sábado, 19 de dezembro de 2009

História do Bairro dos Bombeiros - Do sonho à realidade


A AHBV do Peso da Régua é, desde 1986, proprietária de um bairro de habitação social – num total de 30 fogos - construído para as famílias dos seus bombeiros voluntários, que integram o quadro do corpo activo.

O bairro dos bombeiros da Régua, como um equipamento de cariz social, complementar aos fins da associação deve ser caso inédito país. Em certa medida, a sua construção é mais um bom exemplo da ambição dos projectos sustentáveis que, durante a sua centenária existência, a associação tem materializado, engrandecendo o seu historial.

A história da construção do bairro dos bombeiros esteve marcada por muitas contrariedades e vicissitudes. Com o esforço e a determinação de muitos e bons dirigentes ultrapassaram-se todas as barreiras e dificuldades. A sua edificação começou como um sonho. A persistência humana tornou-o numa realidade.

Contribuíram para a construção do bairro muitos protagonistas e, sem quaisquer dúvidas, uns exerceram um papel mais decisivo e influente. De uma maneira especial, todos foram audaciosos para realizarem esta magnifica obra, apesar dos inesperados contratempos, mas que serviu para elevar a condição dos bombeiros.

Como obra de grande dimensão, é normal que se tenha iniciado num mandato social e se tenha prologado pelos imediatos, já com novos dirigentes. Sem se desconsiderar o papel individual de certos directores, um empreendimento como este, quando tudo não corre de feição, como foi o caso, terá de ser considerado um feito colectivo, de muitas vontades e de pessoas que, num ou noutro momento da obra, deixam as suas marcas. Os seus testemunhos evidenciam que acreditaram na afirmação e vitalidade da associação, acrescentando-lhe um património importante e valioso.

A ideia da construção do bairro dos bombeiros surgiu no seio da Direcção do Dr. Júlio Vilela (1954-1963). Em confidência com o senhor Noel de Magalhães – que integrou essa direcção - ficamos a saber que as primeiras tentativas para se fazer o “nosso bairro” sucederam nos mandatos do saudoso advogado reguense.

Em 1960, o Dr. Júlio Vilela solicitou ao Ministro do Interior um pedido de comparticipação para a construção do bairro. A resposta veio negativa, dando conhecimento “ser impossível dar satisfação aos desejos dessa Direcção”. Apesar de tudo, a sua Direcção não desistiu e recorreu ao outro ministério governamental para ter apoio, lembrando que: “não querendo nós descurar o assunto, ousamos vir novamente á presença de V. Excia para solicitar que o nosso pedido vem há a ter viabilidade, pois só no Ministério das Corporações nós esperamos o amparo para a realização desse sonho que se há-de tornar realidade.”

Desta vez, foi conseguido o apoio do governo para financiar. Chegam a ser disponibilizadas pequenas verbas para comparticipar a obra. O terreno, onde deveriam ser erigidos os 32 fogos, estava escolhido. O projecto de construção das casas encontrava-se também em conclusão, sendo o seu desenho desvendado no jornal “Vida por Vida”. Apenas faltava negociar um empréstimo na Caixa Geral de Depósitos, o qual não deve ter sido deferido e, assim esta obra, não se chegou a iniciar-se com os seus primeiros sonhadores.

Se era forte e determinada a convicção desses directores ela não se perdia nos mandatos das direcções imediatas que elegem a construção do bairro o principal objectivo quer nos orçamentos quer nos planos de actividades.

Estabelecem-se, em 1970, negociações com a Casa do Douro e a Direcção que tem como seu presidente o Dr. José Lopes Vieira de Castro (1968-1971) formalizava a compra de uma parcela de terreno, com área de 5.000 m2, na rua Dr. António de Almeida, destinada à construção do bairro. Está dado um grande passo para o surgir da obra. O seu início aguarda melhor momento e directores mobilizados em reiniciarem todo este processo.

Em 1974, a Direcção liderada pelo Dr. Aires Querubim (1972-1980) toma a decisão de escrever ao Fundo de Fomento de Habitação - Delegação do Norte, a pedir-lhe apoio para a concretização da obra e, mostrando trabalho, envia-lhe um fundamentado estudo do levantamento do terreno. Esse organismo público conclui pela “viabilidade e utilidade da realização da obra”. De seguida, deslocavam-se à Régua os seus técnicos para procederem ao estudo da implantação e se encarregarem de elaborar o projecto para a “construção de 30 fogos da espécie T-3e T-4”.

Executado o projecto, a direcção do Dr. Aires Querubim promove um concurso para a “construção do conjunto habitacional dos Bombeiros da Régua”. Na sessão de abertura das propostas, realizada no dia 23 de Setembro de 1978, no Salão Nobre da Câmara Municipal da Régua, fica-se a saber que concorrem ao concurso duas empresas com sede na Régua. São elas a “Construtora do Douro, Lda.” e a firma “José Ermida Lopes & Irmão, Lda.”, que apresentam, respectivamente, o valor de 29.876.355$40 e de 28.875.053$50. Decidida uma reclamaçã, a direcção da associação adjudicava à construção da obra, em razão do valor mais baixo, à firma “José Ermida Lopes & Irmão, Lda.”.

Após contactos a nível político, a direcção consegue um financiamento para a obra no Fundo de Fomento de Habitação. A autorização pertenceu ao Secretario de Estado da Habitação e Urbanismo, Casimiro António Pires, que a faz publicar num Aviso – Diário da República, II Série, de 22 de Março de 1980 - a “conceder aos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua uma comparticipação de 30.0000$00 destinada à obra de construção de trinta fogos.”

Em 3 de Setembro de 1980 será outorgado o contrato de empreitada. Assinava-o em nome da associação o secretário Manuel Pinto Dias Montezinho, um director zeloso, competente e atarefado a substituir Aires Querubim, empossado Governador Civil do Distrito de Vila Real, em 14 de Fevereiro de 1980. Nesse contrato, ficava estabelecido na cláusula sexta que o prazo para conclusão da obra era de 24 meses, contados da assinatura do auto de consignação. Lavrado e assinado o auto de consignação em 1 de Outubro de 1980, iniciam-se os trabalhos de empreitada. Ainda com pouco obra executada – foram apenas pagos cinco auto de medição - os trabalhos paravam no dia 2 de Novembro de 1981, retirando a empresa construtora os seus operários, materiais e as máquinas.

No dia 18 de Novembro de 1981, o fiscal da obra, o Eng. José Manuel Correia Rodrigues dava aos directores da associação uma má noticia, ao informar que “prevê-se que os trabalhos não sejam reiniciados dado que parece estar iminente um processo de falência do empreiteiro”. A sua previsão viria a verificar-se. A nova direcção, presidida pelo senhor António Bernardo Pereira (1982-1983) ficava com um problema grave nas mãos para resolver na justiça. Com as obras paradas, em Janeiro de 1982, a sua direcção apresenta no Tribunal Judicial da Régua uma “Notificação Judicial Avulsa” contra a empresa construtora, a participar-lhe “que rescinde o aludido contrato de empreitada por culpa unicamente imputável à requerida”.

A notificação judicial não teve oposição. Para efeitos da posse administrativa, no dia 13 de Janeiro desse ano, era feita a medição da obra executada e a relação do material existente. Esteve presente pelo Fundo Fomento de Habitação, o Eng. Defensor de Castro e pela associação, o presidente de direcção, António Bernardo Pereira, o secretário Júlio Alfredo Mota e o fiscal da obra, não se fazendo representar da construtora. Como se esperava, a empresa de construção entra em processo de falência. O Dr. Martins de Freitas, em 22 de Abril de 1982, informava a direcção dessa situação. Sendo este advogado nomeado administrador da falência, pedia que o informassem se os créditos que aquela dizia ter a receber da associação pela obra adjudicada correspondiam à verdade. A direcção respondia negativamente, ao fazer constar que "como as entregas que esta associação fez à referenciada totalizam 4.440.320$00, resultam daí um crédito a nosso favor de 2.320.454$00, cujo pagamento desde já reclamamos."

Estando a ser resolvidos problemas jurídicos com a seguradora Aliança Seguradora para reaver a caução, o que o advogado Dr. Araújo Correia consegue receber, a direcção de António Bernardo Pereira não deixa a obra parada. Com o apoio do Fundo de Fomento de Habitação prepara o programa para um “concurso ilimitado para a arrematação da empreitada de conclusão da construção”. Aberto por anúncio em 13 de Janeiro de 1983, o prazo para a apresentação das propostas decorreu até ao dia 2 de Fevereiro desse ano. Concorre a empresa de construção “Eusébios & Filhos, Lda.”, apresentando um valor de 45.000.000$00. Assinado o auto de adjudicação em 11 de Março desse ano, recomeçam as obras de conclusão do bairro.

Eleita uma nova direcção, dirigida pelo Dr. José Luís Andrade (1984-1987) que acaba por receber uma mão cheia de problemas. Apesar de terminada a empreitada, constatava-se que faltavam fazer obras de acabamentos e facturas da empreitada para pagar, tornando-se necessário recorrer a um empréstimo. Concluídas as obras, no dia 22 de Janeiro de 1986, este director entregava na Repartição de Finanças a declaração, por ele assinada, para a inscrição na matriz do bairro. Deveria começar o processo de entrega das casas que faziam falta às famílias de bombeiros a viverem em situações desconfortáveis. Mas, tal não aconteceu neste mandato. Mantém-se trinta casas desabitadas durante três anos.

Uma nova direcção sai das eleições, tendo à frente o professor Fernando de Almeida (1987-1990). Sem mais demoras, encarrega-se de finalmente entregar as casas aos bombeiros mais necessitados. A ele se fica a dever o trabalho de organizar os pedidos de inscrição, celebrar os contratos de arrendamento, estabelecer o valor das rendas - no regime apoiado e com uma bonificação para os bombeiros - e seleccionar as primeiras famílias.

Estava concretizado mais um sonho dos bombeiros da Régua. Demorou mais algum tempo a tornar-se visível, sobretudo aos olhos dos que nunca acreditaram. Não sei o que eles disseram - nem interessa - mas nas páginas da história da associação ficava escrito o esforço de muitos directores – aqui recordados - que tinham conseguido erigir no “coração da cidade”, cinco prédios de habitação social, para morada das famílias dos bombeiros.
- Peso da Régua, Dezembro de 2009, J. A. Almeida.
(Clique nas imagens acima para ampliar e visualizar melhor)

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Não Matem A Esperança - M. Nogueira Borges - Capítulos XI, XII, XIII e XIV


Não Matem A Esperança - Capítulo XI
Tarde de ambiente saturante, com berros deste e daquele, sonolência de espíritos, hábitos das coisas repetidas até à saturação.
 
Ao longe, as ondas da baía dobram-se e desdobram-se na languidez do cansaço. A selva parece crescer vertiginosamente, beijada pelas águas. Na praia, há corpos tostados que arrastam a monotonia do tempo e a sensaboria de nada fazer; nas rochas, lá adiante, corpos negros apanham as conchas do seu sustento.
 
A noite aproxima-se. O seu silêncio em breve nos trará a calma ou a revolta dos corações submetidos (corações e almas e corpos e tudo). As estrelas e a lua darão a ânsia e os desejos de libertação; as esperanças da fraternidade; a fúria que as pessoas conhecem; a imaginação esfomeada, traduzida nos exauridos sentimentos e dos sonhos amarfanhados por não se poderem dizer, pois o mundo está a abarrotar de cobardes e medrosos ou sejam, portanto, os tipos bem colocados na vida (sim, nem todos, claro). O cansaço não é apenas físico é, também o amolecimento resultante da desmoralização momentânea que não permanente. E é nestas alturas que se lembra:
 
Era uma noite de lua esclerótica e estrelas de mármore. As pessoas vinham para as varandas ou para as soleiras das casas. Crianças rebolavam-se nos atalhos enquanto as mães ralhavam. Era Verão. A terra estava quente e havia pessoas que dormiam sobre ela. Os pastores deixavam a serra e vinham, de cajado na mão e fome nos olhos, descendo para a aldeola.
 
Um aglomerado rural que conhecia a indiferença dos homens que mandavam e as negaças do progresso que não lho davam a saber, que trabalhava de sol a sol nas cumeadas agrestes. Mas, pouco a pouco, a sua vontade transformou o negativismo na produtividade sem retrocessos.
 
Ele, só, no cimo do monte, contemplava essa aldeia, berço do seu nascer, em que forjara o seu ente, conhecera o amor e o ódio dos homens (dos homens com poder de odiar). Dera-se com alma e coração, sem pedir nunca prémios, a essa gente simples (mesmo na inteligência) onde, porém, ainda se degladiavam a maldade, as invejas, etc., etc. Apetecia-lhe dizer muito alto uma poesia criada e amadurecida no seu pensar constante e que iniciava assim: «Ó povo!, onde estás tu?». E parecia-lhe ouvir ressoar pelas ladeirasdos montes aquele seu grito que se ia encolhendo na indiferença e as pessoas fugiam para não responderem à sua pergunta.

«És um POETA!» - disseram-lhe um dia, cheios de cinismo. Riu, riu muito, com nojo e com raiva, vomitou tudo que tinha lá dentro, escarrou na direcção dos que assim falaram, mas depois arrependeu-se e chorou, chorou com pena e com amor porque os poetas quando choram é com e por amor universal. E então descia às ruas cheias de buracos e ouvia cantar a poesia nas bocas das moçoilas alegres e nos gemidos das crianças que pediam pão às mães que saíam da padaria. Recordava-se daquelas noites em que as nuvens atiravam lágrimas de chuva e as via escorrer, prateadas, pelas vidraças da sua casa, construída pelo esforço dos seus antepassados que repousavam numa campa fria e negra, consumindo-se aos poucos para que outros ocupassem o seu lugar. Passavam-lhe na memória aqueles entardeceres tristes com as avémarias ressoando no campanário antiquado da Igreja a ruir e que nunca mais era composta (o padre até já fizera um peditório); com os trabalhadores de enxadas aos ombros arrastando-se, cabisbaixos, sob os quintais do cansaço e a lua nascendo também cansada de tanto repetir o seu nascer. E depois vinham as estrelas dizer que já eram horas de deitar; e depois os bêbados, berrando e espancando-se, diziam às gentes da aldeia que também havia estúpidos, gastando o dinheiro na embriaguez, enquanto, em suas casas, os filhos não dormiam com fome; e depois, então, o silêncio esmagador, com corujas e mochos lastimando remorsos que arrepiavam e faziam doer. Ah! Noites da sua juventude em que os namorados escondiam os beijos na dobra duma esquina; em que os malfeitores, embuçados na capa das esperas, faziam vinganças à moda púnica. Noites de revolta, de rosto marcado pelo estilete da angústia; noites de fados de estudante, furando o sonambulismo da natureza, nos acordes da guitarra que gritavam poemas e a voz cantava: «O meu menino é de oiro (...)». E continuava, sempre, noite fora, até o sol nascer.

Mas que fizeram ao menino de oiro? Mataram-no? Não. Não o mataram. Os homens já não matam meninos. O menino de oiro continua vivo. É que ele só morrerá quando a esperança dos poetas morrer.

Não Matem A Esperança - Capítulo XII
O futebol, com as suas habituais consequências, terminara. A música do portátil do Zulmiro Taberneiro era dominada pelo vozear, quase perpétuo, de bocas tresandando a ebriedade.

- Tu é que jogaste mal Trunfasses!
- Homessa!... Onde tinha eu os trunfos?!
- Puxavas paus! Neles havia segurança cá no gajo!
- Eu é que ia adivinhar?
- Dei-te o sinal! Bati ou não bati o pau? Tu é que és um burro a jogar!
- Ai eu é que sou Burro?!
- Não, sou eu... Baralha lá isso... Vamos a outro risco... Agora temosde dar bandeira...

Naquele ambiente pesado, tão pesado como dizem ser a mão dum ditador, confundiam-se os vapores do álcool, ingerido em abundância para gáudio do Zulmiro, e as nuvens de fumo provenientes dos mata-ratos e dos três-vintes. No chão térreo, pregavam-se as botas enlameadas; os escarros avermelhados pelo tinto e as poças de resíduos daquele, pendidos dos copos que mais se agitavam como que a impôr as suas razões, assemelhavam-se a borrões dispersos em painel de ensaio. A um canto, sentado na saca de arroz, o Pelotas observava, com um sorriso de desdém, aquelas faces congestionadas pelo vinho e pela exaltação, alguns de olhos já vidrados e tontos. Virando-se para o Zé da Aninhas que, de ponta apagada colada nos lábios, encostado ao bidão de petróleo, parecia alheado de tudo, perguntou:

- Em que pensas Zé?
- O quê? Em que hei-de pensar? No raio da vida! Não consigo pagar os calotes! O meu Zé todos os meses me pede dinheiro, diz que tem passado muitos sacrifícios quando vai p'ra selva e ainda por cima tenho a patroa doente, como tu sabes.
- Que é que o médico disse?
- Que tem de ser operada. E onde tenho eu o dinheiro para pagar? A algum lado o hei-de buscar...
- Olha que sempre há cada uma! Tu és pobre! Quem não pode pagar não paga! Ou a saúde duma pessoa já tem preço?! Homessa!... Atão, agora, só os ricos é que tinham direito a estar doentes, não?! Raios de mundo este! Até dá vontade um home esfrangalhar tudo, carago!
- Se dá...
- Mas se precisas de algum diz lá... Tenho pouco, mas inda...
- Obrigado Pelotas...
- Aqui não há obrigados nem meio obrigados! Nós andamos no mundo não é para passarmos o tempo com agradecimentos! Pagas quando quiseres. Depois da vindima ou quando calhar. Cá comigo é pão-pão-queijo-queijo! Amanhã vai a minha casa.
- E se a «tua» sabe que me emprestaste dinheiro?
- Homessa!... Tem alguma coisa com isso? Quem é que o ganha? Quem manda na minha casa? Quem é? Diz-me caramba! Quem é que sua que nem um macho e anda ali com a enxada nas unhas? Sou eu ou é ela? Diz lá, anda! Homessa!...
- Tá bem, não te zangues...
- E deixa lá, Zé! A vida cá se arranja, mas isto inda há-de dar muita volta! Ai há-de! Inda havemos de ser ricos!
- Deus te ouvisse...
- Há-de ouvir, que Deus é justo e sabe ver onde está a verdade e a mentira! O sol quando nasce é p'ra todos, ouviste?
- Já o senhor comendador diz a mesma coisa, mas...
- Deixa lá os outros. Os outros são os outros!

Vozes gritadas continuavam a misturar-se com a música, com as lamentações, com o vinho que se ia entornando, com os escarros que a poucoe pouco assoalhavam o chão térreo, com o fumo dos cigarros, com as arrelias da sueca.

O Zulmiro Taberneiro, de sorriso aberto até às orelhas, continuava a encher copos com mãos de gatunice já velha.

Não Matem A Esperança - Capítulo XIII
Foi dos primeiros a subir. Constantemente perguntava-se: «Voltarei?». A dúvida, uma dúvida angustiante atormentava-o. Os últimos momentos, antes vividos, confundiam-lhe as ideias. Os militares continuavam a desfilar aos sons marciais da fanfarra, misturando-se-lhes gritos desequilibrados, lenços agitados por mãos já cansadas de tanto se despedirem, corações fracos pela emoção, olhos que já nem lágrimas tinham.

O barco apitou, cumprindo um hábito. Sem saber porquê chorou. À medida que aquele se afastava mais perturbado se sentia, um vazio enorme que lhe furtava as palavras à relva da língua.

Inesperadamente, irromperam os acordes do Hino. Perfilou-se num «sentido» hesitante, pouco militar. Mãos no ar, adeus sem fim, acenos de imponderabilidade; uma criança chorando como se lhe tivessem batido, pois que via sua mãe chorar e ela não sabia por que chorava sua mãe. (Oxalá amanhã não chegasse a vez dela chorar também). Dominou-o uma fortíssima comoção. A seu lado, os soldados deixavam cair lágrimas, como gotas de chuva a escorrer pelas vidraças em noites de Inverno.

O cais ia sendo cada vez mais pequeno. Aquela multidão ondulando os lenços, parecia que movia um lençol gigante. Os rostos perderam-se na distância. À sua frente, um soldado dirigia gestos ineptos, sublinhando-os com gargalhadas iguais àquelas que costumam ser dadas nos filmes de terror. Estava perdidamente bêbado. Mantinha, na mão, a garrafa de aguardente que metia à boca de vez em quando. «Haja alegria! Adeus! Adeus!». E ria, ria, estremecendo todo. Deixou pender a mão numa posição impossível.

O barco ia-se afastando, afastando.

Os alto-falantes anunciaram o começo do almoço. Na sala de jantar, os comentários eram duros e diversos no encarar das pessoas.

Começou a sentir-se tonto. Os soldados andavam de pratos nas mãos sem saberem para onde ir.

Num recanto do «deck», dois tentavam animar o companheiro ébrio que, encolhido no chão, chorava como uma criança acabada de nascer.

Lisboa é um conjunto de pequeninas silhuetas, tapadas por uma névoa de seda. A lancha dos pilotos junta-se ao navio. O piloto desce. Aquele apita bem, há votos de boa viagem. A fragata, que estava ao largo, acompanhava-os durante algum tempo em manobra de circunstância, Gaivotas voam funânbulas, elevando-se, para depois se lançarem lá do alto em êxtases picados que terminam rasantes.

O ambiente asperiza-se. Topa aqui e ali, soldados debruçados nas amarras, olhando para o além tapado. Bocas abertas e deformadas lançamfora o que almoçaram. Outros, porém, resistem bem e até tocam gaita de beiços. No seu andar perdido para passar tempo e esquecer coisas encontra camaradas chorando ou, então, completamente absortos, de olhos arregalados, sem verem nada; o capelão que, há pouco tempo lhe chamara piegas por as lágrimas lhe pingarem, chora por baixo de uns escuros óculos de sol e geme: «Minha mãe!». Olha o mar, as ondas agredindo-se em conflitos constantes. É triste partir para longe, um longe onde a guerra existe e as guerras são todas más porque matam gente, gente que dispara para se salvar, que morre e mata sem tempo para uma interjeição – mas quem fez as guerras? Custa imenso deixar a terra em que nos fizeram nascer; abandonar os frutos incompletos, ainda verdes de todas as esperanças; os amigos com quem se convivera, arriscando profecias, sonhando sonhos de verdade; a família que abafa os gritos medonhos da revolta reprimida.

Navegava-se moderadamente. O barco, rasgando as águas, lança para os lados babas de espuma, Chegam os primeiros radiogramas. Os que os recebem não têm grande vontade de os abrir. Já sabem o que dizem: «Todos estão contigo. Felicidades e um regresso rápido.». Palavras invisas que atiçam labaredas íntimas; palavras obrigatórias nas escalas de preços, compradas ao metro das ideias; palavras textuais, sacramentais como num negócio jurídico e que não podem ser mudadas na sua fórmula sob pena de nulidade. Procura-se alguém para conversar. Cedo acabam os diálogos; é que para se dialogar tem que haver ambiência de liberdade e alegria. Pensa-se muito mais do que se fala e, quando assim é, algo vai mal. Os relógios são atrasados uma hora.

Foi para o camarote e adormeceu com o embalar do barco.

Não Matem A Esperança - Capítulo XIV
Uma e meia da manhã. Iniciou a sua ronda de serviço. Foi à ponte. A lumieira, avivada de quando em vez, do cigarro do vigia, dizia-lhe que alguém velava pelo bom rumo do navio. Da chaminé, preta e bojuda, espessas fumaradas rápidamente desfeitas e levadas para a popa pelo vento gelado; o som equitativo do matraquear dos motores saído da casa das máquinas, pelas clara-bóias levantadas, falava do máximo de velocidade que o paquete levava. Algumas bocas roxas e abertas, roçagadas pela brisa forte da madrugada, dos soldados dormindo nos «decks», davam-lhe pena e sono. Dos porões, vinham, até cá cima, vozes deturpadas pela surdina e pela profundidade daqueles e barulhos de arrastar caixotes. Nas cobertas mais abrigadas, os soldados persistentes ressonavam no meio de tábuas, malas, botas, fardas e um cheiro acentuado de suor. Nos canis, os cães mexiam-se inquietos e um mais corajoso furava a noite com uivos tristes (saudades da terra...). Lá ao longe, uma luz nascia na curva do horizonte. O navio marchava convicto das milhas que percorria, noite dentro, como um gigante dominador. A ondulação era sossegada. Os camaradas das noitadas do presunto («Eh! Pá, são os restos!»), chouriço («Olha que não foi deito de carne de burro!»), cerveja, do jogo e das saudades, riam um riso frio como o vento que ele sentia no seu corpo. Foi atéà proa. Sentir-se só como os gemidos do vento, com o marulhar das águas, com o abaixo-acima daquela e com a imensidão que o rodeava. Contemplar o mar, a noite, o horizonte que nunca se alcança; o mar-mundo, a noite-saudade, o horizonte-ânsia, Inclinou-se para baixo. A quilha rasgando as águas, com um permanente acento circunflexo de espuma doirada pelo luar, lembrava-lhe os arados da sua aldeia, abrindo a terra, negra e húmida no Inverno, ressequida e amarelecida pelo Estio. E recordou a sua aldeia, a sua aldeia de ruas cheias de lama, caminhos que nunca mais se arranjavam, vivendo de promessas, promessas que vinham lá dos grandes, mas que, afinal, nada tinham de grandeza. Seu mundo onde nascera, vivera sua vida realidade ou irrealidade, criara e desmembrara os seus sonhos, formara e destruíra os seus amores de carne ou de espírito, tragara ou mastigara a sinceridade ou a cobardia dos seus pensamentos, onde, em noites sem fim, malucara, alagado em suores de insónia e de ideais, as raízes das suas origens. Olhou o céu: limpo, sem pecado. A luz metálica lançando poesia e saudade sobre as ondas, sobre o barco, sobre ele, umas avulsas estrelas de vidro, de ambiente de cabaret, numa noite que não era sua. Lá bem longe, descansou os olhos, das vertigens do infinito, nos pequenos novelos de espuma que eram luz na escuridão da noite.

O navio navegava sempre, sem hesitações, comendo milhas para cumprir horários, levando sonhos de adormecidos ou de acordados e sobressaltando as águas do seu sono.
- Continua.

Não Deixem Morrer a Linha do Douro...

Recordando e relendo
Em 3 de Dezembro de 2007, no Youtube:
Uma viagem de comboio pela espectacular Linha do Douro da Estação de S.Bento (Porto) até ao Pocinho, o actual fim da linha.
O previsível encerramento da linha a partir da Régua é um atentado à nossa inteligência; um acto criminoso que não pode ser cometido.
"A Linha Ferroviária do Douro tem 170 Km de extensão e desenvolve-se na sua maior parte junto às margens do rio Douro, ligando actualmente o Porto ao Pocinho. Foi uma notável obra de engenharia concluída em 1887 após doze anos de intensos trabalhos, vencendo-se inúmeros acidentes naturais, facto comprovado pelos vinte e seis túneis e trinta pontes que nela existem."



(Evite sobreposição de sons desligando o player da "Voz do Douro - Rádio Douro FM" localizado no menu lateral direito, um pouco abaixo deste post.)

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

N A T A L

O MENINO CRESCE
E PERMANECE
NO CENTRO DO MUNDO
SEM FUNDO
E SENTE
E CONSENTE
QUE CRESÇA NA SUA MENTE
NO FUNDO
OUTRO MUNDO.

E CRIA UMA MAGIA PERMANENTE
QUE O ENVOLVE
E DESENVOLVE
PARA QUE O MUNDO
SEM FUNDO
NÃO O TORTURE
E ATORMENTE.

MAS O MENINO, QUE AGORA É HOMEM
CRESCEU
E PERCEBEU
QUE NO MUNDO
SEM FUNDO
ALGO TRISTE ACONTECEU.
E CHOROU
E GRITOU
E IMPLOROU
PELA MAGIA DE MENINO
QUE O MUNDO
SEM FUNDO
LHE TIROU.

VIVE AGORA
POR AÍ FORA
UMA VIDA VAZIA
SEM MAGIA
E, ÀS VEZES, AINDA ACORDA
E RECORDA
A DOCE INOCÊNCIA EM QUE VIVEU UM DIA
E CORA E GRITA E IMPLORA
PARA ESQUECER O QUE SABE AGORA
E PERMANECE NA MAGIA
QUE O ENVOLVEU
E PROTEGEU
UM DIA.

- LEONOR BANDEIRA (Porto)