A firma Silvano & Cunhados marcou na vila da Régua
o primeiro lugar. Em 9 de Agosto de 1953, fomos vítimas de um incêndio. Nesse
dia, estávamos eu e meus filhos no terraço da minha casa, eram ceram de 9 e
meia da noite, ainda quase dia. Uma das minhas filhas, disse-me: - “Ó Paisinho,
cheira-me aqui a chamusco”. Fiquei inquieto. Mandei à moagem, onde andavam
carpinteiros a trabalhar que há pouco tempo tinham saído do serviço, e uma criada
veio dizer:- “ É nas águas furtadas e vi roupas das criadas a arder.”
Os populares invadiram a casa,
chamaram-se os Bombeiros que demoraram quase uma hora, e desprovidos de uma
escada grande, com fracas mangueiras e também a falta de água, que nessa altura
se fazia sentir, o fogo tomou grandes proporções, de forma que em pouco tempo o
prédio estava todo em chamas.
Ainda
a marcar mais esta grande desgraça, houve a infelicidade de no incêndio ter
morrido um bombeiro da Régua, o infeliz João dos Óculos, bom rapaz e destemido
bombeiro que perdeu a vida na sua dedicada profissão. A nossa casa mandou
entregar aos filhos do bombeiro morto 3 contos, mas às diferentes corporações
de Bombeiros que vieram de outros concelhos também se entregaram alguns contos,
pois que embora a casa ardesse por completo houvera boa vontade de todos os
bombeiros, e até mesmo do público, que ajudou a fazer os salvados, embora com
esses salvados a nossa casa nada lucrasse, pois reverteram em favor das
Companhias de Seguros, que abateram 200 contos nos géneros salvados e outros
200 contos nas paredes do prédio que ficaram direitas.
Foi
um dos maiores incêndios que se deram há muitos anos nesta região, onde arderam
em poucas horas muitos milhares de contos. As companhias de Seguros cumpriram
bem os valores seguros, mas a nossa casa perdeu à sua conta mil e tal contos,
pois os valores não estarem actualizados, ainda com a agravante de só em arroz
estarem 600 sacos, muito açúcar, centenas de fardos de bacalhau, enfim, todos
os andares da casa estavam repletos de mercadoria para a próxima vindima, daí a
pouco mais de um mês.
Quando se deu o incêndio, as mercadorias salvas foram
colocadas no cais da estação do caminho-de-ferro, que o digníssimo Inspector
Sr. Adelino Monteiro nos franqueou e ainda outros inspectores, Chefe da
Estação, guardadas, carregadores, enfim todos foram de uma amabilidade grande,
ajudando uns, dando ordens outros, para que os salvados fossem guardados. A
todos e para todos os nossos agradecimentos.
Os
pequenos valores particulares que se salvaram foram guardados na Companhia
União Fabril e na fábrica de moagem da firma Carneiro & C.ª, Limitada, que
o seu gerente, Sr. Silva, igualmente pôs à nossa disposição. Para todos os
nossos amigos e vizinhos vão os nossos agradecimentos mais sinceros, pois nas
horas críticas é que se conhecem os amigos.
Logo
em seguida aos dias do incêndio, pedimos para que a nossa casa pudesse ser reconstruída.
Tais requerimentos foram indeferidos. A nossa casa não podia ser reconstruída
visto que os serviços de urbanização da vila da Régua previam o alargamento de
mais cinco metros naquela artéria, onde a estrada é das mais largas da Régua.
Incomodámos dezenas de amigos, nada se conseguiu, e o casarão da Casa Silvano
& Cunhados continua por reconstruir, exposto às agruras dos ventos e chuvas
e está neste belo gosto há 16 meses, sem haver quem resolva este grande mal.
Mais parece que vivemos no Marrocos francês do que na vila da Régua.
(…)
Aos meus fornecedores e aos fregueses e amigos desejo
que Deus lhe dê saúde e as maiores felicidades; igual sorte desejo aos meus
colaboradores e empregados da extinta firma Silvano & Cunhados, a todos
oferecendo o meu fraco préstimo na Quinta da Vacaria, Régua, ou na minha nova
casa comercial na rua João de Lemos, 41 a 49, em frente à Capela do Cruzeiro.
- Fevereiro de
1955, in MEMÓRIAS DE UM PROFISSIONAL DO COMÉRCIO, de Silvano Vitorino Machado, editado pela Imprensa do Douro, Régua-1955.
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Notas: “O Autor deste pequeno livro, que resolveu oferecer gratuito aos seus amigos, chama-se Silvano Vitorino Machado, natural da freguesia de Louza, concelho de Moncorvo, distrito de Bragança. Nasceu em 26 de Dezembro de 1884; tem pois, ao fazer este livrinho, 70 anos.” (citado do mesmo). Ele foi, certamente, um dos maiores comerciantes da sua geração. Foi ele e que geriu o maior e estabelecimento comercial da Régua, a Casa Viúva Lopes, destruído pelo violento incêndio de 1955, que ele não deixou de recordar no livro das suas memórias, intitulado “Memórias de um Profissional de Comércio”.
O comentário que fez sobre a acção que tiveram os Bombeiros da Régua no fatídico incêndio, nomeadamente a demora que ocorreu no combate ao sinistro, mereceu reparos de desagrado da então Direcção da Associação, que o entendeu como uma crítica injusta. Mais tarde, numa carta de 8 de Março de Março de 1955, o comerciante veio explicar o sentido das suas palavras, onde é patente o seu carácter e o seu respeito pelos bombeiros da sua terra: “Estando eu certo, como está toda a gente moradora nesta vila, que esta respeitável e humanitária corporação tem prestado grandes e desinteressados serviços à vila do Peso da Régua e à sua população.” O tempo encarrega-se sempre de fazer justiça aos grandes Homens, incompreendidos no seu tempo e, sobretudo, ao trabalho abnegado e corajoso dos bombeiros, que viram morrer queimado João Figueiredo, com 33 anos, neste incêndio, um dos maiores de sempre na Régua.
Texto e imagens cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida e editados para este blogue. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Setembro de 2012. Atualizado em Outubro de 2012. Também publicado no semanário regional "O ARRAIS" edição de 25 de Outubro de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.