manteve-se por alguns dias, até o legítimo governo da República reagir e mandar esmagar este movimento monárquico através de uma grande ofensiva militar para restabelecer a ordem pública nas cidades e nas vilas dominadas pelos monárquicos

Na vila da Régua, as operações de combate as tropas monárquicas aconteceram durante o dia 13 de Fevereiro de 1919 e prolongaram-se pela madrugada do dia seguinte.

A população reguense passou momentos de inquietude e de alarme. Os revoltosos não se renderam e dificultaram, com a destruição do tabuleiro da ponte rodoviária, o acesso de Lamego à Régua. Travou-se, então, um combate com um forte tiroteio de artilharia. As tropas monárquicas encontravam-se entrincheiradas no Asilo José Vasques Osório. Na margem esquerda do rio, estavam colocados os militares da 2ª Divisão do Exército, comandados pelo General Abel Hipólito, para atacarem e derrotarem os revoltosos. Pela madrugada, estes davam-se por vencidos e debandaram para a estação para fugirem num comboio que se encontrava da linha do Corgo, em direcção a Vila Real.

Mas antes, descontrolados com a situação, mostravam a sua face mais violenta e trágica, ao cometerem atrocidades. Assim, para que as suas armas de artilharia e granadas não caíssem nas mãos dos republicanos, lançavam violento fogo ao Asilo e na estação do caminho-de-ferro, provocavam danos no edifício e a destruição dos

O fogo destruiu um edifício simbólico da vila, que havia sido doado por um ilustre benemérito, para acolhimento e educação de crianças pobres e abandonadas. Os seus prejuízos materiais foram incalculáveis A tragédia só não foi maior porque os bombeiros saíram aos primeiros sinais de incêndio, badalados pelo velho o sino da Capela do Cruzeiro. Não vacilaram nem temeram com medo de serem atingidos no combate das tropas, a única preocupação foi de combater o fogo, com zelo e coragem, impedindo as chamas de atingir o material de guerra.

Em 1919, os bombeiros da Régua entravam na história de um conturbado acontecimento da primeira república, que sem se envolverem como protagonistas activos, acabavam como anónimos heróis. Ignorando a realidade histórica associada a este fogo os bombeiros, como uma organização humanitária e da paz, souberam cumprir no melhor profissionalismo a sua missão de socorro e protecção de vidas e bens.
(Clique nas imagens acima para ampliar)

Evidenciando a valentia dos briosos bombeiros, Gaspar da Silva Monteiro, um dos fundadores da Associação, lembrava numa carta, datada de 20 de Agosto de 1928, dirigida ao Presidente do Ministério, o acontecimento assim:

“Na noite de 13 para 14 de Fevereiro de 1919, quando as forças realistas, que operava neste sítios, abandonaram o grande edifício do Asilo José Vasques Osório, onde tinham estabelecido quartel e a cujas dependências puseram fogo, a corporação dos bombeiros da Régua, não olhando aos perigos que corria de ser alcançada pelas balas trocadas entre essas tropas e aquelas que, lado oposto ao rio, se estavam combatendo, acorreu destemidamente a prestar serviços, evitando que fosse totalmente queimado aquele estabelecimento de caridade que dava abrigo, pão e ensino a dezenas de crianças pobres.”

Quando no centenário da implantação da República se evoca o passado dos bombeiros da Régua perspectiva-se o futuro, com a esperança que, pelos valores da igualdade, solidariedade e fraternidade, se continue a promover uma sociedade mais justa

Na verdade, o Asilo José Vasques Osório volta a renascer das cinzas daquele fogo, devido à generosidade humana, que acreditou sempre nesses ideais, para que continuasse a servir até aos nossos dias, como uma “Casa da Criança”.
- Peso da Régua, Abril de 2010, J. A. Almeida.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

SELVA EM PAZ - Capítulos III e IV

(Clique na imagem para ampliar. Imagem recolhida da net)


Capítulo III - Distinguem-se as feições dos homens ao redor do pequeno fogo em que se cozem as batatas para acompanhar as sardinhas de conserva. A lua vai nascendo encantada, mas medrosa. A vegetação é uma copa interminável onde os restos do sol se espalham como pinceladas de sangue de um artista desesperado, cinzas de um incêndio da imortalidade dos tempos. O escurecer, mais do que triste, é embriagador, algo insidioso, a proclama dum sufoco qual mortalha de uma inocência, um peso de agonia. De quando em quando, relâmpagos riscam o céu, grafites rápidos e secos descobrindo a prenhez das nuvens esbranquiçadas, os trovões ribombam quais monstros pré-históricos; é um tolher de espanto, um esmagamento que nos pendura nos fios da timidez. Sobe até o cimo da achada uma viração fria que revolve a folhagem e o pó como se aquela nascesse debaixo das nossas botas. Há quem sobreponha aos dolmens as esverdeadas camisolas de gola alta, se enrole apressadamente aos mosquiteiros e aos sacos de dormir. Há uma soledade de túmulo. Ouvem-se algumas pieiras de brônquios tabaqueiros ou debilitados pelo relento. As estrelas, pirilampos minúsculos, chegam aos poucos, a justificar a noite, mas os prenúncios de chuva não se concretizam. Para sul, uma queimada enorme elevasse num triunfo vermelho, aparentemente descontrolada, a toada das cigarras espalha lembranças de uma inocência perdida.

Come-se para enganar, um mastigar silencioso, uma formalidade obrigatória. Na contraluz, as gargantas têm os movimentos dos engolires contrafeitos. Há assobios, por entre cigarros, no canto do alpendre; olhares de vidro reflectidos nas brasas, esperando que elas se extingam; um portátil sintonizado no emissor regional do Rádio Clube de Moçambique a responder aos discos pedidos. Então ele, o Alferes desta história, sem nada para dizer ou fingir alentos, olha para a patina do horizonte onde umas nuvens metalizadas dão uma miragem de água; pergunta por que é o mundo assim, vigiando-se o que pertence a todos, como se houvesse feudos de teimosias, ganâncias de posses, disputas de glórias feitas razões de sobrevivência; pensa que todas as guerras são forjadas por eunucos esquizofrênicos, ditadores assexuados, estupores purulentos; e nós – nós que obedecemos - balimos, feitos carneiros do pasto, mas não gritamos como gente nem desfazemos essa escória do mando para vivermos livres e em paz.

Um cacimbo húmido começa a envolver a terra, uma espécie de moinha leitosa que embebe os camuflados. O pessoal está sujo, adormece com as côdeas, o óleo dos suores e o chumbo do cansaço. Ouvem-se, distantes, tambores de batuque: talvez se encomendem aos cazumbiris, se comemore a desfloração de uma cafusa, se implore Maomé numa morte desconsolada ou se espantem os espíritos de doença maligna. O piar ávido de um milhano lacera a noite e um calafrio estremece os corpos.

Enquanto os homens já dormem, ele sonha com um mundo onde o amor não seja uma paga mas uma dádiva, os barulhos das lutas sejam substituídos pelos esvoaçar das aves entre palmeiras, todos os homens caminhem de caras levantadas sem receios de serem cuspidos, as vinganças e as perseguições não existam nem nos corações nem nos dicionários. A lua, de um ouro de poesia, de paz e de reconciliação, beija-lhe o rosto.

Recosta-se no assento do Unimog. Fuma LM. Não tem sono. Manda acomodar os plantões. Ele substituí-los-á na atalaia. Agarra-se ao volante e imagina-o leme de avião. Puxa-o para si. A viatura levanta como um condor. Voa silenciosa sobre o mato, de bico-motor apontado à fita de zinco tangente à Terra, até pousar, com a leveza de uma pena, num quintal onde uma Mãe, de preto vestida, espera de braços e sorriso abertos.

Capítulo IV - Andávamos há cinco horas. O calor apertava, criando riachos aquosos. Dois furos, quase seguidos, arreliaram-nos a paciência. Os solavancos na picada obrigavam-nos a pulos marsupiais. Tínhamos que estar no acampamento antes da lua nascer. Lá arranjaríamos um pisteiro. Um javali destrambelhado obrigou-nos a nova paragem. Saltei da caixa do Land- Rover, levei a carabina à cara e apontei. O bicho, estacado, contemplou-me. Estremeci. Aquele deu meia volta e desatou à desfilada.

- Então, não atiraste? – gritou o Zulmiro.

- O tipo não deixou... – gaguejo.

Continuamos aos saltos. Ergui-me, oferecendo-me ao entardecer. De quando em vez, um preto desmontava da sua ginga para saudar. «Cuidado, agarrem-se!», gritou o condutor. Finquei-me, e passou-se o pontão só com um estrago: a garrafa termos do café partiu-se. Um bando de macacos guinchou sobre as nossas cabeças, pendurando-se nos braços das mangueiras.

Chegados ao acampamento, falámos e bebemos cerveja com um caçador profissional: baixote, entroncado, tez de chocolate, abundante calvície, falares e modos desembaraçados. Emprestou-nos um pneu sobresselente, agradecemos o acolhimento, mas, não nos arranjou um piloto.

A noite germinava. Apetecia ser filho daquele mundo e rebolar no capim aljofarado, chamar a bicharada e levantar com ela um salmo de glorificação. O condutor bateu com a mão na porta: «Leopardo!» Dois olhos amarelos, como anéis de médico, estavam hipnotizados. Tiraram-me a arma das mãos; nem me mexi, narcotizado por aquele olhar que, pareceu-me, no súbito, ter a frieza do hábito e o ímpeto do ódio. Um uivo cortante, um arrepio de neve, os pêlos eriçados, um sangue de pânico. O tiro falhara.

- O gajo levou chumbo - julgou Zulmiro, caçador fanático quando as contabilidades do algodão lhe davam uma folga.

Continuámos a marcha e, deixando a picada, virámos à esquerda por um trilho que rasgava o mato denso a roçar o Land-Rover. Alguns ramos, mais inclinados, obrigavam nos a baixar as cabeças e os abanões eram maiores.

Ligou-se o farolim à bateria e apagaram-se os faróis.

- Agora nada de atirar ao calha! – advertiu o Chefe para quem uma caçada era um memória brasonada.

Procurei posição certa, juntamente com o Justino, de férias administrativas, e começamos a acompanhar, de um lado para o outro, o jacto do holofote. Ansiávamos a planície, «lá a caça é maningue!». A vegetação emaranhada não dava grandes esperanças. Ao bater cavo duma mão no tecto, a viatura estacou. O tiro partiu seco, tal uma chicotada, e o eco enrolou-se na lonjura. O Justino saltou e, guiado pelo foco e pelos gemidos de animal ferido, procurou, procurou, até, acabrunhado, regressar à caixa do jeep.

- Começo a não gostar desta merda! – verrinou o contabilista. - Primeiro um javali porque ele não deixou, depois um leopardo, e logo um LEOPARDO, a fazer pouco; agora um chango que vai à vida... Grande gaita... Mais valia ter vindo sozinho...

Ninguém lhe respondeu. Como um comboio saído de um túnel, entrámos na savana. Esmagadora! O céu - um arco majestoso tecido por nuvens de algodão em rama, tapando e destapando as estrelas – dava-nos a percepção de pequenez indescritível numa visão sem tamanho. A partir daqui já nada mais interessava. Podia o Zulmiro lançar os seus protestos à azelhice dos seus acompanhantes, matarem-se, ou não, alguns bravios, cobiçar troféus para demonstração futura. Com aquele arrebatamento da terra feito de odores húmidos e ferventes de vida, importava venerar a criação, deixar que a noite soltasse as suas insídias, mostrasse os seus duendes e aplacasse os impulsos humanos.

O chango, a quem, desta vez, a sorte não sorrira, em aflitivos estremeções, tentou erguer-se, remirou os olhos enevoados e tombou, finalmente, vencido. O ventre só deixou de latejar quando o corpo retezou. Senti um incómodo de traição, um remorso de desforço, uma inutilidade de ofensa. Içamo-lo para a caixa da viatura. Descarreguei a arma e segurei-a debaixo do seu corpo. Acenderam uma fogueira para corrigir hipotéticos erros de orientação. Sentei-me, encostado ao animal, e puxei de um cigarro. O cacimbo gelava-me os ossos. Vesti uma camisola grossa. O paludismo viria mais tarde e nem as pastilhas LM me salvariam da sezão. Deixei-me ir, envolvido por aquele assombro, pelo inexplicável do universo feito sobrenaturalidade que inutiliza as heresias. Aconcheguei-me mais ao chango até sentir o calor da sua penugem, o seu cheiro selvático de esterco e capim colado ao dorso, a quentura ainda recente do seu sangue; entorpecido por este apoio, em contraste com o rocio da madrugada, adormeci. Não sei quanto tempo assim estive. Acordei com os berros do Zulmiro por terem perdido outra pantera. Quando me soergui, a lua tinha uma turvação violácea e os olhos do chango continuavam abertos feitos dois espantos a perguntarem-me: «Porquê?»

Algumas queimadas dispersas pareciam destroços fumegantes de um exército vencido.
Fim.
  • Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue

quarta-feira, 31 de março de 2010

Homenagem a João Pereira - Um reguense como nós

Se há reguenses do nosso tempo que merecem ser homenageados, um deles, é o senhor João Pereira.

Em boa hora, a Santa Casa da Misericórdia do Peso da Régua tomou a decisão de evocar a sua memória. A ideia é de homenageá-lo como um seu distinto provedor e como um insigne cidadão reguense com méritos reconhecidos na vida pública.

Aplaudo quem decidiu esta iniciativa. Sensibiliza-me este reconhecimento que lhe vai ser feito. Como seu amigo sinto-me honrado por me deixarem associar à sua homenagem. Faço-o com todo o gosto e, não apenas num gesto de amizade, mas pelo que represento como presidente da direcção dos bombeiros da Régua.

O senhor João Pereira, como nós, fez parte dos órgãos sociais da briosa associação humanitária. Exerceu vários cargos directivos com relevo para o lugar de vice-presidente da direcção. Em 1967/68 fez parte da Direcção liderada pelo Dr. José Viera de Castro e em 1984/87 integrou Direcção presidida pelo Dr. José Luís Soveral Andrade. Em qualquer uma dessas passagens pelo quartel Delfim Ferreira ele trabalhou e deixou obra feita para o engrandecimento dos Soldados da Paz.

Conheci o senhor João Pereira, na idade de homem maduro, nas bancadas do velho Campo Artur Vasques Osório, a assistir a um jogo de futebol do Sport Clube da Régua. Segundo me contaram, nesse ano, pertencia à sua direcção. Para mim, ainda só era o competente chefe da Estação dos Correios, onde o meu pai trabalhava. Nessa primeira vez, testemunhei o seu entusiasmo pelo desporto e pelas cores da equipa da nossa terra. A partir daí, fiquei a admirá-lo pela sua amabilidade e simpatia.
Não sei dizer ao certo, mas tempos depois, encontrei-o nos estúdios da antiga Rádio Alto-Douro, a fazer brilhantes relatos e comentários de jogos de futebol. Sentia-se que havia conhecimento e paixão nessa matéria desportiva, e era um comunicador simpático e entusiasmante com os ouvintes. Em Agosto, muito antes de começarem as grandiosas Festas do Socorro habituei-me a vê-lo nas comissões que organizavam as majestosas procissões e os brilhantes arraiais do rio. Em fase mais recente, lembro-me de seguir a sua actividade cívica e política como autarca do nosso concelho. Chegou por mérito próprio ao executivo da Autarquia. Competente como era, como seu vereador, dirigiu pelouros de importância e de responsabilidade. Quis o destino que pertencêssemos, representando partidos diferentes, à mesma vereação da Câmara Municipal. Conheci-lhe, assim, de perto as suas ideias e os seus sonhos que procurava concretizar: fazer as obras necessárias para melhorar a qualidade de vida das pessoas. Se todos os vereadores tivessem, como ele tinha, esta visão…!

O senhor João Pereira viveu sempre para si, sua família e para a Régua. É como quem diz, ele pertenceu a quase todas as principais instituições sociais, culturais e desportivas da Régua. Devem ser mais, mas pelo menos esteve de corpo e alma na Santa Casa Misericórdia, Associação Humanitária dos Bombeiros, Clube Caça e Pesca do Alto-Douro, Casa do Benfica e o Sport Clube da Régua. Com uma paixão pela Régua, igual à sua, deve ser difícil encontra-se, cá no nosso meio, mais alguém.

O Senhor João Pereira, em tudo o que fez não precisou de ostentar superioridades para com o seu semelhante, fosse do que fosse, bastou-lhe ser que era: um homem simples, bom e justo. Temos razões, até para pensar e o dizer, que o senhor João Pereira deve ter o último e genuíno reguense.

Lembro-me da última vez que estive com o senhor João Pereira, já a doença o tinha enfraquecido, numa tarde, em Vila Real. Ao lado de um seu amigo, o Dr. José Alberto Marques, falou-me das coisas simples que o faziam sonhar e ter um sorriso permanente no rosto. Uma dela, era a sua vontade de voltar, logo que recuperasse, à Régua para estar com os seus amigos. Com tristeza para mim, não muito tempo depois, ele regressou para a Régua. Definitivamente... e pelo caminho último caminho da sua vida, aquele que o fez chegar à Eternidade.

Para os crentes, o senhor João estará certamente no céu – no inferno, ele nunca poderia estar, como nos disse o senhor Padre Luís! Eu acredito que ele esteja ainda entre nós com o seu exemplo de generosidade e cidadania.

Os homens como o senhor João Pereira nunca passam em vão na vida. Eternizam-se na memória do tempo como exemplo para as gerações vindouras. Se queremos mostrar uma fidelidade à sua memória, devemos saber manter vivos os seus valores e os seus generosos ideais.
(Clique nas imagens para ampliar)

Nos bombeiros da Régua, o seu nome será perpetuado com admiração, respeito e gratidão, nunca esquecendo o seu trabalho pela causa do voluntariado e do associativismo.

A terminar, como conselho, sugiro a quem de direito, que o seu nome devia ficar bem lembrado numa rua, gravado assim para todo o sempre: Rua de João Pereira – um reguense como nós. Para não dizer, melhor!
- Peso da Régua, Março de 2010, J. A. Almeida.