quinta-feira, 4 de março de 2010

Recordar o Comandante Afonso Soares

Por: José Alfredo Almeida
José Afonso de Oliveira Soares, filho de João de Oliveira Soares e de Josefa Joaquina Macedo, nasceu na freguesia e concelho do Peso da Régua, em 26 de Novembro de 1852 e faleceu de velhice, conforme consta da certidão de óbito, no estado de viúvo de Teresa Bernardes Pereira, em 21 de Outubro de 1939, na rua Marquês de Pombal, onde sempre viveu, com a idade quase completa de 87 anos.

Segundo o escritor João de Araújo Correia, que lhe traçou um breve retrato na crónica “Configurações”, do seu livro “Horas Mortas” este homem cuja vida atravessou três regimes políticos - a monarquia, a república e a ditadura salazarista - foi um “ notável entre vizinhos – ele, que foi artista”, salientado que a “barba branca e cachimbo simbolizaram a sua distinção, anos e anos, porque o Senhor Soares, à parte os talentos, tinha o dom da bonomia inalterável”.

Da sua actividade profissional, sabe-se que começou por trabalhar com técnico e desenhador nas obras da construção da Linha do Douro do Marco de Canavezes até à estação da Régua. Depois ingressou nos quadros da câmara municipal onde exerceu as funções chefe da secretaria. Já na reforma, foi tesoureiro da filial do Porto do “Banco da Régua”. No regime monárquico ainda desempenhou, por algum tempo, as funções politicas de administrador do concelho do Peso da Régua, mas não foi a politica que o mais seduziu na sua actividade activa e cívica. Para o escritor reguense, que o conheceu e lhe admirou os seus talentos, “tinha merecido o título de decano dos jornalistas de província. Mas não foi, só jornalista. Foi desenhador, gravador, modelador e pintor.”

Na verdade, Afonso Soares destacou-se como jornalista na imprensa local, embora também se tenha dedicado à pintura, que ensinou gratuitamente numa escola e deixou vários quadros pintados, entre os quais uma colecção de retratos que se encontram na posse da Santa Casa da Misericórdia do Peso da Régua, à escultura e até à fotografia. Também escreveu e muito, poesia, folhetins e contos, publicados nos jornais, e dois livros, um ensaio sobre turismo e uma monografia da historia da Régua.

Como jornalista, foi director do “Jornal da Régua” (1930), onde publicou o folhetim “ Álvaro -Esboços da Vida Real”. Colaborou em vários jornais como “O Dissidente”, “Cinco de Outubro”, “O Marão” (1926), para o qual desenhou o cabeçalho, “O Transmontano” (1922), e a “A Região Duriense” (1930).

Neste último semanário, assinou um interessante artigo intitulado “A Capital do Douro”, a dar eco à questão duriense. Sobre esse assunto, eis o pensamento, ainda pleno de actualidade: “E enquanto o Douro for Douro não podem os seus filhos esperar outra vida que não seja a defender o seu vinho. Um desfalecimento tem consequências funestas. Ninguém deve esquecer que atrás de uma dificuldade, logo outra aparece. E todas elas se vêem reflectir na sua capital do Douro - a vila do Peso da Régua – a que se tem dado e com razão de “coração do Douro”. (…) A Régua foi, e será o centro desta região privilegiada. Já o era quando, pobre e triste povoação sertaneja, fez parte dos concelhos de Santa Marta e Godim e já era centro consagrado da região quando o governo de D. José criou a Companhia Geral das Vinhas do Alto Douro (…). Em anotação ao texto, o director do jornal, Júlio Vasques agradecia-lhe a sua colaboração: “Honra este semanário este nosso amigo e decano dos jornalistas provincianos com vastíssima erudição que lhe provem do aturado estudo que se tem entregado nas investigações históricas do concelho do Peso da Régua. Os nossos leitores terão mais que uma vez de apreciar os seus artigos cheios de ensinamentos preciosos (…) expondo ao pais e ao estrangeiro a riqueza que o esforço do viticultor duriense soube arrancar das montanhas entre as quais corre tumultuoso o nosso rio Douro”.
Afonso Soares deixou publicadas três obras literárias: “Apontamentos para a História da Vila do Peso da Régua” (1907), o ensaio “Régua - Coração do Douro -Centro de Excursões e de Turismo” (1925) e a “História da Vila e Concelho do Peso da Régua” (1936-38), mandada elaborar pela Comissão Administrativa, em 1936, ao “brilhante jornalista reguense (…) de competência indiscutível desta natureza”. Em 1979, a Câmara Municipal da Régua promoveu uma 2ª edição do livro, que para o presidente Prof. Renato Aguiar significava “dar satisfação aos inúmeros pedidos para nova edição (…) mandou imprimir este brilhante trabalho elaborado por José Afonso de Oliveira Soares.”
 
A monografia “História da Vila e Concelho do Peso da Régua” é a sua obra mais conhecida. Começou por ser editada em fascículos, impressos na “Imprensa do Douro”. Num artigo publicado no “Noticias do Douro”, o reguense Dr. Sebastião Pinto de Gouveia, advogado no Porto, confirmava que esta sua obra tinha sido “ elaborada a pedido da vereação municipal instalada em 1936. Concluída em 1938, é um trabalho de investigação extenso, e largo estudo, bem ordenado, profusamente documentado, de estilo sóbrio, preciso e elegante. Essas páginas dão-nos uma síntese perfeita da vasta capacidade, preparação e cultura do seu autor. Mais do que a história de um concelho, esse livro é um acto de dedicação e fé a uma causa nobre que soube servir e amar”.
 
Conhecendo-o por com ele ter convivido e partilhado a escrita nas páginas dos jornais, o escritor João de Araújo Correia, numa crónica publicada, em 1928, no “Jornal da Régua” fazia um retrato psicológico de Afonso Soares, a elucidar um retrato que o periódico trazia na primeira página, para assinalar o aniversário dos seus 82 anos, que pela sua lúcida e perspicaz análise, se transcreve esta parte:
 
“O retrato do senhor Soares só ficaria fiel pintado a óleo.
 
Perde-se um modelo digno de Columbano.
 
(…)
 
O retrato é mal tirado. Mas a nossa adoração espiritualiza-o. Aos olhos dos devotos não escorrem sangue as feridas mal pintadas dos crucificados? À nossa vista, o Senhor Soares gravado é o Senhor Soares vivo. O fenómeno do riso no octogenário ensilveirado de barbas é um dos encantos do homem que vem, às tardes sentar-se no banco do Zé Pinto, do esteta que procura uma mercearia para espairecer, como há enxovedos que procuram os museus para ressoar. O riso é o triunfo do homem sobre as trivialidades que o circundam. A beleza e fealdade das coisas são reacções interiores. Por isso vemos o Senhor Soares deliciado quando o Afonso Henriques Morrão pesa bacalhau ou o Zé Pinto se põe a esculpir estátuas impressionistas de oiro, com manteiga. Se o amor preleva o senso estético no descobrir em prosa poesia num pelo defumado do cachimbo do Senhor Afonso Soares, veremos o singular indivíduo que vive oitenta anos à sombra de sertanejo campanário, sem prejuízo da harmonia do seu vestir ou pensar. A gravura que encima, esta coluna e, por consequência uma maravilha. Na sua dureza evocamos a ternura, a serenidade, a inteligência, o talento, as armas com que o Senhor Soares tem defendido a epiderme da sujidade mundana. Imediatamente nos evoca também o caminho que a nossa terra polida lhe tributa. A Régua tem coração. Não é verdade que ela se curva para agasalhar, mais do que para cumprimentar, as mãos esguias do Senhor Soares? Na própria ausência do querido pintor e homem de letras, dizemos todos: o Senhor Soares. Consoante o costume local, há quem diga: Senhor Zezinho Soares.
 
Há muita beleza nisto…
 
Não é exacto valerem os homens somente pela obra executada. Os homens valem pelo mundo íntimo que abrigam e vem transparecer à flor do olhar, do gesto, da palavra, que é a maneira de pôr a gravata ou o chapéu. O Senhor Soares vale um tesoiro.Com aquelas barbas chamuscadas de fumo, a moeda romana que lhe orna o peito, vale tanto como se houvesse despedido do lar aos vinte anos, com a sua habilidade e seus pincéis e regressasse pelos oitenta, coroado de espinhos loiros, bem granjeado o nome pomposo de Mestre José Afonso”.
 
No mesmo sentido, o Dr. Sebastião Pinto de Gouveia no seu citado artigo valorizou as qualidades de artista de Afonso Soares: “a sua extraordinária aptidão, ao maravilhoso talento, tudo era fácil. Quadros como a cópia maravilhosa do “Santo Estevão de Van Dick”, a “Cabeça de Cristo”, de tão quente e dolorosa expressão - “ A volta do Salgueiral” – a “ Cabeça da Virgem” são, entre muitos outros, verdadeiros espelhos da alma de Afonso Soares, da sua extraordinária sensibilidade como do seu génio. Dá-los a um largo exame público e a uma demorada apreciação critica é consagrar o artista extraordinário que os produziu e, sobretudo, conceder a todos, numa visão de conjunto da sua obra, momentos de insubstituível prazer espiritual. Legou-nos também Afonso Soares algumas esculturas: o busto do Chico Doido, entre outras, exprime também a eloquência bastante a extraordinária aptidão de Afonso Soares para esta modalidade de arte. Infelizmente são exíguos os seus trabalhos de escultura e desenho”.
 
Dando realização aos seus princípios humanísticos, não deixou de participar civicamente no movimento associativo, em especial, o voluntariado nos bombeiros.
 
Afonso Soares não integrou a lista dos cidadãos fundadores que, reunidos numa “Comissão Instaladora”, elaboraram os estatutos e, em 28 de Novembro 1880, “inauguram” a Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários da Régua. Ele, só alguns anos mais tarde, se inscreveu como seu sócio contribuinte.
 
Como sócio contribuinte tudo fez para que os bombeiros tivessem, logo em 1885, uma pequena biblioteca no seu edifício-sede que ficava, como então se dizia, na “Chafarica”, hoje conhecido pelo Largo dos Aviadores. Muito embora, o escritor João de Araújo Correia, numa das suas crónicas escritas para o livro “Pátria Pequena” tenha afirmado que o anónimo impulsionador que a idealizou nunca foi conhecido, sabe-se agora que essa biblioteca que, não mais seria de uma estante com livros raros, se deveu à sua iniciativa e generosidade. Sendo um homem modesto, na sua monografia da história da Régua não quis revelar como sendo ele o benfeitor, mas num texto não assinado, que se supõe ser da sua autoria, já que o estilo e o conteúdo parecem semelhantes, publicado em 1930, no jornal “A Região Duriense”, está referenciado o seu nome como benemérito.
 
Em 1893, Afonso Soares foi eleito pelos associados como Comandante dos Bombeiros da Régua, cargo que vai ocupar até 1927, segundo o que está consagrado oficialmente na associação. Mas, essa data pode não coincidir com a realidade. Uma notícia publicada na revista “Ilustração Portuguesa” dá conta que, em 28 de Novembro 1923, nas comemorações do 43º aniversário da Associação, Afonso Soares não seria já o comandante dos bombeiros.
 
Afonso Soares tinha 40 anos quando os sócios reunidos em Assembleia-geral, realizada em 28 de Janeiro de 1893, o elegeram para ocupar vago pela morte súbita do Comandante Manuel Maria de Magalhães, ocorrida em 10 de Outubro de 1892.
 
Mas, a substituição do primeiro comandante dos bombeiros da Régua não deve ter sido nada pacífica, já que ficou marcada por um conflito entre os associados. Numa primeira eleições, não foi escolhido Afonso Soares, mas o sócio-activo e fundador Gaspar Henriques da Silva Monteiro, negociante influente que, durante a monarquia, integrou a primeira Comissão Municipal Republicana. Acontece que, de imediato, renunciou ao cargo de comandante para que havia sido eleito, através de uma carta dirigida ao presidente da direcção, “agradecendo aos seus colegas de direcção as provas de estima que lhe tinham dado”. Porque razão tomou esta inesperada decisão? Ao certo não se conhecem os motivos, mas da acta da reunião de direcção, o mais provável é que tenham sido os desentendimentos pessoais ou, eventualmente, divergências de carácter político entre os sócios activos. Abordado assunto em reunião de direcção, o seu presidente sugeriu um “voto de sentimento pela saída deste sócio, atendendo não só à leal camaradagem e aos serviços por ele prestados à Associação” e, com alguma diplomacia, aceitou o pedido de renúncia porque “conhecendo a direcção a atendidas razões de pormenor que motivaram a sua saída, abstinha-se de pedir-lhe, como desejava, de ficar nesta associação…”. Na sua intervenção, o director Joaquim Sousa Pinto, 2ª Comandante, ao pronunciar-se sobre a data da Assembleia – Geral para a eleição do novo comandante, denuncia a exigência de conflito, já que foi claro ao manifestar a opinião “que se demorasse por algum tempo a eleição daquele, visto que estando ainda bastante exaltados os espíritos dos sócios-activos, em virtude do conflito que determinara a saída do primeiro comandante, acrescentando que nenhum prejuízo adviria para a Companhia por esse facto”. O presidente da direcção, José Joaquim Pereira Soares dos Santos, mostrava-se incomodado com a situação, pedindo que “se registasse que alguns sócios contribuintes principiavam de ver com desagrado uns pequenos conflitos, sem importância, é certo, mas que pela sua qualidade mal abonavam o bom nome da Associação”. Entretanto, são eleitos novos directores para os órgãos sociais da Associação. O novo presidente da direcção Alberto Rolla, no dia 3 de Fevereiro de 1893, convoca Afonso Soares para prestar o juramento como Comandante dos Bombeiros. Depois de empossado, ele vai exercer o cargo durante um largo período de anos, conturbados para o país, a região duriense e o futuro da Associação. Não se sabe, com certeza e rigor, se abdicou de ser comandante em 1927 ou já, em 1923, para Camilo Guedes Castelo Branco, mas pensa-se que tenha sido antes dessa última data. A sua idade próxima dos 75 anos, e as limitações de saúde, já não lhe permitiam dirigir as missões de socorro.
 
No seu mandato, Afonso Soares manteve, apesar das limitações do quartel e da falta de material de combate de incêndios, um corpo de bombeiros de bombeiros operacional, composto por briosos cidadãos. Mas, não se pense que foi fácil a sua missão, já que enfrentou dificuldades económicas. Em 1902, a câmara municipal suprimiu a atribuição do subsídio para os bombeiros. Como se entende, esta atitude foi mal recebida e provocou uma contestação, que motivou a realização de uma Assembleia-Geral. Sem financiamento e sem receitas, a Associação atravessa uma crise. Nas suas memórias, o chefe António Guedes, então jovem bombeiro, recordou como os bombeiros a ultrapassaram. Confirma que, por volta de 1910-20, a Associação estava sem receitas para suportar as despesas do quartel. Alguns bombeiros, perante as dívidas que aumentavam, chegaram a propor que as chaves do quartel e o pouco material fossem entregues ao presidente do município. Mas, os velhos e apaixonados bombeiros entenderam não cruzar os braços e não permitiram que a associação se extinguisse. Começaram por se cotizarem com uma quantia dos seus salários, mas mesmo assim não obtinham o suficiente para as principais despesas. Surgiu, depois, a ideia de alguns bombeiros para como actores amadores realizar uns espectáculos de teatro. As peças atraíram a população que pagou o bilhete para assistir. Conseguiram assim, o dinheiro que precisavam para saldarem as dívidas acumuladas, já que câmara municipal, até 1930, atribuía um subsídio demasiado pequeno.
 
O Comandante Afonso Soares teve a determinação e o mérito de manter vivo o corpo de bombeiro que fazia falta à população reguense. Não descansou para arranjar as melhores condições de trabalho. Pediu à câmara municipal uma parcela de terreno para a construção de um quartel de raiz, mas ninguém o ajudou a realizar o seu sonho. Ele mesmo deu o seu contributo ao fazer o esboço de um projecto para construção do novo edifício. O desenho, felizmente, não se perdeu e está guardado no Museu dos Bombeiros. Nele pode ver-se como Afonso Soares evidencia o seu génio artístico, o rigor técnico e os traços originais de uma ornamentação primorosa.
 
A Régua, na década de 50, com alguma polémica pelo meio e até de vozes contrárias e discordantes, reconheceu os méritos pessoais, humanísticos, literários e artísticos de Afonso Soares. Nomeada uma comissão de figuras reconhecidas na sociedade reguenses que, com apoio da câmara, mandava erigir um busto, em sua memória, no jardim do Largo do Cruzeiro, próximo da casa onde morou. Esteve presente, para descerrar a placa, o seu bisneto José Afonso Suart-Torrie, ainda criança, e actualmente um negociante de vinhos, residente em França, onde em Rouen é Cônsul Honorário de Portugal.
No seu pedestal está inscrita em sua memória esta mensagem dirigida a todos nós e, em especial, às gerações mais novas: “Talento e bondade/Flor de simpatia/Que nos merecia/ Esta saudade”. Pode parecer pouco, mas esta estátua tem um significado importante: o justo reconhecimento de homem, um cidadão reguense generoso e talentoso que viveu de forma intensa e apaixonada a sua terra. Essa paixão à Régua, confessou-a num dos seus livros: “Mas porque amo a minha terra e me penaliza que as sua belezas continuem tão ignoradas, sem cantar as espalharei por toda a parte, ainda mesmo sem engenho e arte”. Engano seu para nos convencer da sua modéstia: engenho e arte nunca faltaram ao Comandante Afonso Soares!
- Peso da Régua, Março de 2010, J A Almeida. Atualizado em Julho de 2010.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

SAUDADE AFRICANA

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Onde está a África da minha saudade que conheci quando ainda não sabia que o futuro nunca é o que sonhamos?

África tão longe e tão longa que a recordação parece não ter contornos e o tempo passado permanece em cada dia que a mágoa nos aleija a alma. Acarto comigo um fardo de angústia que me isola no meio de muita gente, aquela solidão feita da repugnância do que se ouve e vê, da ingratidão que não se merece, da violência dos gestos e das palavras, da profanização sacralizada como se, na vida, só valesse o exponencial de todas as manhas.

É na invocação africana que se me diluem a podridão envolvente, a incapacidade da rotina, os olhares mal encarados, a indiferença das bocas fechadas.

Onde está a África dos meus clamores, das lágrimas escondidas nas sombras das noites de escuta?

África da surpresa por amigos esventrados, estendidos nas caixas dum Unimog ou de uma Berliet, e eu, com o seu fio de ouro nas mãos, sem articular uma frase, garganta presa pela afonia, estômago à beira do vómito, a fugir de ver o sangue e os rostos desfigurados, e os camuflados cheios do esterco da morte inglória, e as botas furadas pelos restos do chumbo, e o cérebro tomado por agulhas a picarem-me por todo o lado, por tudo que é corpo e consciência, e a olhar em meu redor sem uma luz na noite a ensinar-me o caminho, sem um som no fim da terra vermelha para me provocar o andar, sem (meu Deus!) uma esperança de que os mortos inocentes pudessem renascer para o meu convívio.

Onde está a África das cantinas no esconso da selva, das trovoadas e das chuvas apanhando-me nos descampados da savana, das queimadas fantasmagóricas nas noites despertas, perscrutando as curvas e os trilhos da traição, dos luares arrebatadores contemplados por entre os mosquiteiros já gastos pelo uso de muitos rostos, os uivos das hienas, atordoadas pelo cio e pela fome, arrepiando-me todo, acelerando o coração, alagando-me de suor, puxando a G-3, aconchegando o caqui, retesando os nervos com o dedo no gatilho?

Onde está a África das manhãs de maresia nas praias de todas as bandeiras azuis, sem ventos nem garrafões ou ossos de frango nas areias; praias tão quentes e tão finas que até parecia que um homem as pisava pela primeira vez, as suas águas tinham lábios de espuma que nos beijavam sempre em ternuras sem fim, corais como conchas vivas de um sonho irrepetível; palmares enormes como naves de catedrais góticas por onde o sol entrava, coado pelos vitrais da folhagem tão fresca, resplandecente e pura como a virgindade de uma criança?

Onde está a África das presunções fardadas, das madrinhas de guerra, das filmagens da Televisão com «um Feliz Natal e um Ano Novo cheio de propriedades», dos dias de São Vapor com cubas libres e «quem me dera regressar no Pátria!», dos calendários de mulatas nuas repletos de cruzes nos dias já passados, da obrigação de atravessar rios em almadias à procura de esconderijos de armas em ilhas paradisíacas, dos Postos Administrativos onde os sipaios nos deitavam sorrisos pepsodentes, dos funerais com danças de despedida e dos bifes de antílope a enfartaram barrigas vazias de tanta ração de combate?

Onde está a África das noites estreladas num céu tão belo e tão esmagador que dava vontade de ter asas para voar para a lua redonda como uma bola de cristal; noites de ritmos endiabrados, sensuais e espasmódicos, que o sangue fervia nas veias e rejubilava nas têmporas?

Quando o dia clareava e o fogo redondo subia na terra, um feitiço nos ludibriava com a ilusão de paz na vastidão da selva.
- Porto, M. Nogueira Borges - do livro "Lagar da Memória".
  • Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!

A catástrofe das Caldas do Moledo

Encontra-se publicado no Diário do Governo, em portaria de 12 de Março de 1904, o seguinte louvor: “SUA MAGESTADE El-Rei, a quem foram presentes as informações do governador Civil de Villa Real acerca do philantropico procedimento da Câmara Municipal do concelho do Peso da Regoa e dos humanitários e importantes serviços prestados pelos BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS da mesma villa por ocasião da catastrophe que em 10 de Fevereiro se deu na povoação do Moledo: há por bem determinar que seu REAL NOME, sejam conferidos pelo dito magistrado às mencionadas Câmara Municipal e CORPORAÇÃO DE BOMBEIROS os merecidos louvores”-Paço, em 10 de Março de 1904 -Ernesto Rodopho Hintze Ribeiro”.

Em 1904, o Rei D. Carlos concedia este louvor aos bombeiros da Régua como reconhecimento dos seus importantes serviços humanitários, prestados na missão de socorro, realizada no dia 10 de Fevereiro de 1904, nas Caldas do Moledo, numa catástrofe natural, que causou a morte a pelo menos 24 pessoas, que estavam alojadas numa casa da Quinta das Caldas, pertencente à família da D. Antónia Adelaide Ferreira, a Ferreirinha.

Esta catástrofe deu-se com o rebentamento de um tanque de recolha de água, situado em plena encosta, que tinha como finalidade recolher as águas que corriam pela vinha da quinta, donde se escoavam pelo vale até ao rio Douro. Nesse inverno de 1904, em Caldas do Moledo, as chuvas tinham sido abundantes e o tanque não resistiu à força das águas e desmoronou-se com as terras que o envolviam. As águas irromperam pela encosta a baixo, destruindo e arrastando o que encontravam pela frente. Arrancam, na sua passagem, os carris do caminho-de-ferro da linha do douro e destroem a casa construída na berma da estrada nacional. As pessoas que nela se abrigavam foram arrastadas com os destroços para o rio e, apesar das buscas, os seus corpos não foram nunca encontrados. Apenas se salvou uma criança – António Cardoso - devido à “mão de Deus” e à coragem do senhor Delfim de Sousa Mesquita.

Os bombeiros da Régua quando chegaram ao local, pouco tempo depois do sucedido, encontraram uma casa reduzida aos seus alicerces, completamente desfeita num amontoado de lamas e pedras. O seu auxílio foi remover terras e terras, nessa noite e nos dias seguintes, para recuperarem os corpos das pessoas. Nenhum foi sequer encontrado no meio dos destroços.

Na sua monografia sobre a história da Régua, Afonso Soares fez uma breve referência a esta tragédia das Caldas do Moledo. Assinalou-a como uma das mais graves em corpo de bombeiros que, ele era seu comandante (1893-1927), tinha socorrido. Não escreveu nenhum relato do que viu e assistiu, apenas se limitou a transcrever a acta da sessão da Câmara Municipal de 11 de Fevereiro de 1904, onde consta que vereação se preocupou com o desenrolar do acontecimento que enlutava a Régua e aproveitava para distinguir com a aprovação de um louvor a população reguense, os bombeiros e o Sr. Delfim de Sousa de Mesquita pelo “socorro às vitimas de tamanha calamidade”.

Passado mais de um século, a tragédia das Caldas do Moledo encontra-se caída no esquecimento e apagada na memória das actuais gerações. Naquele vale do Tinoco, a vida continuou o seu ciclo, tudo se foi reconstruindo com esperança no futuro: edificaram a casa desaparecida e o tanque no mesmo lugar – é verdade - a linha de água mantém o seu curso normal, retomou-se o cultivo da vinha e a produção de bons vinhos na quinta, as velhas termas edificadas no parque de plátanos, afamadas pelo clima ameno e seco e a curas das suas águas sulfúreas, adquiriam maior movimento com a abertura do hotel, erguido pelo génio da Ferreirinha.

O tempo fez voltar tudo à normalidade, mas até hoje ninguém se lembrou de, nesse lugar das Caldas do Moledo, gravar numa parede uma simples placa a evocar as vítimas que perderam a vida nessa tragédia.

Apenas a literatura de cordel a fez lembrar a sua fatalidade cantada numa poesia que o povo conhecia pelo “Grande desastre acontecido nas Caldas do Moledo”, de Agostinho da Silva Pereira. Numa linguagem comum e com um sentimento religioso foi lembrada assim:

“Foi nas Caldas do Moledo/Aquele depósito arrebentou/Ali tudo se arrazou/ Causa pena mete medo/Ali tiveram o seu enterro/Vejam o poder do Senhor/ Que ali ficaram sepultados/Causa pena mete terror/(…) Só naquele próprio menino/Num berço a dormir foi encontrado/Sobre aquele rio tão valente/ Por os barqueiros foi apanhado/Foi um milagre que Deus mostrou nele devemos pensar/ Esta grande calamidade/Que se vai vendo na nossa nação/Sem ninguém isto esperar/Aquele depósito arrebentou/Dos que andavam a trabalhar/ A vida lhe acabou”.

Uns anos mais tarde, Afonso Soares, velho comandante dos bombeiros já no Quadro de Honra, recordou no jornal “A Região Duriense”, num texto intitulado o “Desastre das Caldas do Moledo”. Como o seu texto não é conhecido pelos entendidos na gestão dos território e pelos agentes da protecção civil, faz-se de imediato a sua transcrição:

“Na noite de 10 de Fevereiro de 1904 uma pavorosa catástrofe enlutava o concelho do Peso da Régua. O rio Douro tinha subido muito e a chuva continuava caindo dia e noite. Na quinta das Caldas do Moledo, pertencente à falecida Sr.ª D. Antónia Adelaide Ferreira, havia acima da linha férrea que atravessava a quinta, um grande tanque construído na divisória dos dois concelhos - Régua e Mesão - Frio. Essa divisão fazia-se e faz-se no vale do Tinoco que na estrada que vai para o Porto tem o marco da divisão concelhia.

Do lado esquerdo desse vale havia uma casa de arrumações pertencente à quinta, com frente para a estrada. Do lado oposto duas moradas de casas que recebiam hóspedes. Nesta casa tinham sido recebidos 24 hóspedes, vindo de fora que ali pernoitavam, fugindo à tempestade.

Naquele pequeno vale a que nos referimos, corria, de vez em quando, água vinda das encostas da montanha. O leito do regato comunicava na altura do tanque com ele e depois de cheio restabelecia-se a saída pelo vale. O tanque estava cheio há muito tempo pois que a chuva fora persistente. Às nove horas e meia daquela noite um enorme estampido sobressalta toda a povoação das Caldas do Moledo.

A parede da frente do depósito tinha cedido e aquela avalanche de água ali represa, salta por ali fora, desenfreada, e apesar de encontrar na sua frente uma baixa grande fechada pela linha férrea, que passava em frente, desfaz o talude do caminho de ferro, arranca rails que retorce e leva diante de si, e cai sobre a casa da quinta, cortando-a ao meio, destruindo a parte mais próxima do vale e precipita-se depois sobre as duas casas fronteiras que apara, como se fosse uma navalha de barba, deixando-lhes apenas os alicerces. Precipita casas com tudo o que tinham na corrente do rio que tudo engoliu, incluindo a vida de 24 pessoas que ali se tinham recolhido e cuja identidade nunca se averiguou, pelo desaparecimento dos cadáveres.

Foi esta tragédia que naquela terrível noite se desenvolveu na povoação das Caldas do Moledo. Chamados os socorros para esta vila, daqui partiu muita gente a prestar os seus serviços numa noite tempestuosa que tornava o trânsito impossível pela estrada. Não faltaram nem podiam faltar a esta chamada os nossos bombeiros que, sem hesitação, para aquela povoação partiram imediatamente”.

A notícia escrita por Afonso Soares, apesar do tempo passado, não podia estar mais actual. Assim, a catástrofe das Caldas do Moledo pode e deve, nos nossos dias, ser entendida como uma boa lição para valorizar mais as matérias de protecção da natureza que, violentadas por incúria e negligência humana, causam quase sempre problemas de segurança e protecção civil às populações.

As condições naturais da paisagem duriense associadas a alterações provocadas pelo homem – como a surgida nas Caldas do Moledo - podem aceleram ou desencadear catástrofes naturais. Só se evitam os infortúnios se houver mais rigor e cuidado nos licenciamentos de obras e construções que se fazem nas encostas do Douro. É importante conhecer a orografia da região duriense e a constituição geológica dos seus solos.
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Em tempos de invernos chuvosos são flagrantes as possibilidades de repetirem, com maior violência, estes fenómenos chamados de “movimentos de vertente”, os perigosos deslizamentos de terras, destruidores de tudo em sua volta e causadores da morte de muitas pessoas, sempre indefesas nestas tragédias.
- Peso da Régua, Fevereiro de 2010, J. A. Almeida.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

A Carta dos Bombeiros Voluntários Lisboneses

Ao vasculharmos os arquivos da nossa Associação não nos passou despercebida uma carta enviada pelo Comandante Tenente José Francisco França de Sousa, dos Bombeiros Voluntários Lisboneses, em 1966, ao director do jornal “Vida por Vida”, órgão oficial da AHBV do Peso da Régua.

Como, quando lhe chegou às mãos, essa carta não passou também despercebida ao Dr. Camilo de Araújo Correia, a quem fora amavelmente dirigida, que lhe reconheceu valor e interesse histórico para a divulgar nas colunas da primeira página do jornal.

Na edição de Janeiro de 1966, com o sugestivo título “Bombeiros Voluntários Lisbonenses” é feita a transcrição integral dessa carta. E, numa pequena nota introdutória, muito pessoal e ao seu jeito e estilo, o director - ilustre médico e escritor infelizmente já falecido - lembrou que, pela satisfação que a tinha recebido, não resistia a tentação – assim mesmo – de a publicar.

Os bombeiros da Régua são pioneiros a estabelecer relações institucionais com as associações congéneres. Faz parte dos genes da sua fundação. Entenderam desde os seus primórdios, que se tornava necessário conhecer o que se fazia de mais avançado nas associações mais preparadas e capazes e para conhecerem as novidades no combate aos fogos e no socorro às populações.

O jornal dos bombeiros da Régua, fundado em 1957, foi um elo de ligação aos bombeiros do país. Serviu para mostrar o trabalho de uma geração de homens que lutou com paixão para manter, com a ajuda de muitos beneméritos – os primeiros mecenas - o associativismo mais activo e um corpo bombeiros melhor preparado para responder às exigências do socorro às suas populações.

Se, no passado recente, existiram contactos dos Bombeiros da Régua com os Bombeiros Voluntários Lisbonenses, o mais certo é terem acontecido em encontros entre os seus directores e seus comandantes. Leva a crer que os comandantes se terão conhecido numa das muitas reuniões ou congressos de bombeiros, para discutirem as preocupações e aspirações do sector, onde teriam participado em nome das suas associações.

Na Régua, o Comandante Cardoso (1959-1990) fazia questão em participar nos debates que iam acontecendo pelo país sobre os desafios que os bombeiros voluntários tinham pela frente, como a definição de regras ordenamento da sua actividade e a afirmação do associativismo no seio da sociedade de que emerge.
Em 1968, os bombeiros da Régua participaram no congresso que teve lugar na cidade de Lisboa. A direcção da Associação, presidida pelo Eng. Abel Osório de Almeida (1966-67) e o Comandante Cardoso mandaram imprimir um folheto para oferecem nessa assembleia magna. Começavam com esta mensagem de saudação: “Os BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS DO PESO DA RÉGUA, saúdam com amizade todos os camaradas portugueses presentes como nós neste XVIII Congresso Nacional, e fazem votos por que os seus anseios e as suas pretensões venham a ser estudadas para bem da Causa que servirmos, o mesmo que dizer para bem de Portugal”. Aproveitavam, nas restantes páginas do folheto, para divulgar, com muito saudável bairrismo, os meios e os objectivos da Associação e para promover a região do Douro - como escreviam única no Mundo - e o seu principal produto, a sua primordial fonte de recursos, o “Vinho do Porto - Orgulho de Portugal”.
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A carta do Comandante Tenente França de Sousa é um precioso testemunho para a história dos bombeiros da Régua. a importância da Associação, reconhecida pelo seu progresso e crescente prestígio, presta uma homenagem ao seu valoroso corpo de bombeiros da década de 60 e faz um enaltecimento da figura do seu Comandante Cardoso, conhecido por viver os problemas da sua corporação como se fossem parte integrante da sua vida.

Esta carta é também uma prova que mostrar que “nesta cruzada de Coragem, Abnegação e Humanidade, também há ainda lugar para radicar e vincar amizades entre todos aqueles que sabe viver e compreender a missão a que devotamente nos entregamos”, como expressava o director do “Vida por Vida”.

Apesar das distâncias que separam as duas corporações, os bombeiros não deixam de comungar os mesmos valores de fraternidade e solidariedade.

As palavras de gratidão do Comandante Tenente França de Sousa, servidor leal e competente, que deixou marcas indeléveis nos Bombeiros Voluntários Lisboneses e na sua prestigiada Associação, este ano a comemorar o seu centenário, podem servir de motivo para aproximar as duas instituições, cheias de glorioso passado, numa união de vontades e de partilha dos novos desafios exigidos ao voluntariado do séc. XXI.

Não queremos deixar esquecida a carta do Comandante Tenente França de Sousa que deve ser relida com a devida atenção, pelo que a melhor homenagem lhe prestamos, agradecendo o seu nobre gesto, é de voltar a fazer na íntegra a sua transcrição:

“Exmo Senhor
Director do Jornal “Vida por Vida”:

Apresentando os meus mais sinceros cumprimentos a V. Exª, venho gostosamente saldar uma dupla dívida, que desde alguns meses tinha para convosco.

A primeira, de agradecer o envio mensal do vosso jornal “Vida por Vida” para esta Corporação da Capital, que dista algumas centenas de quilómetros da vossa, atitude que sinceramente, tanto a mim, como aos 80 homens do meu Corpo Activo bem funda ficou gravada nos nossos corações e, que embora com o pouco contacto que tem existido entre estas duas corporações, me permite afirmar que é a única compreensível entre Soldados da Paz!

A outra dívida que tinha para convosco, é de agora lhe confessar quanto me satisfaz e aprecio verificar através do vosso jornal, como a Vossa Associação está em progresso e grande prestígio que ela tem dentro dos meios ligados à causa do Voluntariado, situação atingida mercê da acção dinâmica dos seus Corpos Gerentes e da muita dedicação dos seus valorosos elementos do Corpo Activo bem comandados por um comando que vive os seus problemas da sua Corporação, fazendo dela parte integrante da sua vida.

Para a briosa corporação nortenha do Peso da Régua, vai o meu apreço e abraço amigo dos vossos camaradas “Lisbonenses”, na certeza, que embora distantes, aqui sentiremos igualmente as vossas horas más que possam surgir, regozijaremos como os vossos momentos de esplendor, com as vossas alegrias, saudando pelo vosso progresso!

Com os meus melhores cumprimentos, sou de V. Exª”.

Quantas vezes mais lemos esta carta, sentimos que o Comandante Tenente França de Sousa nos emociona e faz sentir mais orgulho pelo passado feito por muitas gerações de bombeiros e dirigentes, sempre motivados e com uma única preocupação, a elevar sempre o prestígio da Associação, seguindo os ideais consagrados pelo primeiro dos fundadores, o brioso Comandante Manuel Maria de Magalhães (1880-1892).
- Peso da Régua, Fevereiro de 2010, J. A. Almeida.