quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Peso da Régua - Alameda Municipal em 1900



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Dois postais da Alameda Municipal, actual Alameda dos Capitães nos principios de 1900, mostrando um belo jardim, com características românticas.

A antiga Alameda, como jardim e seus lagos de água fresca, revelam um espírito de harmonia muito mais apurado do que as actuais formas de gerir o mesmo espaço urbano. Era onde o cidadão se refugiava em busca de ocupação dos tempos livres e de recreio comungando com a beleza deste lugar intemporal onde se vislumbra a verdadeira identidade da cidade.

Recordo que nos anos 50, ainda criança, dizia a meu saudoso Pai que queria ir brincar para "trás-da-câmara", pois era assim que eu designava a atual Alameda dos Capitães.
- Imagens e sugestão de texto de J. A. Almeida.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

As manobras na Alameda Marechal Carmona


A Alameda Marechal Carmona, como se chamava em 1954 – hoje designada por Alameda dos Capitães - era o lugar escolhido pelo comando dos bombeiros da Régua para se fazerem uma série de manobras de com o seu equipamento de socorro e assistência e o de transportes de sinistrados e doentes, se bem que muito rudimentares mas então em uso, para treinar as aptidões físicas e capacidades técnicas dos elementos do corpo activo.

A Régua, nos anos 50 anos, era um centro urbano em notório crescimento e desenvolvimento ligado ao comércio do vinho do porto. A sua evolução fazia surgir mais perigos e riscos a enfrentar na área do socorro. Em volta dos bombeiros tudo rapidamente se alterava. As ruas passavam a ter mais trânsito rodoviário devido aos constantes movimentos de transporte do vinho em grandes camiões. Os armazéns também aumentavam e tornavam-se mais perigosos por guardarem matérias inflamáveis. Começava a sentir-se um incremento maior na construção civil, surgindo os primeiros prédios em altura.

Os tempos eram de mudanças no sector socorro. Os bombeiros precisavam de tomar medidas com uma certa urgência. O recurso ao uso da agulheta alimentada pela velha bomba braçal era insuficiente para dar resposta a uma nova multiplicidades de sinistros.

Era comandante Lourenço Medeiros - o respeitável senhor Lourenchinho - já de idade muito avançada e a direcção estava a cargo do carismático Dr. Júlio Vilela. Nos objectivos dos seus primeiros mandados, a formação dos bombeiros constituiu a sua a primeira prioridade. Passava a ser entendida como uma coisa séria. Precisava-se de se responder com mais responsabilidade às novas exigências da comunidade, que obrigava a acção dos bombeiros a um maior rigor e melhor preparação técnica.

Para não ficarem ultrapassados, os bombeiros da Régua procuram seguir o modelo que estavam a adoptar outras corporações para melhorarem as aptidões no plano do material e da preparação técnica. Depois de se reunirem com o Inspector de Incêndios da Zona Norte – Coronel Serafim de Morais - este indica para dar formação aos bombeiros, o chefe Artur José Pinto, do Batalhão Sapadores de Bombeiros do Porto, considerado como o “graduado mais competente” pelos seus superiores.

Sendo aceite sem reservas este serviço, o chefe Artur José Pinto passava a deslocar-se ao quartel Delfim Ferreira, na Régua, todos os fins-de-semana, para ensinar conhecimentos básicos de socorro e realizar as manobras, isto é, exercícios práticos no ataque ao combate aos fogos urbanos.

Os bombeiros passam a receber uma instrução com uma componente mais prática. As manobras no recinto da Alameda, ainda em terra batida, fazem-se com frequência e regularidade Começam a ser usuais os exercícios com as escadas, o escalonamento de casas, treina-se o uso da auto-bomba e mangueiras e ensaiam-se as novas técnicas de transportar os doentes e feridos na auto-maca.

Durante mais de uma década, o chefe Pinto - como na Régua era conhecido - foi o responsável pela formação dos bombeiros reguenses. A associação e o seu corpo de bombeiros deve-lhe estar grata pelo seu importante trabalho. O seu nome deve ser recordado como um dos que mais fez pela formação dos seus elementos, anos 50 e 60.

Na sua homenagem de despedida, feita em Outubro 1964, o Comandante Carlos Cardoso e o presidente da direcção, o médico e cronista Camilo de Araújo Correia reconheceram o seu valor e os seus préstimos. Deste importante director, que muito deu de si para o aumento do prestígio da associação, destacámos o louvor que lhe deu num breve e improvisado discurso: “ao homem, que não é demais dize-lo, conseguiu guindar o nosso corpo activo a um lugar merecido e destacado.”

Quem o conheceu muito bem, o admirava e manteve uma amizade foi o “nosso” grande chefe António Guedes, autor das memórias “Recordando... Bombeiros Voluntários”, publicadas no jornal “O Arrais”, que refere esses tempos e dá um impressionante testemunho sobre a acção deste bombeiro profissional, assim:

“Surpreende-me e penalizou-me deveras a inesperada noticia do falecimento do falecimento, ocorrido há poucos dias, do Chefe Artur José Pinto, do Batalhão de Sapadores do Porto, que durante mais de uma dezena de anos foi instrutor dos Bombeiros Voluntários da Régua.


Todos os sábados chegava num comboio da tarde e à noite, depois de jantar e das vinte às vinte e quatro horas, ministrava instrução e dava teorias aos nossos rapazes, repetindo o exercício no dia imediato, o domingo, das nove as 12 horas.


As “manobras” (como então se chamavam aos exercícios) que a nossa corporação executava, vinham já do tempo de Guilherme Gomes Fernandes, que a ministrava no Porto, aos domingos a bombeiros de várias corporações do país, entre os quais se encontram dois membros dos bombeiros da Régua - Camilo Guedes Castelo Branco e Aires Saldanha – que suportavam, da sua bolsa particular, todas as despesas resultantes das deslocações àquela cidade.


Eram dois “carolas”, que encaravam a sério – como deve ser - a vida de bombeiro e que adoravam (é o termo exacto), a sua corporação como o mesmo desvelo, o mesmo carinho e amor como o que um pai dedica a um filho extremoso.

Ora, a instrução que eles receberam, no Porto, e que depois foi dada à Corporação, Assim, o compreendeu Jaime Guedes, mais tarde, quando foi nomeado para presidir à direcção dos Bombeiros. Então deslocou-se propositadamente ao Porto e solicitou ao Inspector de Incêndios da Zona Norte e Comandante do Batalhão de Sapadores Bombeiros, coronel Serafim de Morais, que autorizasse que um graduado viesse rodas as semanas à Régua ministrar instrução à corporação local, pedido que foi imediata e gentilmente deferido.


E foi o Chefe Pinto que ele enviou, informando particularmente que era o graduado mais competente que tinha e que, certamente poria a corporação na “devida forma”, como de facto sucedeu.


Pois o Chefe Pinto angariou imediatamente grandes amizades nesta vila e pôs a corporação duma tal forma que até o Ministro do Interior, dr. Trigo de Negreiros, ficou absolutamente admirado com a precisão e a unanimidade de movimentos do piquete que lhe prestou honras, à entrada do edifico. E depois, no Salão Nobre, disse ao Comandante Lourenço Medeiros que supôs, até tratar-se de uma força da Guarda Nacional Republicana, tal a simultaneidade de movimentos na ocasião da apresentação de machados. E só então, reparando nestes, foi que verificou tratar-se de bombeiros, pelo que, muito elogiosamente, felicitou o Comandante e todo o Corpo Activo pelo aprumo, correcção e disciplina demonstrados.

Depois da minha passagem ao quadro honorário, os serviços do Chefe Pinto foram inexplicavelmente dispensados.


Julgo que foi um tremendo erro que cometeram.

(…)

Pois sou franco ao afirmar que discordei absolutamente da atitude drástica assumida não sei por quem, e que feriu profundamente o Chefe Pinto, conforme me confessou um dia em que, casualmente, o encontrei em Sampaio Bruno, no Porto.


Sinto imensas saudades desse bom amigo e camarada desaparecido, a quem a Corporação de Bombeiros da minha terra muito ficou a dever.”

Apesar de tudo, e respeitando a sua discordância, parece-nos que não timha razão. Levantada a poeira do tempo, podemos dar a nossa opinião sobre o assunto. Compreendemos a importância do chefe Pinto na formação dos bombeiros da Régua. Entendemos que, como seu amigo, o chefe António Guedes tenha defendido a continuação dos os seus serviços. Mas, nos finais da década de 60, sentiam-se mais mudanças no sector do socorro. Começava a falar-se em novas orientações e modelos de formação, como a criação de uma Escola Nacional de Fogo, para ensinar e preparar os bombeiros. Como seria de esperar, após dez anos, os seus métodos da instrução ministrada aos bombeiros ficavam ultrapassados. A Direcção e o Comando elogiavam-no pelos bons resultados obtidos graças ao seu valioso trabalho que, sem quaisquer dúvidas, contribuiu para melhorar o serviço de incêndios.

Por isso, devemos dar razão ao chefe António Guedes quando nos lembra que a este homem a “corporação de Bombeiros da minha terra muito ficou a dever.” Podemos até afirmar, que chefe Pinto vai ficar de corpo inteiro na história dos bombeiros da Régua.
- Peso da Régua, Janeiro de 2010, J. A. Almeida.

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terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Não Matem A Esperança - M. Nogueira Borges - Capítulos XV, XVI e XVII

Capítulo I
Capítulo II
Capítulo III

Não Matem A Esperança - Capítulo XV
Dezoito horas.
Os soldados rodeiam a fogueira onde coze o arroz que, com sardinhas de conserva, será o jantar. As armas quedam-se silenciosas, mas bélicas, junto deles e de mim. Os rostos dos soldados brilham distintamente à luz viva das linguetas de fogo, desenhando-lhes os contornos. Há os que riem com as anedotas contadas para passar o tempo; há os que fitam, sem pestanejar e de lábios colados, a panela que se vai sujando de fumo.

A lua, medrosa, começa a sair do ovo imenso que é o céu com a cor da noite. No poente longínquo, os restos de sol, como nos últimos focos dum incêndio gigantesco, tocam a selva. Vai escurecendo dum modo saudoso que nos dá uma sensação de frustração. Relampejando de x em x instantes, umas faíscas nervosas mostram-nos formas mal definidas de nuvens escondidas, esbranquiçadas e gorduchas de água, antecedendo os trovões que, na solidão do mato, são como urros de monstro revoltado.

Na base do planalto em que estacionámos, desenha-se uma circunferência escura e compacta de mata. As copas e os ramos juntam-se, desprendem-se, abraçam-se, agridem-se, formando um todo que, visto de longe, se julga impossível penetrar. No seu seio, contudo, há uma vida animal e febril mais respeitadora que as dos homens. No lado norte, erguem-se as labaredas de uma queimada que conseguiram furar a cúpula selvática e expandirem-se livres e triunfantes.

Os homens encarregados da segurança vigiam o sector de observação que lhes foi confiado.

O cozinheiro de ocasião avisa que o «jantar» está pronto. Come-se para sossegar a barriga. Uns, engolem lentamente e em silêncio, deixando ver perfeitamente a saliência que, na garganta, o arroz forma rumo ao estômago; outros, aqueles a quem a vida ensinou a serem optimistas (questão de hábito?), separam cada colherada com comentários que têm qualquer coisa de forçado.

Depois, a maioria, conversa. Alguns, mais sensíveis a estas coisas, retiram-se assobiando, baixinho, modas das suas terras; outros, ainda, como pasmados perante coisa nunca vista, fixam a lua com lábios em movimento, num monólogo interior.

A noite está adiantada para aqueles que vivem na selva. A lua é rainha. A orquestra do mato toca a sinfonia da vigília nocturna.

Acomodo o meu saco de dormir na cabine da viatura e deito-me, encolhido, no assento. Na caixa, os mais atrasados em procurar posição, impacientam-se até que ficam. Encosto melhor a cabeça à camisola que faz de travesseiro e adormeço com a lua a trazer-me saudades de alguém. De ti Rosita.

No lusco-fusco, os derradeiros fios solares entranham-se no matagal como serpentinas prateadas em confuso folgar. O capim alto ou rasteiro, as mangueiras, cajueiros, maúmas, lusares, tudo isto e muito mais se espaceja ou complica, agarra aqui, solta acolá, e de súbito, se, se contar, aparece uma clareira para uma machamba, para uma palhota e, às vezes, até para uma «temba», onde em noites de luar sedoso se dança o batuque para espantar espíritos maus que trazem a doença irremediável. E, acordando, repentinamente, o silêncio sepultado no inexplicável da noite, o piar taciturno do milhafre anuncia a chegada da toutinegra, murrambé, marrié, namurire e de mais passarada nocturna que toma conta das horas mortas.

Enquanto os homens dormem no seu descanso merecido, eu sonho, velando, com uma terra onde o amor seja sincero. Onde o homem seja respeitado no corpo e na alma. Onde os ruídos de guerra sejam o esvoaçar de aves por entre palmeiras; sejam risos de crianças sem fome; sejam os toques dos sinos, entoando as avé-marias, ao entardecer, na minha aldeia. Uma terra onde os homens caminhem de mãos dadas; se sentem a uma mesa e falem e raciocinem e resolvam na paz, no amor, na justiça feita verdade, não percam tempo nem dinheiro nem brinquem com os povos; se lembrem que a RAZÃO é a única força da vida, que nela assenta a formação do mundo e do homem; que negá-la é negar a existência daquilo que somos e em que vivemos, é aprovar o sofisma. Podem-se fazer milhares de acordos selados pelo dobro das assinaturas, mas se não forem acordados e selados pela RAZÃO, todos eles serão negativos e ofensivos, apenas farão procriar ódios e vinganças, revoltas e perseguições, guerras e mortes, apressando o mundo para o seu fim mais injusto e cruel: a sua destruição.

- Então, pá, alguma novidade?
- Nada.

Porque será que os homens precisam de olhar pela sua segurança? No mundo que sonho não seria necessário: os homens dormiriam de portas abertas, falariam com os corações abertos, competiriam para a vitória de todos, trariam sempre nos olhos a imagem dum Cristo Histórico extenuado na cruz.

E no meu adormecer lento e tardio, o feixe prateado dum luar poético traz-me a esperança desse mundo, no seu manto límpido, optativo duma realização futura.

Não Matem A Esperança - Capítulo XVI
A noite estava a nascer da barriga do dia. Eram cinco horas de Land-Rover. O calor apertava ainda, criando riachos de suor no corpo. Dois furos, quase seguidos, arreliaram a nossa paciência e a do «monhé» que atrasou a sua viagem para nos ajudar. Os solavancos, provocados por buracos-surpresa na picada, faziam-nos dar saltos de marsupial. Devíamos chegar ao acampamento antes da lua. Lá, arranjaríamos um «pisteiro». Um javali, perdido, obrigou-nos a outra paragem. Saltei. Levei a arma à cara. Apontei. Olhou para mim. Emocionei-me... Deu meia volta e partiu à desfilada...

- Então não atiraste?!
- O tipo não estava quieto...

Partimos de novo aos saltos. Pus-me de pé. Ofereci-me à brisa do entardecer, deixando que ela me chicoteasse a face, revolvesse os cabelos, refrescasse o corpo. Acalmei. («Bolas, falhar um javali!...»). De quando em vez, um negro desmontava da sua «ginga» e cumprimentava cheio de salamaleques, uma saudação demasiado espectacular, não sincera, consequência duma tradição imposta, nem sempre pelos métodos mais próprios.

- Cautela! Agarrem-se!

Finquei-me bem de pés e mãos e o pontão foi passado não sem novidade: uma garrafa-termos, que levava cerveja, partiu-se.

- E agora?...
- Não se bebe...

Um bando de macacos atravessou a estrada, lançando à nossa passagem guinchos estridentes. Olhei para trás e vi alguns empoleirarem-se nos braços duma mangueira.

Chegámos ao acampamento.

Falámos e bebemos cerveja gelada com um caçador profissional: atarracado, mas entroncado de rijos músculos, tez morena, abundante calvície, falares e modos desembaraçados. Ama o mato. Enfiou-se nele novo. Construiu casa de alvenaria, casou com uma mulata, aprendeu a matar caça e a vendê-la, ninguém o chateia, vive para os filhos, os negros respeitam-no, nuca teve «milandos». Detesta as cidades. Adora a simplicidade do viver na selva. Emprestou-nos um pneu sobresselente, agradecemos o acolhimento e partimos. Sem «pisteiro» porém. Não apareceu nenhum.

A noite germinava. Como uma flor se abrindo. Como um ser humano sem maldade e sem estupidez. Com ela todo o seu fantástico festival de sinfonias dos bichos-habitantes dum mundo misterioso, dos uivos distantes da quizumba, de estrelas avulsas crivadas num céu de imensidão que impressionava e subjugava. Como era bela aquela noite no mato! Quem me dera ser poeta autêntico para transmitir a beleza, a ânsia, a alegria, a tristeza por mim sentidas nessa noite tão metafísica da minha recordação! Apetecia me ter asas e voar por aquela escuridão imensa. Rebolar-me no capim já cacimbado, reunir os bichos todos daquela noite e, juntos, entoarmos uma poesia-mensagem feita de paz e amor que ecoasse por todos os cantos da terra! («Lírico» - dirá o leitor. «Não!» - brado.).

O condutor bateu com a mão na porta.

- Que é?
- Leopardo!
- Onde?!
- Ali!

Dois olhos amarelos e brilhantes estavam hipnotizados pelos faróis. Tiraram-me a arma das mãos. Não me mexi. Um chorar cortante. De esfrangalhar os nervos. Um calafrio terrível, gelado, a, percorrer-me a espinha. Os pêlos, como agulhas, em pé. Senti-me mal disposto, sem forças. O tiro falhara e fiquei satisfeito que assim tivesse sucedido.

Virámos à esquerda, deixando a picada principal. A princípio, o capim era escravo de grossas mangueiras e cajueiros. O trilho largo, aberto pelo primeiro carro que lá entrara e consolidado pelos seguintes, seguia por entre mato denso que roçava o Land-Rover; alguns ramos, mais inclinados, obrigavam-nos a baixar a cabeça; os solavancos eram maiores. Algumas queimadas dispersas ardiam sonolentas, empestando o ar dum cheiro acre e abafado. A lua, com o seu D mentiroso, chamava as estrelas.

- E se parássemos para comer qualquer coisa?...
- Mais logo...

Ligou-se o farolim à bateria e os faróis apagaram-se.

- Agora nada de atirar ao calha!...

Procurei, assim como os outros, posição certa e começámos a seguir o jacto do holofote. O mato espesso, entrecortado por algumas clareiras queimadas, não dava grandes esperanças. Ansiávamos a planície. («Lá a caça é maningue!»). O bater cavo duma mão no tecto do tejadilho. A viatura parou. Cegos pela luz dois olhos reluzentes.

- Atira tu...

O tiro partiu, seco como uma chicotada e a lonjura trouxe-nos o eco. Grunhidos diferentes, aqueles grunhidos duma fera ferida, disseram que a bala acertara. Saltei e embrenhei-me na vegetação, guiado pelo foco. Perdi-me em procuras, seguindo os movimentos daquele. Regressei desolado...

- O «tipo» rastejou. Não pode ir longe.

Alguns milhanos apareceram e, como um comboio saindo de um túnel, entrámos na planície. Esmagadora! O céu formava um arco de horizonte a horizonte, ligando-os. A lua e as estrelas pareciam maiores. O capim rasteiro dava-nos liberdade de visão. Senti-me pequenino. Olhava para o alto, girava os olhos à volta, e tinha a sensação de ser submetido por algo que não via.

- Pára!

Mais uns olhos obliterados. («Não posso falhar!»). E não falhei. O chango dava às patas em aflitos estremeções. Os seus olhos tristes e nevoentos traziam-me um sinal de morte. Tentou erguer-se, numa manifestação última de vida, e tombou. O seu ventre, ainda a latejar, só deixou de parar quando o seu corpo retezou finalmente. Içaram-no para a caixa de carga. Acendemos uma fogueira que nos daria a direcção conveniente se nos perdêssemos naquela vastidão. Puxei dum cigarro. Uma travagem brusca e aí vou eu, de cabeça, direito às pernas do homem que ia a farolar. Quando me levantei já o tiro fora. Outro chango. Mais dois olhos de morte a acompanharem-me. O cacimbo gelava-me o corpo, penetrando-me os ossos. Vesti uma camisola grossa, mas, mesmo assim, não aqueci. Voltei a sentar-me e a contemplar aqueles olhos muito abertos, como se quisessem perguntar qualquer coisa, olhos que nenhum mau feitiço lançaram a quem os matou. Comecei a chatear-me daquilo. Pensei que fora um homem que matara sem razão, sem verdade, nem sequer com honra, nem igualdade de situações: farol para ali, olhos fixos e mata! Há alguma ombridade?! Entreguei a arma e preparei-me para adormecer, encostado aos corpos mortos de dois seres roubados à selva.

Não Matem A Esperança - Capítulo XVII
O avião chegara ao fim da tarde e trouxera o correio. Teve uma carta da mãe. Falava-lhe da sua casa, da sua terra, de saudade e tinha palavras de incitamento suave e maternal à paciência e esperança humanas. Uma frase, porém, lhe ficara e se agitava dentro de si: «Meu filho tenho esperanças em ti. Ainda és novo e hás-de ser alguém.». Aí estava. Sim, ele queria ser ALGUÉM válido que as gentes vissem que merecia a pena ser meditado. Desejava-o muito. Queimava-o um fogo quente e acariciador, provocando-lhe o nervosismo dos insatisfeitos. Um fogo que o enlouquecia de ânsia de concretização. Não era vaidade nem ambição exageradas. Era um desejo humano de se realizar, consciencializar, e mostrar aos cretinos algo que os tornasse mais imbecis e aos racionais oferecer uma ajuda para a sua luta contra os portadores de fantasmas.

Lá fora, o sossego era violentado pelo coaxar dos batráquios no atoleiro, pelo pipio das aves vadias da noite, pelos «uis» agoirentos, soando ao longe, das hienas manhosas, e que tinham qualquer coisa de sicário. As estrelas, na altura, estavam privadas de lua. De quando em vez, uma mudava de sítio numa correria maluca até se perder sem que mais a nossa vista a alcançasse. O gravador falava baixinho (o botão de som estava no 2) as músicas da sua preferência. A bobina rolava lenta. «Abriu» José Gomes Ferreira:

Há anos de raiva
Que te busco em vão
Melodia!

A sua melodia era a esperança. Esperança de encontrar nas horas do amanhã a efectivação de todos os seus ideais, repletos de mensagens gritantes de revolta e nojo pelos homens que se assassinam mútuamente; de mensagens triunfantes de amor e alegria para com os povos que vivendo na liberdade, lutando com as armas da inteligência, da razão, do suor e da vontade indómita de vencer pelo trabalho honrado, esgadanhando a terra desértica e escaldante com as suas próprias mãos, plantaram as árvores que deram os frutos das belas realidades sociais.

Mas quem te ouve, Melodia,
Para além do contorno do silêncio?

Não seria apenas no limite do silêncio que a sua voz se escutaria. Havia de gritar, mais alto que o trovão, a sua raiva contra os homens estultos, dominados pelas algemas da estupidez.

Pobre voz que trago em mim
E há-de morrer ignorada
Nas trevas dum sol profundo
Sem luas de superfície

A sua voz seria para os que a quisessem ouvir. Havia de nascer no fulgor duma aurora de liberdade, misturar-se com o chilrear das aves bem dispostas da manhã, penetrar nos corações das gentes, prolongando-se pelas noites de lua cheia ou lua nova ou quarto crescente ou quarto minguante (todas as noites de todas as luas). A sua voz não morreria ignorada pelas pessoas honestas.

O vento divulgava-se pela rede antimosquiteira da janela, como se viesse fazer coro com a música, com a poesia, com os seus pensamentos. O relógio duma Igreja tropical repetiu doze vezes o mesmo som. O seu colega de quarto entrou.

- Então pá?
- Então o quê?
- Nada de novo?
- Novo? Mas isto é sempre a mesma porcaria?

Ele sorriu significativamente. Puxou dum cigarro e leu mais uma vez: «(...) Ainda és muito novo e hás-de ser alguém.».

Fechou-se a luz e. olhando a ponta do cigarro, repetia só para si: «ALGUÉM... ALGUém... Alguém... Alguém... alguém...».
- Manuel Coutinho Nogueira Borges

sábado, 19 de dezembro de 2009

Feliz NATAL !


Cada um de nós faz parte desse Milagre, dessa Maravilha que é o nosso Planeta.
Cada um de nós tem um compromisso muito importante e significativo com a VIDA.
 FELIZ NATAL e UM ANO NOVO ABENÇOADO!

(Evite sobreposição de sons desligando o player da "Voz do Douro - Rádio Douro FM" localizado no menu lateral direito, um pouco abaixo deste post.)