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quarta-feira, 8 de setembro de 2010

O ARREPENDIDO

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Era uma vez um homem nascido de uma barriga de fome. A parteira da aldeia dera-lhe a primeira palmada e lavara-o num alguidar de barro. Cresceu descalço, de calções rachados no cu, comeu as azedas dos caminhos, fez saltar as pinhas na lareira, dormiu entre mantas de vindima, brincou no quelho com as galinhas, limpou o ranho às folhas das videiras, comeu cachos verdes escondido nas sombras de Agosto, aprendeu a tabuada e a escrever o nome com as mãos estendidas para a palmatória, jogou o monte e o sete e meio no adro da Igreja e chegou a tocar o sino para as missas de domingo.

Nos socalcos, conheceu a enxada da cava, o ferro dos saibramentos, o peso dos pulverizadores, a moderação da espampa e o carrego dos cestos nas fainas de Outubro. Nos terreiros de poeira, ou de lama, namorou com os olhos e com os lábios, dançou nos leilões, embebedou-se ao desafio, mostrou a navalha de ponta e mola, gabou-se de valentias diante de lobisomens nos Quatro Caminhos e das conquistas no Socorro e nos Remédios.

Os ralhos da Mãe e os rezingares constantes do Pai faziam-no olhar para o fundo do vale, onde a estrada, ébria de curvas, lhe sorria a evasão. Farto de brigas, da meia sardinha e um naco de pão ralão, da água-pé da cava, do pulverizador do sulfato e dos cestos atestados de uvas, abalou.

Ainda o sol não arreganhara os dentes a uma lua mal talhada, sem mala ou embrulho, meteu-se a caminho, acalentando os passos da fuga. Na vila ribeirinha ripou os tostões do bolso e tomou o comboio que o levaria à cidade grande. Ruminou sonhos de fato novo, raparigas para apalpar e possuir em becos escuros, filmes de mamas ao  léu, Cafés de gente fina, futebol em Estádios maiores do que a sua terra, ruas compridas cheias de gente.

O Revisor pediu-lhe o bilhete com uma voz de alicate. O rio, à sua esquerda, acompanhava-o, mas não era o mesmo que ele conhecia. O seu era manso e dava-lhe peixes para fritar; na sua borda, havia uma barraca onde, nas noites de Verão, adormecia com o seu deslizar como uma brisa de arvoredo. Mesmo nos Invernos em que ele galgava vinhas e transformava as ruas em canais, gostava de ouvir a água ali mesmo à beirinha, no cimo das rampas, sentir-lhe o cheiro a barro, aquele jogo de sobe e desce numa intimidade de risco e de estranheza. Quando ele regressava ao seu lugar, abandonando lama e entulho, partia-se-lhe o coração, desiludido com uma coisa tão linda ser capaz de deixar tanta tristeza. O rio que agora via não tinha fragas à mostra, era espesso e escuro, espremido por gargantas montanhosas e margens de lodos ondulantes; só os laranjais e o casario que trepavam até ao céu o alegravam.

Chegado à cidade, um bruá, sem origem e sem dono, esmurrou-o de espanto. Encostou-se ao varandim exterior, defronte das portas da Estação, entreteve-se a ver as saídas e as entradas, virou-se ao contrário para se rir com tantos carros a quererem passar ao mesmo tempo, como as poedeiras da Mãe à bulha por um grão, e aventurou-se, precavido, desconfiado de uma cilada.

A cidade do sonho era a confusão das gentes, que, de embrulhos nas mãos, corriam como se os tivessem roubado e fugissem, esbaforidas, de uma perseguição; gesticulavam, berravam, empurravam, cuspiam no chão e para o ar, gritavam de punhos erguidos ao mando de alto-falantes que esganiçavam palavras que ele nem percebia; pisavam os jardins, deitavam papeis para os pés e para os cantos. A cidade da lenda era um asilo de aleijados e cegos estendidos nos passeios, grupos de velhos encostados nas esquinas a falarem de futebol e de política ou sentados na solidão de bancos de praças despidas de árvores feitos lagartos ao sol; corpos jovens com caras gastas à espreita de carteiras distraídas; mulheres, de chumaços nos peitos, nas ruas das quinquilharias, a vomitarem palavrões de sexo estragado; rostos enfiados em máscaras a falarem sozinhos, rindo sozinhos, gesticulando sozinhos; loucos, de barbas desprezadas, a darem vivas a Reis de que nunca ouvira falar; velhas andrajosas, de cabelos encodeados, sapatos rotos e bocas sem dentes, sem um riso, sem uma mão de carícia, sem uma boca de ternura; crianças endurecidas por olhos de revolta e de escárnio, de dor e de desprezo, esticando os braços em busca de uma esmola como quem pede desculpa.

Não precisou de se afastar muito. Bastou-lhe subir e descer duas ou três ruas, dar a uma praça com uma estátua de um cavalo de perna alçada e um homem (devia ser alguém importante) em cima a segurar a rédea, para compreender que se enganara na ilusão. Olhou para o alto: o céu pintava-se de ferro velho. Não respirava como na sua aldeia, não ouvia um choro de criança a ecoar nos montes, sentia-se preso, e lá estava a torre da Estação com o relógio a marcar o tempo. Meteu as mãos nos bolsos, contou o dinheiro, comprou um bilhete de regresso, foi a uma taberna, logo ali ao lado, comer uma posta de peixe frito, bebeu uma taça de branco e voltou aos socalcos da sua terra.
- Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no Blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua.

    quarta-feira, 1 de setembro de 2010

    A NAIFA

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    «Tá ver? Tá ver? É o que lhe digo, um home num pode deixar de ser seguro! Hoje, de manhê, tive mesmo p´ra trazer a naifa. Disse cá p´ra mim: “ bem, num debe ser preciso, esta malta é porreira “, afinal, é o que se vê. Abaliei bem mal! Olhem-me qu´isto! Já onte, quando saíram do lagar e começaram a mandar vir, diga-se de passage, sem razão nenhuma, deu-me logo cá uma zoeira no toutiço que nem imagina a minha impressão! Só me deu bontade de abandonar a prensa e botar logo a gadunha a um! São alebantados lá os gajos! Tá bonito isto! Anda-te aí um que não é nada bem encarado, na minha palavra de honra! Onte, atão, era o que mais palrava, “que não, que não“, e não entraram mesmo no lagar! O tipo é o chefe deles, é mesmo reguila, e armou-te aí um banzé dos diabos! E eu cheio de bô fé a dizer que esta malta é porreira! Sim, senhor,bonito serviço!

    Num importa o quê? Isso é o que lhe parece! Atão acha bem uma desfeita destas? Tem que haver respeito, isto inda num é o Brasil, ora esta! Eles pensam que vêm p´ra cá abusar ó quê? Que abusem na terra deles, homessa! Anda a gente a rogá-los, a dar-lhes dinheiro a ganhar, e depois fazem isto! Olhem-me qu´esta num tá mal, não senhor... Se me dá na bolha, inda bou a casa buscar o instrumanto! Tou a ver que sim! Inda bou buscar o alfange p´ra dar uns riscos àquele terrorista! Vocemessê num faz ideia da
    impressão que o gajo me mete!

    Como? Num entendi o que o senhor disse? Não, já o merquei há uns tampos. Aquilo, carago!, tem p´raí o comprimanto da mão daquele rolador! Só visto! Autântico! Tem aquele comprimanto à segurança! P´ra que preciso eu disso? Tá boa a chiba, tá! A cada passo é preciso. Há sampre quem nos queira mal, uma zanga, uma espera, sei lá, uma hora de aflição. Onde calha se encontra um patife. À moda do outro, um home num gosta de ir p´ró xadrez, mas em vez de as levar num há-de dar? Conversa... mas isso é indiscutíbel! Com calma? Com calma, leba-as um home e cala! É o que lhe digo! Eu tamém já lebei... Uma vez foi aqui no estômago, salvo seja aqui neste sítio, que nem lhe conto. Inda tenho a marca dos pontos e nunca mais me esquece! Lebei à volta de cinco pontos. Diz a minha qu´inté me saíram as tripas! Ela é que diz isso, eu num bi nada... Mas eu mandei-lhe, tamém, três rasgos que o puz às portas da morte! Andava eu a podar, nessa ocasião, numa Quinta duns ingleses, era uma coisa grande, até queriam pôr torneiras p´ra regar aquilo, veja bem; eu binha todos os dias a casa, nesse tampo a minha escrita tava sempre em dia, entende-me o que quero dizer?, bom, eu binha todos os dias a casa e, uma noite, encontro aquela alma no caminho. Desgraçado! Trazia uma borracheira que só bisto! Deu-me p´ró entreter. Às páginas tantas, começa-te lá cum relambório! Inda aguantei, mas depois num pude mais, inté a minha Mãe ofendeu, o grande cabrão! Como o senhor sabe, isso nenhum filho, que o seja de bom sangue, finge que num oube. Mandei-lhe umas lostras nas bantas e umas troviscadas no lombo cum pau que eu trazia sampre comigo, quando, sem eu contar, ripa-te de uma naifa e zás!, enterra-ma aqui mesmo, salvo seja. O que me valeu? A navalha da enxertia! Num lhe digo nada! Amandei-lhe umas cortadelas que nem queijo! Deixei-o lá a gemer, ali nos Quatro Caminhos, e soube, depois, passada uma boa tamporada, que se tinha mudado p´ra Lisboa e que andava lá a chegar massa nas obras. Eu lá me arrastei até casa, inventei que me tinha cortado cuma foice e quem me deu os pontos foi o Dr. Silvério, um santo home, num desfazando, e que Deus tenha em bom lugar. Claro que ele desconfiou logo, que era bô médico, e disse-me: “Pilroto, p´ra próxima chamo a Guarda!“ . Aquilo morreu, já foi há muito ano e inté nunca mais tive nada, mas nunca mais me fiei. Tanho andado sampre firme, nas devidas condições, que o mundo num tem só putos de Pais e putos de Mães, mas, tamém, filhos de outros Mães que num sabemos donde vêm e para onde vão, percebe-me o senhor o que quero afiançar?

    Olhe, que horas são? Pela nova ou pela velha? Minha Nossa Senhora! Já bou oubir um reportório desgraçado da patroa, que aquilo quando a comida esfria ela aquece quinté parece que a casa bai abaixo! Tem um génio estuporado! E ai de quem lhe responda, bai tudo raso, parece um ciclone! Daquilo é que tanho medo! É cá uma naifa que o senhor nem bai ao fundamanto! Amanhê, às seis velhas, tanho aí um lagar p´ra incubar. Santas noites e desculpe-me esta franqueza.»
    - Texto de M. Nogueira Borges extraído da publicação "Lagar da Memória".

    quinta-feira, 19 de agosto de 2010

    A BRUXA DE AVÕES

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    Vinham de todos os lados onde houvesse um sofrimento e uma última esperança por sepultar. Os do fundo do vale subiam e os dos montes em redor desciam à Corredoura. Os primeiros puxavam os carregos de desalentos, os segundos escorregavam com eles. Uns e outros juntavam-se no largo fronteiro ao casarão, esperando que as portas se abrissem para entrarem no corredor que levava a uma enorme sala, mais rectangular que quadrada, onde, no canto mais distante, num elevado de madeira, se sentava a Santa de Avões toda de branco. Dir-se-ia que as misérias do mundo, os maus destinos da condição humana, desaguavam ali, feitos detritos de um rio de desgraças.

    Quando Jorge acordou, pressentiu uma inabitualidade, um bulício de segredo, uma preocupação de disfarce que lhe exagerou a atenção. Ele estava na idade em que não se analogiam os factos, mas, se repara na alteração das rotinas. As crianças são as fatais denunciadoras dos adultos e dos seus casos. Têm um conhecimento despido dos nódulos da experiência e essa virginalidade dá-lhes a percepção isolada das coisas. A Mãe bem se esforçava por o distrair, mas, numa altura em que a Alda lhe perguntou o que havia de fazer para o almoço, raspou-se para a porta a espreitar aquele borbulhar de excepção. Ficou travado de espanto: paralíticos, em cadeiras de rodas, rostos redondos, olhos esbugalhados, bocas espumadas, aconchegados por mulheres de xailes pretos; homens, com uma só perna, amparados a muletas; aleijadinhos, colados ao chão por mãozeiras de madeira seguras por fitas de solas, joelhos dobrados e pés para cima; cabeças mexendo-se incessantemente, para um e outro lado, como metrómenos; e, ao fundo, com a bengala em descanso, o seu Avô sentado ao lado de uma mulher vestida de neve. Desatou a fugir pelo corredor fora, desceu a escadaria e correu ao quintal onde os dióspiros continuavam a amadurecer. Andou por lá, indefinido, a pontapear as pedrinhas que ele revolvia na terra ainda fresca; foi ao patamar da sineta e puxou pelo arame com tanta força e duração como se quisesse interromper a continuidade do tempo ou sobressaltar comportamentos contrários às suas regras.

    - Jorginho, anda tomar o leite! Que andas tu a fazer?! – admoestou-o a Mãe da janela, assim que ouviu o som do bronze.

    Quando estava quase no fim da chávena e a meio do pão com manteiga, voltou-se na cadeira e perguntou:

    - Mãe, o que é aquilo?
    - Aquilo o quê?
    - Aquela gente toda aleijadinha no salão?
    - Estão a rezar para ver se se curam, mas os meninos não podem lá entrar.
    - Mas eu já lá fui, vi meninos a babarem-se ao colo das Mães, a olharem para o tecto.
    - Mas não devias ter ido... São doentinhos e tu não és...

    Jorge pediu licença para ir ver o Mouco às Águas. Guardando as sombras, certificando-se de que ninguém o via, empurrou a porta; um clamor abafado estalou-lhe na cara. Havia quem gemesse como moribundos; se agitasse como peixes fora da água; se esforçasse por se libertar das cadeiras, presos por colas invencíveis; quem quisesse falar e as bocas entupiam-se; estremecesse como molas largadas, repentinamente, por mãos ocultas, depois de muito tempo esticadas; uivasse como lobos desesperados de fome. Pasmado, no meio daquele arquejo, procurou, por entre pernas e braços, o Avô. Lá estava ele: o rosto inundado numa convulsão patética e, pareceu-lhe, infeliz. Viu-o tentar levantar-se sem a bengala, esboçar um passo, numa máscara heróica, para logo se deixar cair, pesadamente, na cadeira. Teve um impulso de furar aquela mole miseranda, substituir-se à sua perna e traze-lo para o sol, a sombra do diospireiro, o balouço dos lilases, a sineta da sua tentação, o pomar das laranjas de umbigo, os bardos da touriga preta ou da malvasia branca, a mata das mimosas, a fonte da água que sarava os ossos. Saiu seco, cheio de raiva, incapaz como uma inutilidade, espreitando todos os cantos que lhe pudessem denunciar a mentira da sua visita ao Mouco.

    Foi até o muro da ramada, diante do qual se plantava o cemitério numa solidão corpórea. Tocou-lhe com o olhar e sentiu no peito um fio a queimá-lo, igual ao da sopa muito quente julgando-a já morna. Viu-se mergulhado por veios salgados que o obrigavam a soluços compassados iguais àquele dia em que lhe desapareceu a camioneta de madeira mercada numa tenda do Socorro. Chorava, mas não fundamentava a causa. Seria uma reacção de instinto dos vivos ou a fatalidade dos mortos? Ele ainda não sabia que o que a infância nos dá no futuro se repercute, que somos sempre, mas sempre, pendências para os que nos criam.

    O seu Avô, desistente da Ciência que não o recuperava, descia à cova feiticeira, confundia-se com o mais padecido desespero que é aquele que nenhum dinheiro apaga porque nasce nas chagas do corpo e espalha-se nas dores da alma. Impressionava-o aquela mistura, magoava-o a constatação de que, afinal, o seu Avô tinha a mesma condição dos que ele via, feitos eunucos locomotivos, arrastando restos de corpos. Isso queria dizer que o seu Pai Velho, viúvo de Mulher sem grinalda e duas vezes Pai - porque tinha uma filha e um neto na preocupação das horas -, enchia alguns toneis de vinho mas não comprava a saúde, que a sua perna se arrastaria até morrer e que a bengala era mais ágil do que ele.

    Esperou, apesar de tudo, acordar um dia com o Avô a desafiá-lo para uma corrida à volta da taça ou adormecer sem escutar o bater do maldito bastão no corredor. O ataque que lhe dificultava os passos, tolhendo-lhe a natureza, transformara-o num quase inválido, numa memória das caminhadas pelos socalcos ou pelas estradas das carregações do vinho. Não era justo. Crescia entre a escuridão de uma orfandade e uma inquietude que lhe devorava os frutos compensadores de carinhos perdidos. Não, não era justo. Uma criança não deve nascer com estigmas de morte nem criar-se com maus presságios de vida.

    Jorge crescia, assim, sem aviso de que viera a uma raridade em que há destinos que são como roletas que param onde nunca devem. Ninguém conhece onde se materializam aqueles porque o nascer não é uma negação nem um remorso; nasce-se por um amor ou um desejo que, mesmo quando passageiros, não apagam o instante em que eles se concretizam. Se ele viera ao sol e à sombra é porque tinha uma existência para cumprir e não seria a vulnerabilidade de mortes prematuras que lhe impediriam a jornada. Dessa ideia, numa transparência amniótica, nunca se livrou. Daí, talvez uma certa frieza perante os equívocos; estava vacinado, desde o seu início, contra as quezílias do mundo; conhecera a morte desconhecida, que é a pior maneira de a sentir, e far-se-ia homem com essa memória como uma armadura que lhe permitiria entristecer-se com a as lutas fúteis e dar-lhes todo o espaço e todo o tempo porque (sabê-lo-ia já?), mais breve do que demora a dize-lo, os anúncios do fim surgem e repetem-se tão rápidos que só as noites as amortalham e os dias as lembram.

    Seria portador de um silêncio desesperado e despertado – uns chamavam-lhe subtileza, outros comodismo -, uma repulsa à precipitação, uma vigilância ao amor. Distante das vulgaridades de orgulho, faria da economia dos gestos e da fala não uma originalidade de casta, antes um comportamento conforme a sua índole. Mais do que uma separação dos outros, um ditame cromossomático. Não conseguiria ser de outro modo como se, impossibilitado de comparações, só tivesse um termo para uma questão. A vida lhe daria, contudo, a alternância dos cépticos, essa capacidade de inventar eflúvios como sobremesas oníricas de banquetes esbanjados mas tristes, ou como um sol de Inverno que rasga, repentino e esplendoroso, o cinzentismo das nuvens. Haveria quem o desconhecesse, julgando conhecê-lo; lhe tirasse um retrato que depois alterava conforme os momentos em que o encontravam. Não fixaria uma impressão, daria uma imagem, não se consumiria pela ofensa, perdoá-la-ia não a esquecendo, sabedor que todos os termos se cumprem e a paciência duplica o prazer quando acaba o motivo que aquela origina. Aprendeu cedo – cedo de mais - a esterilidade do confronto sem préstimo, esse sadismo humano dos maus génios que, quando levantam a voz, arranham o mundo todo, esgotam corpos e aniquilam espíritos. Soube, antes do tempo, que toda a fúria traz, a seguir, o remorso do desperdício.

    Esse desperdício o marcou na infância e prolongou-se-lhe vida fora. Mais do que uma parcimónia, era o sentido de perda irreparável de uma pessoa que se pode amar, de um gasto que se pode evitar, o luto de uma necessidade que é sempre uma falta futura, o desbaratar de frivolidades que nunca se emendam. Não era um capricho, sim um cunho que não conseguia alterar. Gostaria de ser misturável com todos, mas, dava-se mais com os menores que sempre percebeu seus iguais. Era um filho da memória sem nunca ter professado o sacrifício de qualquer amor de substituição. Por vezes, enredava-se num labirinto sem atinar com a saída, rodeado de vozes que o chamavam de longe num jogo de escondidas. Absorto, deixava-se ir até parar, como quem (re)encontra uma convicção, espera a oportunidade.

    Naquele dia, Jorge esteve quase para perguntar ao Pai da sua Mãe por que escancarara a casa àqueles defeituosos todos. Foi quando, empoleirando-se no portão dos fundos, os viu sair como restos varridos por uma vassoura gigante de giestas, enxotados pelo engano, mais desistentes do que entraram. Foi dar com ele, pensativo, a passar a língua por uma mortalha com tabaco de onça, sentado num cesto vindimo à entrada do casarão.

    - Pai, vamos aos ninhos?...
    - Logo, meu menino, estou muito cansado – respondeu-lhe por responder, dando uma baforada. – Soergueu-se, custosamente, fincando-se na bengala, acariciou-lhe os caracóis e deu-lhe a mão.

    – Vamos lá ...– sorrindo, cúmplice, a satisfazer-lhe o pedido. - Queres ver o do melro, é?...

    Mas tinha uma cara de malogro, os olhos retocados de tristeza, a pele, quiçá, mais frouxa. Observava-lhe a perna para ver se ela já não se arrastava tanto. Reganhou a esperança - aquela esperança de que se conta pouco, mas, com que sempre se sonha - de que, uma dia, ao acordar, numa qualquer manhã, Deus Nosso Senhor lhe concedesse a Graça de o deixar brincar com o Pai-Avô.

    Nascido num berço sem precisão mas de essencialidade contada, herdaria dele o horror à ostentação; ao ter sem poder, ou fingindo que se tem e que se pode; ao só arriscar até onde ia a sua sombra, preferindo a decência permanente aos solavancos aflitos entre o muito e o nada. Mais do que um equilíbrio de borrão, era a intolerância pelo gasto sem uso e de consumo esquecido num canto qualquer, aquilo a que alguns chamam a ganância dos olhos. Havia quem associasse isso a uma contradição inibitória que o enformava no relacionamento e, em muitas ocasiões, fora dele, se soltava numa defesa para esconder aquela.

    Nem quando visitava os seus Avós paternos se lhe dispersavam os conceitos.

    Viviam no Côto, entre vinhas, a que se acedia por umas escadinhas íngremes que ligavam os socalcos. Era um ermo alto para onde se exilaram, abandonando um comércio próspero, destroçados pelas mortes fulminantes, intervaladas de meses, de dois filhos em quem sonharam depositar o futuro. A casa sem enfeites, a condizer com o desterro dos donos: soalho lavado com sabão amarelo, limpa como os puritanos o são, mobília franciscana, a sobreloja ocupada por um lagar e três toneis sem uso porque as uvas iam directamente para a Adega em cada vindima triste e apressada. As tardes domingueiras de Verão gastavam-se sob uma ramada, junto do poço, com as cadeiras de lona a amortecerem sonolências despertadas pela vontade de acertar conversas e os altofalantes cruzando modas pelos desfiladeiros e serros. A grande riqueza daquele sítio estava nas delícias do olhar: ao fundo, o vale de Abraão espraiava o romantismo na margem esquerda do rio que, na direita, corria a recta do Salgueiral e, em paralelo, o comboio do Porto; ao longe, o declive de Loureiro, vestindo um organdi de virgem, sonhava com noivados reguenses; mais arriba, ainda, nas curvas da estrada de Santa Marta, Lobrigos e São Gonçalo um conforto de espera na casa onde nascera.

    Os Avós envelheciam mais depressa do que a idade. Tinham os ombros caídos de quem há muito esperava que, do chão, regressassem os filhos roubados. Rezavam e meditavam porque era esse o seu último arrimo. Quando o Avô lhe abria as dúvidas da Fé, acicatadas pela amargura, logo a Avó, numa voz de lâmina, as decepava num ríspido: «O teu Avô enlouqueceu! Cala-te, homem, não se diz isso a um neto! Pede perdão pelos filhos!» Revoltado, perguntava para dentro – que nesse tempo havia o respeito de não contrariar os que nos ascendiam – por que motivo haveria perdão para os que tinham sido sugados à vida, quando, a bem dizer, a barba mal crescera e os filhos que não conheceram esperavam que as águas rebentassem. A Avó fazia-lhe chá namuli e torradas com manteiga, ou uma omolete direitinha como se desenhada num molde rectangular, tudo saboreado lentamente para demorar o gosto. Tinha uns olhos negros de choros repetidos, húmidos e vermelhos à menor afloração recordativa; dava uns suspiros longos que pareciam alívios de carregos insuportáveis, e se, raramente, sorria, era breve como uma lâmpada que se acende por engano e logo se apaga. Já o Avô fixava-se num ponto indeterminado, olhando sem ver, dizendo que a sobrevivência estava na capacidade de esquecermos os desgostos. Junto daqueles velhos - ele chamava-lhes velhinhos – Jorge interiorizou a existência da alma, pois só ela podia dar força a um ser humano para aguentar as dores mais inacreditáveis. Exemplificaram-lhe a resignação como um dique à loucura, a certeza de que o sossego não contradiz a evolução.

    Andado por muitos lugares e conviva de raças diferentes, nunca conseguiu separar-se das imagens da infância cheias do silêncio dos montes separados por carreiros e várzeas, bóias salvadoras diante dos que lhe infernizavam a quietude. Vira já que as zangas apressadas não dão felicidade, que o prazer é uma molécula numa célula de sofrimento e que a diversão não altera as desconfianças.

    Envolvia-se, quando passava naqueles lugares que lhe calcularam o futuro, num conflito sem saber de que lado se havia de pôr, invólucro de um espírito (in)conformado, envelhecendo como se o presente fosse sempre passado, desconhecendo o futuro que nunca resiste à linearidade que se desfaz na volúpia dos contratos sociais. Se era o ódio que fadava os humanos – custou-lhe a acreditar que o ódio existisse – e o amor um colorido de ilusões, então a honra dispensaria a paixão e a disputa humana não passava, assim, de uma feroz luta de ciúmes amantizada de invejas. Do cimo do seu refúgio resistia às podridões e aos desatinos, amargando o desalento de fazer um mundo à sua semelhança. Renunciava não por cobardia - que só o é quando o desafio é vencível e dele se desiste -, mas por uma definitiva certeza de que a existência é um faz-de-conta. Devia esforçar-se por ser como os outros, cultivar a ambição, esmagar os princípios, fingir o riso e a alegria, não se demitir da animalidade, pregar a teimosia e a vingança até cair para o lado e ter uma caixão coberto de flores e lágrimas de ocasião? Talvez a bruxa de Avões lhe alterasse o caminho e o carácter? Mas ela já morrera amortalhada com os panos da mentira. Se não fizera o seu Avô materno dispensar a bengala e os seus Avós paternos desforrarem os filhos perdidos, ele acabaria manco e órfão do mundo, desprezando todos os fabuladores.
    - Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
    • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. Pode ler também os textos deste autor no blog ForEver PEMBA!
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    sexta-feira, 13 de agosto de 2010

    ESQUINA DO TEMPO

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    Quando, vindo dos lados do mar, o sol rompe o nevoeiro de fumo da cidade e aquece a frontaria da Empresa em que trabalho, o cego do acordeão arma a sua cadeirinha diante da Casa das Lotarias e senta-se. Chega, pesado de solidão, do bairro da Bainharia, morador de um casebre a desfazer-se sob o olhar de Vímara Peres.

    Os acordes de um vira, que se canta e dança para os lados de Viana, furam o barulho dos autocarros e das motorizadas, os claxons apressados dos automóveis e as asneiradas dos transeuntes. Toca bem o ceguinho, tem a sensibilidade no dobro do que lhe falta. É um artista que me suaviza o aborrecimento da rotina, a angústia das lembranças dos que, longe, vão gastando os dias na saudade dos ausentes. Forma-se uma roda para o ver tocar e há sempre quem, esquecendo o pudor, baile ao som da sua música. Os gestos ondulados com o bater ritmado do pé esquerdo a acompanhar os movimentos do fole, o balançar da cabeça de olhos virados para o céu e o trincar da língua a ajudar na execução da melodia, apegam-me à vida. Do alto do meu quinto andar falo com ele e digo-lhe: «Toca ceguinho das minhas tardes de chatice, faz-me esquecer as tristezas e dá-me a mão para continuar a amar e a perdoar. Anda!, refina-me essa chula que me leva aos tempos dos bagos dourados, aos lanches de malvasia com broa, aos Contos Bárbaros de João de Araújo Correia lidos à sombra de uma figueira no quintal da casa onde nasci, ao monte de S. Leonardo com os ecos dos meus berros a esmagarem-se nas fragas que tutelam o Douro e o Torga sem os ouvir. Toca ceguinho, és um irmão nas minhas horas de contas, papeis e telefonemas de aflitos, ar condicionado avariado, as mãos e os óculos e a camisa e o corpo suados e o olhar cansado em cima da secretária. Sou teu (ou és meu?) cúmplice da necessidade de lutar para que o sol não se vá embora sem um sorriso de agradecimento, para que o marketing empresarial continue a falar de produto acrescentado, de lucros, de cash flow, de investimento produtivo para que as setas dos gráficos demonstrativos de resultados subam sempre todos os meses, todos os trimestres, todos os semestres, todos os anos até que a morte apareça e tudo desça para a terra. Não conheces as cores dos carros, nem os contornos das esquinas, nem quem te deita as esmolas no chapéu virado no chão, nem quem te ouve calado O mar enrola na areia que a minha voz de criança tantas vezes entoou, nem quem te espera sempre que o sol vem dos lados do mar. Tu não me vês, mas os meus ouvido estão sempre à espera do bater da tua bengala metalizada no empedrado da rua e da tua música que me lembra o Socorro, os Remédios, a solidão colegial. Quem és tu, afinal? Que condição te fez assim, tocador das tardes de sol de Inverno, entretainer da barafunda do quarteirão citadino com dólares nas montras do câmbio, pasteis requentados nos balcões das confeitarias, o cheiro a óleo queimado, escritórios de paciência, igrejas de preces vespertinas e lágrimas a deslizarem em rugas de sofrimento ou de remorsos, comboios partindo com cansaços sentados em carruagens de segunda. Quem és tu, meu amigo, que tenho (provavelmente) uma cama melhor que a tua, uns olhos para verem coisas lindas e feias (meu Deus!, quantas!), um ordenado que, mesmo esticado, dá para te agradecer, no chapéu cinzento, o prazer de ouvir o teu acordeão do folclore da minha Pátria? Quem és tu, se não um igual, feito de carne e de sangue, cérebro que idealiza futuros, alma que pranteia o passado, mãos que agarram a esperança? Espera por mim. Hoje, quando chegar a hora da minha saída, vamos os dois à beira mar, de braço dado, sentir o sol que aquece a esquina do nosso tempo. Tu tocarás e eu cantarei até que ele vá dormir para o outro lado da terra.»
    - Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".

    • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. Pode ler também os textos deste autor no blog ForEver PEMBA.
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    quarta-feira, 4 de agosto de 2010

    A ROGA

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    Em Setembro despertava-se da moleza de Agosto. Os que haviam debandado para banhos regressavam com as preocupações recobradas e os que tinham ficado esqueciam as sestas. Os casais iniciavam os preparativos da novidade: consertavam-se os cestos e soldavam-se as latas fundeiras; lavavam-se os lagares e as prensas; varriam-se os quintais, mesmo sabendo que eles ficariam imundos em poucos dias; verificava-se o estado dos toneis depois do dessarro e da mechagem; oleavam-se as tesouras, areavamse os potes e arejavam-se os armazéns e os cardenhos.

    Com a esfolha feita os lavradores vistoriavam as vinhas, afligiam-se com um ou outro podre, faziam figas aos agouros de chuvas temporãs - às vezes desejavam-nas perante a secura da polpa dos bagos -, escutavam os feitores, consensualizavam o início das vindimas e mandavam vir as Rogas que, ajustadas com o pessoal diário da terra, seriam os intérpretes da harmonia final de um solfejo tecido só Deus sabia com que receios.

    Eram os serranos. Vinham das terras de Baião, ali na fronteira do maduro e do verde, ou das cercanias beirãs em que os migalhos de cepas se perdiam nos fraguedos sem benefício. Juntavam-se por afinidades familiares, de amizade, ou pelos empenhos aos rogadores. Desciam ao Douro certos de uma jorna aumentada com que cultivariam os seus bocados ou reporiam os gastos com as vestimentas das festas de Verão. Cantando e dançando a chula ou o malhão ao som das concertinas, dos bombos, dos ferrinhos, das harmónicas de boca e, em alguns casos, das violas braguesas, chegavam cansados mas alegres. Roga que não exibisse este instrumental não era roga, porém, um ajuntamento despersonalizado sem hipóteses de renovação assalariada, a não ser que, no ano seguinte, se incorporasse em outros grupos de merecimento. Enchiam as estradas e os caminhos rumo às Quintas, onde, durante longos dias, cortariam as uvas, transportando-as até os lagares que, depois, pisariam em noites de pousa, quantas vezes prolongadas em incubações urgentes.

    Eu via-as a meio do Caminho Velho que dá de Remostias a S. Gonçalo. Traziam, penduradas nos bordões, as trouxas para acartarem os cestos, alguma roupa extra para maliciar em bailaricos e, nos rostos congestionados, um entusiasmo festivo. Alcançado o alto sobranceiro ao vale vinhateiro - a quem os antigos chamavam Poço do Vinho de Feitoria - que se estende até os muros do Peso, os homens e as mulheres da Roga cumprimentavam efusivamente os já conhecidos de vindimas anteriores. Os novatos, medrosos e rituais, de olhar esquivo, insinuavam-se no agrupamento até se igualarem na confraternização. Combinavam-se rodadas de quartilhos e enrubescidos bailaricos. Os patrões desciam as escadas que ligavam a cozinha ao terreiro, as reverências prodigalizavam-se no contágio da euforia, e havia quem distinguisse a dona da casa: «Vindo eu daqui tão longe/ Sem pôr os pés na calçada/ Venho dar os parabéns/ À senhora esposada.» O som da concertina e dos ferrinhos alegrava os corações que se esvaziavam de diferenças. Quando a noite se anunciava, a ceia retemperava esforços e espevitava vigores. O Feitor aconselhava o deitar cedo; os homens e as mulheres escolhiam os lugares em cardenhos separados, à mistura com pilhérias libidinosas.

    O dia começava cedo com dejejum de bagaço, broa e uma lasca de bacalhuço; a meio da manhã, serviam-se batatas com sardinha de barrica. O retinir das tesouras, pelos anfiteatros do gigantesco Coliseu Duriense, confundia-se com as cantigas e os chistes. Todos, novos e velhos, isentavam-se de pudores, mas, não chegavam ao destempero. Os novos arquitectavam namoricos e muitos beijos se roubavam a coberto da folhagem dos bardos. Os velhos, de nostálgicas sensualidades, instigavam-nas como num remorso por tempos de pouco proveito... As mulheres cortavam os cachos com a preocupação de não deixarem respigo ou bagos pelo chão, e gritavam «cesta!» para que o rapaz mais próximo a levasse para os cestos vindimos. Os homens aproveitavam para descansar, limpavam o suor, esvaziavam o garrafão e fumavam um cigarro; quando a fiada se completava, punham as trouxas nos ombros que fixavam nas testas com tiras de couro ou pano de saco. Subiam dos côncavos profundos, desciam as encostas arriscadas, arrastavam-se pelas estradas de asfalto escaldante, poisando, a intervalos, os carregos nos muros, para prosseguirem, depois, ao compasso da concertina ou da gaita de beiços do primeiro da fila, até alijarem a carga, com bufos de alívio, nos lagares.

    Terminado o trabalho do dia, as mulheres e os homens aperaltavam-se – mais elas do que eles -, misturavam-se aromas de perfume Tabu, os rostos recuperavam  serenidade. No fim da ceia juntavam-se os instrumentos, afinavam-se modas e dançava-se sob a luz mortiça. Acudiam aos portões trabalhadores de outras vindimas, pediam licença, o quinteiro transformava-se num palco de gente saltitante, requebrada, envolvente, com o malhão no corpo, a chula na alma, a satisfação nos olhos, o riso nos lábios, o fogo no sangue e a disputa concupiscente das raparigas mais bonitas.

    O rogador (como me lembro!) era um tipo alto, pescoço de bisonte, ombros hercúleos, mas – contraste humilhante - , mancando desajeitadamente; quando andava, a sua perna direita parecia que enxotava cães que se lhe tivessem filado. Chegava-se à Micas, mulher de muitos homens, e berrava-lhe, julgando que cantava: «Ai anda cá ó cantadeira/ Vem p´ra minha beira/ Anda cá p’ró pé de mim/ Ai quando estás à minha beira/ Querida cantadeira/ Ai para mim é um jardim.» A Micas, de olhar malhadiço, respondia-lhe: «Já te ouvi querido cantador/ Estou agora a chegar/ Aqui estou à tua beira/ Ouve lá ó cantador/ P´ra contigo dançar.» Depois, num repente, descabreavam pelo meio dos outros, que se afastavam a entusiasmá-los com palmas, num vira e revira incrível. Ele agarrava-a, soltava-a, recuperava-a, sempre a abanar com a perna, e a Micas, agitada num riso de gralha, a deixar-se levar com o descaro da experiência. Acabada a música, ficavam à espera da seguinte, enlaçados, a arfar, de olhos desassossegados.

    Quando as estrelas iam altas e a lua se pousava no Cume, o Feitor ordenava o recolher. Apagavam-se as luzes, fechavam-se os lagares e os portões, os cães ladravam, a gataria reatava o cio, os bêbedos esborrachavam-se contra as paredes, arremessando asneiradas e desafios de navalhas, a brisa de S. Pedro amaciava frémitos e o sono vinha pesado que, ao outro dia, a vindima e as cantigas continuavam.
    - Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".

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    quinta-feira, 22 de julho de 2010

    TERESA

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    Naquela manhã fria de Dezembro, um sol medroso espreitava pelas nuvens e as pessoas agradeciam folgando os agasalhos.

    Encostado ao muro da morgue, eu via os carros a fazerem a curva dos trilhos dos antigos eléctricos. Em frente, no bem tratado jardim, uns patos pachorrentos grasnavam, satisfeitos, a aproveitarem as clareiras do céu, enquanto uns velhotes sumidos enganavam a reforma lendo as notícias dos crimes passionais e da necrologia. O hospital, velho convento do século passado, engolia doentes anunciados por esbaforidas sirenes que partiam, depois, silenciosas, cansadas de tanto berrar. Mais acima, pelas traseiras do quartel, entravam e saíam jipes com fardas.

    A minha amiga Teresa, indefesa e inocente, era autopsiada ao mando da Lei. Uma pequena fila de carros funerários, enfeitados de cromados e interiores de púrpura, aguardavam vez numa postura de táxis. Uma morgue é um supermercado da morte de facturação consignada, com fingimentos dos compradores, como se os sentimentos se encenassem para melhorar o preço que a dor não discute, baralhada pelo espanto e as lágrimas.

    Enquanto o sol vinha e ia, a minha memória remontava à meninice, àquelas tardes de sueca em casa da Teresa, com o Pai como parceiro, discussões sobre os ases, as manilhas e os riscos apontados numa mortalha com que ele fazia os cigarros de onça. A sesta semicerrava as portas do casario, mas nós passávamos o tempo nas algazarras das oportunidades dos trunfos. Quando o cansaço chegava, o Senhor Francisco – santo e honrado homem que fizera nome como feitor nos socalcos durienses – ia amainar as fúrias no sossego da sua cama, enquanto eu e a malta da escola íamos suar para o adro da capela da Senhora da Graça com cinco minutos a jogar a bola e outros cinco a procurá-la nas vinhas circundantes; ou, então, subir o monte de S. Pedro, cheios de praganas, à cata de grilos e dos ninhos de melros com sonhos de perdizes e coelhos à cintura em entradas triunfantes na aldeia como o Dr. Cândido.

    Perto, alguém chorava, num gemido de desgosto, numa impotência revoltada incapaz de desarmar a irremediabilidade: uns olhos de criança tão vazios como uma estrela de madrugada de inverno, olhos de injustiça sem paga, de perda sem retorno.

    Um auto-fúnebre movimentou-se e entrou, de traseira, no terreiro do Instituto de Medicina Legal. Um caixão negro veio lá de dentro, meteram-no naquele, tal uma qualquer carga, o viúvo, de luto carregado, sentou-se lateralmente e, no seu colo, a criança chorando uma saudade sem entender, ainda, o seu tamanho. Arrancou, e aí foi ele, para a confusão do trânsito, tentando recuperar a espera que a cova estava longe e devia ser tapada antes de o dia morrer. Tudo morre, os corpos, a esperança, a certeza, os dias, as noites. Morre tudo porque nasce.

    O sol escondeu-se e o vento desarvorou pelas ruas. Uma ambulância, como um susto, afligiu a urgência hospitalar, os bombeiros, espavoridos, levaram a maca em correria, um deixou cair o barrete, outro gritou «deixem passar, por favor!», cabeças mórbidas debruçaram-se, curiosas das desgraças, e puseram-se a olhar umas para as outras a perguntarem por mais.

    A minha amiga Teresa, cheia de vida e de trabalho, morreu-me no bocal do telefone naquele modo de dizer: «Sabes quem morreu? A Teresa! Nem sei bem como foi. O corpo sai amanhã do hospital.» Uma pessoa fica sem jeito, porque a morte não tem maneiras, sabe-se que ela existe, quase sempre nos outros, e, quando nos bate à porta, é como uma anormalidade que não se conta, uma realidade que não merecemos.

    A meu lado há quem narre histórias de mortes violentas num consolo justificativo, numa desculpa de aceitação fatalista. Afasto-me para que o ruído da cidade impeça o escutar da morbidez.

    Um gesto, uma paragem, o autocarro a chiar, depois a arrancar, levantando as folhas e os papeis do chão, as pessoas a segurarem-se para não se esmagarem. A Teresa, retalhada, lá se foi, os filhos sem Mãe, e o sol a fugir, e as lágrimas a caírem, e o vento a gemer, e o frio a gelar, e os lábios a tremerem, e o vazio da sua falta, e um buraco rectangular à espera no cemitério da freguesia. Para lá vai, transportada com pressa que os quilómetros são tantos e a Agência leva caro que se farta que a morte está pela hora da morte.

    Gostava que morrer não fosse o fim da convivência, o arquivar da memória; não tivesse nada de prematuro ou inglório ou revoltado; que a felicidade se estendesse num tempo sem tempo - sem morte.

    O carro que transporta a Teresa desapareceu por entre os renques do jardim onde os velhos fazem, agora, as palavras cruzadas; por entre a chaparia de insultos e vinganças de ultrapassagens em que as cidades se infernizam até ao choque final, até à morgue mais próxima.

    Olhei para o alto e, cintilando-me nas lágrimas, o sol ia morrendo.
    - Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
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    sábado, 19 de junho de 2010

    RETALHOS DE UM DIÁRIO - Capítulos VIII, IX e X

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    Capítulo VIII

    Passa pouco das onze. O piloto de terra sobe para bordo. Uma invulgar fiada de espuma, fantasticamente nítida, separa as águas de estrias esverdeadas de outras esbranquiçadas com restos de sujidade espalhando-se aos baldões. Pretos pescam em almadias. O Niassa, depois de descrever uma curva prolongada para fugir dos areais, acosta, empuxado suavemente pela bossa do Maputo, entre o Osaca e o Mar Felice. Familiares, aqui radicados, acenam. Rondas da PM guarnecem o cais. A fanfarra, de predominância negra, toca marchas militares. O pessoal excita-se. A televisão filma para se ver lá no puto. Fotógrafos sobem a guindastes. Arribam fardas da Marinha e do Exército para recepcionarem a carga... Formámos à parte dos fuzileiros que tinham embarcado em Luanda. Arrancámos com um caixa a marcar a cadência. Lá vamos, não cantando e rindo, mas em silêncio garboso, como convém: «Temos que marchar com garra!», dissera-nos o Comandante. Os edifícios são airosos, de traça coeva. Uma pequena multidão negra, branca, mestiça, monhé, china, ao longo dos passeios, observa com cara acostumada. Chega-se à Praça com um garboso Mouzinho de Albuquerque empoleirado num soberbo cavalo. Em frente, a Câmara; à direita, a Catedral de torre pontiaguda, clamando ao Alto; à esquerda, prédios com reclamos de bebidas. Toques de sentido à medida que chegam Mercedes. Ouve-se o hino do Exército. Uma volúpia patriótica aumenta-me o suor. Do cimo da varanda municipal, o General-Chefe tange as cordas do incitamento. No fim, os acordes da Portuguesa, ecoando na amplidão da praça, quase me tolhem. O regresso ao barco faz-se - não me parece encenação - por entre vivas a Portugal.

    Eram seis horas quando fui chamado ao Comando para receber e distribuir o correio. Terminei o meu turno de serviço pelas vinte e uma.

    Saí com os Furriéis do meu pelotão, trocamos umas notas, nuns mexeriqueiros das imediações portuárias, e fomos em busca de uma cervejaria beber umas bazukas acompanhadas de pratinhos de camarão. O trânsito pela esquerda confunde-me. A Rua Araújo abarrota, satisfazem-se todas as sedes.

    Recolho pelas duas da manhã. Trabalhadores, formigas no fundo do porão, colocam caixotes nas prateleiras dos guindastes. A iluminação, que do cais se prolonga cidade fora, dilui-se na morrinha do cacimbo.

    Capítulo IX

    É o último dia em Lourenço Marques. O barco continua a carregar. Entra tudo, cunhetes de munições e até Unimogs. Quebranta-me uma exalação húmida. Vai ser bonito habituar-me a isto. Vamos dar uma volta pela cidade, sem afastamentos, como quem tacteia, timidamente, o desconhecido. Nem parece que há guerra em Moçambique. Um bulício cosmopolita, esplanadas a abarrotar, lojas movimentadas, consumismo no ar, carros e carrinhas nipónicas, de modelos caros, em trânsito incessante; vivendas rodeadas de jardins, algumas escondidas por muros onde assoma arborização tropical; raparigas, minimamente vestidas, alegres e tostadas; senhoras brancas empurrando carrinhos de rebentos, senhoras pretas levando-os às costas, mistura de raças sem lugares marcados, muitas indianas, de sinal na testa, limpando o chão com as suas compridas e floridas vestimentas; prédios em construção com andaimes aligeirados e os machimbombos, cheios de algazarra, cruzam-se nas amplas avenidas.

    Vedadas as saídas, até à hora da largada, entretenho-me, no bar, a ouvir mais um concerto da Orquestra Cotrim, três gastos mas respeitáveis músicos que ganham a vida, enganando a velhice nestas andanças, a entreter contingentes. Afastado da solfa, ao fundo, à volta de uma mesa de pano verde, arrumadas as cartas e os dados, um grupo de milicianos escuta o capitão Silvino que vai comandar um Esquadrão de Reconhecimento na sua terceira comissão. Tem olhos avermelhados, o indicador e o médio da mão direita amarelados, peito cheio, braços ginasticados, voz grossa e tiques de Cavalaria. Fala com fatuidade, beberricando, nas pausas, em goles de experimentado. Conta peripécias dos Dembos angolanos e das bolanhas guineenses, percebe-se que recria factos a seu jeito, adora a iconografia militarista e não descura um certo devaneio imaginário.

    O Comandante de Bandeira convida um grupo de Alferes para a sua mesa de jantar e custa-me fazer sala e exercitar etiqueta.

    Pelas cinco da manhã, o Niassa, com um grunhido de fera, levanta ferro. O Maputo ajuda o desencorar, ouvem-se duas sinetadas, depois aparta-se. Alguns embarcados, mais resistentes, acenam para o cais e renovam-se promessas de correio. As luzes da marginal encolhem-se sob a neblina.

    O mar do Canal de Moçambique não provoca balanço. O Índico, com costa à vista, tem uma tonalidade de azul turquesa. Passa-se ao largo de Inhambane. O barco vai carregadíssimo. Ficaram os fuzileiros, mas vão homens da guarnição provincial. Os convés abarrotam de viaturas, um ar de tralha, balbúrdia de mudança breve. O calor aperta. Nada-se em suor. Cada um já sabe, mais ou menos, para onde vai. Procuram-se os tarimbados, os chicos na linguagem miliciana, em busca de conselhos ou de enganos  para disfarçar receios. Os mapas do Norte saltam de mãos em mãos. Há um indisfarçável nervosismo que se percebe nos rostos, nos gestos, nos mutismos, nos isolamentos, nas altercações pueris, no abuso do álcool.

    Sento-me numa cadeira de lona, contento-me com a aragem que amacia a baforada, fumo um LM num depurado prazer, alheio-me da desordem em redor e monologo como quem necessita de acertar contas consigo próprio. O turbilhão, cá dentro, não tem sossego, remoinho da minha impotência. De cada vez que venho à superfície, tomo noção – numa brevidade aflita – de que não me quero afundar na desistência, que devo lutar pela vida, nem que grite por socorro, nem que renove a Deus – com medo de que alguma vez não me tenha acreditado - juras de fidelidade eterna em troca da salvação, nem que grite pela minha Mãe para me deitar os seus braços umbilicais. Construo a armadura invisível para me defender da contrariedade do que sinto e penso, infante dócil às ordens de espadas cintilantes, impossibilitado de lhes fugir, porque quando os soberanos que as usam se auto-nomeiam e prolongam a vida – há quem os suponha eternos – os fugitivos são sempre apanhados, na esquina de um retorno que a carência de um afastamento livre compele, por um castigo dobrado. Sou filho de uma conjuntura sobrevinda numa época de mitómanos ideológicos, podendo ter nascido antes ou depois deles, ou nem ter nascido, ou ter nascido outro, longe (desconhecedor) desta história, como se o acaso, que me mandou ir às sortes, fosse transferível para uma definitiva impossibilidade, pura e simplesmente a inexistência... Uso a realidade para amanhã – se a tiver - requerer a paga, o equilíbrio - nunca equivalente, mas, ao menos, não ingrato ou omisso - entre o despojamento dos sonhos e os riscos forçados. Sem heroísmos e sem fugas, cumpro a sina de uma cigana que, uma noite, numa barraca da Feira Popular do Porto, disse perante a palma da minha mão: «Está aqui escrito que há-de atravessar águas do mar...» Mas porquê e para quê? Uma cigana, mesmo bruxa, não sabe tudo.

    Anda, então, arcaico paquete, caravela de novos forçados, galga-me este mar que tenho pressa de regressar à minha utopia de liberdade.

    Capítulo X

    A selva, pelas quatro da tarde, emerge luxuriante, debruando a enseada de Nacala, duas meias luas como asas de um quiróptero fossilizado. As bagagens amontoam-se nos tombadilhos e os militares, sentados nelas, lembram rafeiros guardando a ração.

    - Agora é a sério! – berra um Capitão de olhar malinado.
    - Não comece já a meter medo, meu Capitão! Olhe que os cus não têm galões! – retorque, matreiro e com o à vontade de muitos copos, o Marques, conhecido, na oralidade de bordo, pelo Alferes Pinguinhas.

    Ameniza-se o nervoso da espera combinando SPMS com os que não desembarcam por seguirem para Porto Amélia e Mocímboa. A chaminé de uma fábrica de cimento («É do Champas!» - dizem alguns) parece um vulcão iluminando a noite que tombou abruptamente. A humidade elanguesce, os barulhos ecoam numa calma de laguna. Um jeep desce veloz para o Cais, deixando para trás nuvens de pó vermelho. Dois ombros estrelados apeiam-se, batem-se continências, o Brigadeiro sobe. Reúne-se na Sala de Jantar com a Oficialidade, debita boas vindas, frases feitas de entusiasmo, após o que inicia os cumprimentos. Ouve-se um rumor de sobressalto, mal compreendido, duas ou três fardas que se afastam, puxando um corpo em convulsões: o Pimentel começara a bater com as botas no chão e uma espuma epiléptica a babá-lo. Os que se aperceberam, disfarçaram, envoltos num espanto depressa devorado pela excitação, como quem abafa um insólito.

    Espera-nos um comboio de museu. Por entre corridas e berros, junto o meu pessoal, com todos os pertences, numa Berliet a desfazer-se, e acomodamo-nos, depois de transposta a vereda, numa carruagem com tábuas e cobertores. Em frente, já mais distante, o navio continua a largar carga e homens. Há uma pressa de despacho, luta-se por lugares como se uns fossem melhores do que outros. De algumas casas de alvenaria, que se pensa serem de encarregados da fábrica, há olhos curiosos; nos terreiros das palhotas envolventes fogueiras cozem a mandioca do sustento. Ouve-se um apito. Lanço um adeus derradeiro, numa emoção de fim, ao Niassa e às fardas debruçadas. Voltaremos a ver-nos? Quantos de nós irão, feitos soldadinhos de chumbo ou vivos desarreigados, para o outro lado do mar? Levar-me-ás, velho Niassa, de regresso ao chão de onde sou, onde brinquei e amei e me julgo com direito a morrer? Para onde me leva o destino, essa negação da ousadia, como se a causalidade fosse marcada ao nascer e tudo nela se justificasse, mesmo um mando de estupidez? O esticão do comboio devolve-me à terra. A malta aligeira-se e prepara-se para esquecer no sono as impressões recentes. Pelas janelas vêem-se viaturas escaqueiradas como relíquias de desastres. Um silvo agudo acorda os necrófagos da noite africana.
    FIM

    - Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória. M. Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. Pode ler também os textos deste autor no blog ForEver PEMBA.

    terça-feira, 15 de junho de 2010

    RETALHOS DE UM DIÁRIO - Capítulos V, VI e VII

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    Capítulo I;
    Capítulos II, III e IV;
    Capítulo V

    Afinal, largámos às seis. Levantei-me do beliche - não resisti à despedida - e pude assistir à entrada do Vera Cruz apinhado de fardas. Estava ali a imagem da geração sacrificada de um povo em ebulição, sem demandas das Índias, guerreando, agora, emancipações de outros impérios, cruzando os mares, cumprindo insistênciasditatoriais em nome de uma grandeza que as ideologias circundavam. Uma juventude a quem calhou a sorte de viver este tempo, de enterrar mortos e confortar feridos, encolher servidões mas vangloriar-se de não ter fugido – algum orgulho resistia à resignação -, sofrer anátemas históricos recusando julgamentos, imolada nos altares das hagiografias profanas sem culpas promissórias, iludida por utopias.

    Depois do almoço, arrasado pelo calor e pelos nervos, o sono desligou-me de tudo, acordando com o aviso do torneio de tiro ao alvo.

    Navega-se não muito afastado da costa. O céu tem a coloração do chumbo, o mar a do zinco. Adivinha-se chuva. As águas riscam-se de grossos debuxos em paralelas curvas e contra-curvas, confluindo alguns. A maresia é intensa. Escurece cada vez mais. Uma recta gigante separa as nuvens do horizonte, formando uma linda fita azul, igual às que as meninas usam para segurar as tranças. Há camaradas que, finalmente, se começam a levantar, de olhos inchados e lábios de palha. Queixam-se de dores de cabeça.

    Afinal não choveu. O oceano mexe-se muito. O navio está mais inclinado para bombordo. Passou as horas, em Luanda, a carregar. Dizem os entendidos que a carga foi mal distribuída. A sopa, na sala de jantar, ondula nos pratos e, ao andar, temos que descair para estibordo. Tenho medo que esta merda vire. De um portátil, abandonado numa pérgula, a Rádio Lobito transmite fados de Coimbra. Apetece-me gritar, as lágrimas estoiram e, no negrume, fumo cigarros ao ritmo daquelas. O barco, da proa à ré, balança sem intermitências. Tremuras prolongadas percorrem-no como se se fosse partir todo, moribundo no estertor final. Recolho-me ao camarote. Contemplo o Oceano da escotilha. A ondulação assusta, cheia de força, castelos de espuma na crista, fazendo e desfazendo-se numa feroz luta de vagas que cavalgam assustadoras até estrondearem no casco, raivosas por este lhes impedir o prolongamento do tropel. Amainam, por breves segundos, em rodopio coleante, todas eriçadas, a aprestar o assalto, emitem o silvo de uma serpente, e aí vêm elas, loucas, histéricas, direitas ao meu respeito, vergastar o vidro do óculo por onde as contemplo. O vento varre os decks, insinua-se nos corredores e escadas interiores; há portas que se abrem e se fecham como num filme de terror; os ferros das camas rangem; o camarada do beliche direito lança uma imprecação, olha-me aterrado, «e se esta porcaria vai ao fundo?!», pede-me um cigarro, «por que não me raspei disto?!»; parece que o Niassa não sai do mesmo sítio, vai à frente e volta atrás, afocinha quando os pés da cama descem, ergue-se quando a cabeceira escorrega.Zonzo, de receios contraídos, adormeço, imaginando o Bartolomeu Dias, numa casca de noz, a dobrar este Cabo.
     
    Capítulo VI
     
    A manhã surge luminosa, o mar esverdeado, quase parado, num oposto surpreendente à tempestade de véspera. Para Lourenço Marques faltam 1397 milhas.
     
    O dia corre monótono, as conversas esgotam-se; há quem leia bastante ou se arraste pelos tombadilhos; nos bares, jogam-se suecas e kings, rilham-se batatas fritase bebem-se coca-colas; engolem-se aspirinas de ressacas, olhares no vazio da lonjura, sem uma palavra, bocas cerradas e serradas por uma atormentada (in)capacidade de ir ali; alguns embrulham-se em desvanecimentos, ajanotando-se nos camuflados, dando-lhes um uso constante para os desgomarem, ansiosos por acção.
     
    Uma e meia da manhã; inicio a minha ronda de serviço. Vou à ponte. A lumieira do cigarro do vigia, avivada de cada vez que vai à boca, conforta-me. Alguém vela pelo rumo deste mastodonte. A chaminé, preta e bojuda, expele espessas fumaradas rapidamente levadas pelo vento gelado; o som matraqueado dos motores, audível pelas clara-bóias levantadas da casa das máquinas, indicia o máximo da velocidade; as bocas de alguns soldados, abertas e rociadas, dormindo ao relento para fugirem do abafamento dos seus casulos, dão uma estranha sensação de desprezo humano; os mais persistentes ressonam em camas coladas umas às outras, no meio de tábuas, malas, botas, fardas e uma repulsiva pestilência de urina, suor e tintas; nos canis, os quadrúpedes mexem-se inquietos, nervosos, e um fura a noite com uivos tristes, desfazendo nas ondas o eco do cio. Vou, depois, à proa; comungo dos gemidos do vento, com o abaixo-acima daquela, o marulho da imensidão oceânica, o mar-mundo, a noite-saudade, o horizonte-ânsia; debruço-me para ver a quilha rasgando as águas num permanente acento circunflexo de espuma doirado pelo luar. O céu, sem uma mancha de pecado, e a lua, metálica, recitam poemas de inocência; as estrelas, de vidro, dão um ambiente de cabaret a esta noite que não é minha. Olho para longe, para bem longe, a ver se algo diferente me surge, e nada, só uma vertigem de vazio. “E se o barco fosse mesmo ao fundo? O que é um gigante para o gigantesco? Ao fim e ao cabo, o mar brinca com estas toneladas todas, se lhe dá na irracionalidade eleva-as, volteia-as quantas vezes quiser e manda-nos todos a correr para os botes que não vão valer de nada; ficaríamos para a história colados nas profundezas”, penso, enquanto tusso cheio de tabaco. Os decks são parlatório de sonos desencontrados; das amuradas, corpos debruçam-se de olhos fitos na babugem que se preme contra o aço. Passa o sereno, feito guarda-nocturno do silêncio, enquanto o leme automático faz o bingo das milhas do dia seguinte. Coam-se as minhas lembranças remedidas no tempo: aquele seco edital, afixado na porta da mercearia onde em criança comprava cartuchos de rebuçados, a convocar-me para Mafra, arrancando-me de Coimbra como um dente a sangue frio; aquela chegada de Janeiro, sob um temporal desfeito que mal dava para descortinar o Convento, a entrada por uma porta lateral onde choquei com armas ensarilhadas num bivaqu interior, as redes de camuflagem, o bolor dos corredores transformados em catacumbas de martírios antigos repetidos, o cheiro a mofo das casernas se desabitadas há séculos estivessem, a luz minguada das lâmpadas escurecidas, o engraxar, com cuspe, das botas e dos polainitos, os cabelos à escovinha, o rastejar sob o arame farpado, os saltos para o galho, o equilibrismo do pórtico, a dança de gatos nas cordas sobre a Lagoa, os tiros nos alvos em carreira, o rebolar nas escadarias, as emboscadas na Tapada, os crosses para a Ericeira, os dias e as noites das cercanias torrejanas, acartando, às costas, um transmissor rádio, de castigo por singelos falares caprichosamente interditados, até o Capitão-castigador, num clarão de remorso, me mandar pousar o fardo no jeep.
     
    Ao longe, muito longe, diviso uma luz. Será um barco ou algum ponto da costa sul africana?
     
    Capítulo VII
     
    O Chefe de Mesa, mal me sento para almoçar, entrega-me um rádiotelegrama: a minha Mãe continuava a rezar por mim. Levanto-me e vou encher o mar. O Capelão, aparecendo não sei de onde, abraça-me e convida-me para a sua mesa. Se há Padres abençoados este é um deles. O Padre João ensinou-me que maisimportante do que aquilo que se diz é o que se ouve. Passamos a tarde a discutir Deus e a Fé. Se necessitasse de conversão, converso ficava.
     
    Navegamos com a costa da África do Sul à vista. Aquela luzinha que ontem vira era já um indício dela. Um avião, em reconhecimento, sobrevoou-nos por pouco tempo. Escurece. East London, já iluminada, franqueia-se por entre a poalha. Um farol manda avisos sucessivos, desenhando cones de luz. Pontos brilhantes, como velinhas alinhadas, idealizam uma extensa marginal; os binóculos passam de mão em mão e podem-se ver os faróis dos carros.
     
    Venho para a Turística onde funciona a Secretaria Militar. Sento-me a uma mesa e escrevo um maço de aerogramas. O Niassa parece um balancé. Os pratos no comedor retinem como grilos em noite de Verão; as cadeiras giratórias fazem cento e oitenta graus porque, fixas no meio, não podem fazer trezentos e sessenta; caem papéis e furadores e esferográficas e livros de registos (as máquinas de escrever estão pousadas no chão) e cinzeiros e óculos e... O sereno desabafa e historia:
     
    - Há trinta e sete anos que ando no mar e, em vez de me darem a reforma que mereço, puseram-me de sereno. Veja só: sereno! - pronunciando a palavra com desdém, enquanto tirava um Português Suave. - Passei neste Niassa temporais medonhos! Olhe, numa ocasião, em Leixões, estivemos três dias a apanhar nas trombas que foi um disparate! As vagas batiam neste costado – apontando as vigias – que pareciam fragas! Foi num Carnaval, veja bem o carnaval que nos deram! Sem passageiros, com apenas vinte toneladas de melaço no porão, isto era um brinquedo! Não entrámos na doca nem por nada. O Pátria e o Império foram, como tiros, para Vigo e nós, ali, a apanharmos porrada! Conseguimos virar para Lisboa, mas, por azar, a barra estava fechada. Navegámos a Sesimbra, demos a volta, e conseguimos apanhar mar e vento a favor. Foi o que nos safou, porque, quando não, tínhamos ido para o charco nesses dias. Quando fomos a dar conta, estávamos em Belém – gargalhando – com as máquinas paradas. Depois, um rebocador lá nos levou sãos e salvos. O quê?! Temporal aquilo?! O que nós apanhámos no Cabo foi um mar normalíssimo. (Não sei se ele notou o meu espanto). Isto, quando agarra mesmo temporal, parece um submarino! O que mais pedia, quando saímos de Lisboa, era que, no Cabo, estivesse o mar que esteve. Olha!, olha!, se visse em Leixões! Estas cadeiras e estas mesas escaqueiraram-se contra estas paredes como ovos! Sabe lá...
     
    Levanta-se para ir à cozinha escorar a copa. O sereno, encaixado nos seus sessenta e sete anos de vida e trinta e sete de mar, senta-se de novo. Deixo-o no seu trabalho de numerar os cartões dos beliches. Fecho a porta, ele começa a assobiar.
     
    Durban desponta de madrugada. Ao começo, umas luzes dispersas e envergonhadas, depois, clarões alaranjados de fábricas enormes. Uma cordilheira emerge e um farol (há imensos ao longo da costa Sul Africana), incansável, silva. Percorreram-se, a uma velocidade de 14,4 nós, nas últimas 24 horas, 346 milhas. Lourenço Marques estava a 39.
    Continua...

    - Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória. M. Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua..

    quarta-feira, 9 de junho de 2010

    RETALHOS DE UM DIÁRIO - Capítulos II, III e IV

    (Clique na imagem para ampliar)

    Capítulo I
    Capítulo II

    Eram nove horas quando passámos as Canárias. Foi o primeiro sinal de terra depois de Lisboa: sombras longínquas emergindo na imensidão, ponteadas por silhuetas de casario, rapidamente engolidas pela fita do horizonte.

    Regressámos, após o aturdimento, aos lugares de rotina, aos cigarros, aos livros, às conversas do mais-valia-estares-calado, à modorrice das cadeiras de lona, ao anedotário forçado, à cegueira do mar.

    Gastam-se, nos bares, os escudos em pulseiras, isqueiros, mas, principalmente, em muita cerveja.

    O Pimentel, meio careca, olhos encovados, nariz de periquito, lábios talhados a navalha, queixo caindo desajeitadamente, falar nervoso, empurrando constantemente os óculos para cima, manifesta a sua nevrose ulceróide.

    - Esta comida mata-me. Trago uma tonelada de medicamentos, mas não me vão valer um corno. Só a leite não me safo.
    - Admira-me como estás aqui.
    - Não tive empenhos de ninguém. No hospital da Estrela disseram-me que a tropa cura tudo. Nem a uma Junta Médica me propuseram. Chegando lá, vou direitinho para o hospital. Nem que me faça de doido.

    Majores e Capitães discutem, em grupo, a fazerem horas para a segunda mesa que é às dezanove e trinta. Distingo pequeninas luzes, pirilampos sobre o mar. Estamos a entrar no golfo da Guiné, o calor é sufocante. A nossa posição está afixada no átrio da primeira classe: latitude – 27 06º norte; longitude – 15 21º oeste; distância percorrida em 24 horas – 377 milhas; a navegar – 3339 milhas; velocidade – 15,7 nós.

    Hoje há cinema. O écran é um pano branco preso ao mastro da ré, onde o Kirk Douglas vence leões perante o ar desolado de um deprimente Calígula.

    Visito a casa das máquinas: seis cilindros trabalham incessantemente, os êmbolos sobem e descem em tão impressionante velocidade que os julgamos parados; um moço guedelhudo, com óleo a brilhar em todo o corpo, é incansável na limpeza, fazendo rodopiar o desperdício. Umas escadas abaixo, o circuito emaranhado de tubos não deixa perceber o princípio e o fim daquilo. Peço uma explicação a um homem de meia idade, responde-me seco e rápido, mal o escutando no meio daquele barulho gigantesco. Ofereço-lhe o ouvido e vira-me as costas. Não entendo como ele compreendeu a minha pergunta. A certeza de que, onde estou, já é dentro de água, sufoca-me. Fujo cá para cima. Na proa, deixo-me vergastar pelo vento e pelas gotículas de espuma que se elevam do refluxo das vagas.

    Capítulo III

    A vaga larga deixou-nos, regressaram as ondas pequenas como bichos carpinteiros. Aparecem, por onde passo, manchas de vómitos que dão uma imagem de náusea, de ruínas, de vida destoante, de apetites estragados. A enfermaria já tem doentes e os médicos que vão a bordo dão consultas em qualquer ponto de encontro. O calor aperta mais, abafa num cheiro de mistura de suor, restos de comida e pestilência latrinária que umas breves bátegas graúdas não desfizeram, pois o sol, escaldante, seca tudo mais depressa do que demora a dizer.

    O barco está a andar menos; o mar, mais cavado, não ajuda; a ventania sopra forte de caras à proa; as ondas, arredadas para os lados, sobem mais que o normal. Quem estiver na vante, suportando o terrível balanço, e olhar para a torre de comando, vê-a desaparecer e aparecer num movimento de mandíbula gigante. Peixes voadores, em volúvel desafio, acompanham-nos durante algum tempo. O céu, sem princípio nem fim, de uma chocante amplidão, reduz-nos a um ínfimo incontrariável; a lua, de um limpo imaculado e definível, consente-nos um deslumbramento; as estrelas, débeis e humildes, ameaçam apagar-se à mais pequena aragem, embora tenham um brilho de gelo.

    Passei no hospital, em cuja morgue o corpo de um velho tripulante – de coração gasto por tantas viagens - aguarda a chegada a Luanda para depois regressar ao chão da sua origem. Nos porões, os soldados são obrigados a dormir nus para melhor resistirem ao calor que nem uns tubos de pano enfunados conseguem amaciar.

    Atravessou-se o Equador às quatro da manhã com o barco envolto no sono, sem as costumeiras festas comemorativas. Ainda bem, detesto alegrias preparadas e bebedeiras gratuitas. Não durmo. Estou recostado numa cadeira do deck-A, olhando a escuridão uivante, os salpicos do mar a caírem-me aos pés, uma desumanidade sinistra. O baloiçar lembra-me um carro numa estrada de lombas, a proa e a popa jogam o tu-cá tu-lá, ora é esta a levantar e aquela a afocinhar ou vice – versa. Aqui vou eu, neste túmulo enorme, numa submissão compressora, só mar e céu, longe de tudo, dos meus, dos afectos, das fragrâncias dos vinhedos, do suor dos cavadores, do ar suspenso no cair do dia, dos ecos dos remoques, do ladrar dos cães aos ébrios da noite.

    As ondas vergastam o casco, entoam como murros de raiva, metem medo; o vento, de leste, nem deixa acender um cigarro. Recolho-me ao beliche com a preocupação de não acordar o parceiro do lado.

    Capitulo IV

    Informam-nos que já se passara S. Tomé e Príncipe sem avistar vivalma.

    A nossa posição: latitude – 08 22º Sul; longitude – 12 40º Este; distância navegada nas últimas 23 horas (resultante do adiantamento de uma): 344 milhas; velocidade: 15 nós; a navegar (até Luanda): 46 milhas.

    Na noite anterior, quando dávamos mais uma volta aos ponteiros dos relógios, vimos, a uma alegre distância, os holofotes da fragata que nos começou a escoltar. Os seus sinais de luzes foram correspondidos com uma algazarra que mais parecia um grito de libertação. A ansiedade tomou conta de todos e o resto da noite foi um prolongamento daquela.

    Ao meio-dia arrearam a escada do portaló. Há um frémito de emoção. Na lonjura, uma mancha escura surge por entre uma neblina refractada. A orquestra de bordo toca. Os bares não têm descanso: pedem-se martinis e cubas libres atulhados de gelo, bebem-se as cervejas pelo gargalo, há muitas asas e muitos grãos, berros avulsos de nervosismo. Penduram-se, ao pescoço, máquinas vulgares e outras sofisticadas, lembram-se parentescos a viver em Luanda e arquitectam-se barrigadas de camarão. A fragata apita, corre paralela, deixa-se retardar, os marinheiros perfilam-se e acenam com os bonés. Um prazer de companheirismo flutua no mar. Vamo-nos aproximando de Luanda. O Niassa tem os varandins repletos, nem uma nesga por onde os atrasados possam espreitar. Dois gasolinas, um cheio de raparigas esplendorosas, outro com um careca de barriga inchada, aceleram e afastam-se. A lancha dos pilotos esfaqueia as águas. Ouve-se, distintamente, a desaceleração do navio. A escada desce, ainda mais, quase roçando as águas. O Comissário, na plataforma da ponte, de rádio na mão, transmite instruções, recebe o piloto que guiará o barco até à acostagem. Dois rebocadores, o Quitexe e o Bero, contornamnos e colocam-se a bombordo. O piloto, na torre de comando, dá àqueles, por intercomunicador, ordens de marinhagem. O Quitexe dirige-se, então, para a popalado-bombordo e encosta, suavemente, a bossa. O Bero, por sua vez, apressa os motores, lançando uma fumarada espessa, dirige-se para a frente da proa, dois negros atam o cabo à amura, e aquele afasta-se, esbaforido, como se receasse ser esmagado pelo Niassa. O Quitexe, esse, continua, na ré, a empurrar, comprimindo a bossa contra o costado.

    Entre os militares, a bordo, e algumas pessoas que estão no cais, iniciam-se reconhecimentos recíprocos; é uma confusão sem domínio, parece que tudo acabou aqui. A amarração está feita. Rondas de polícias militares, garbosos, de camuflados passados a ferro e lencinhos ao pescoço, erectos e peneirentos, fazem a segurança na zona do paredão. Começa a descida, os cartões de autorização amarrotados nas mãos.

    Percorro a meia lua da marginal de lindas palmeiras. À sombra destas alinham-se bancos para saborear a brisa. Gozo, ao fim de tantos dias, o caminhar sobre a terra, meio tonto, desabituado, lançando, em redor, os olhos esfomeados. Não há um táxi; continuo a pé. Observo os prédios airosos, geométricos e alinhados; carros descapotáveis no passeio domingueiro, cabelos ao vento como se quisessem despegar-se das cabeças. Não é possível! Onde está a guerra? Nos sinais: jeeps cheios de camuflados e G-3 cruzam-se no à vontade de terra vigiada, olham-nos trocistas, com aquele ar superior de velhice guerreira.

    - Leve-nos à baixa – todas as cidades têm uma baixa -, peço ao condutor, finalmente conseguido, um mulato corpulento que sorri à solicitação.

    Quinze angolares saldam a corrida. Entrámos, eu e os meus acompanhantes, num restaurante com nome transmontano. O empregado que nos atendeu, quando soube de onde éramos, confessou-se:

    - Vim para cá em 63, estive no Norte, e, quando estava para embarcar, resolvi ficar. Gosto disto, mas já tenho – pondo a mão no peito- um aperto aqui. Talvez vá lá no Natal.

    Pagamos a conta e despedimo-nos. Em novo táxi, fomos para a Ilha: barracas, numeradas a cal, ladeiam a estrada da restinga; velhos, de barbicha branca, defumam a idade; na areia, sob a chapada do sol, crianças brincam com pneus lisos; nas esplanadas, barbecus domingueiros incendeiam o ar com aromas de churrascos; trinca-se, na espera, marisco acompanhado com uísques e cervejas geladas num deguste vagaroso; vivendas luxuosas, com espampanantes carros à porta, dão um tom de capitalismo ávido, a que não falta o moleque de uniforme branco; nas ruas, alcatroadas ou de terra batida, gingam negras de filhos às costas e sorrisos de neve.

    Regressei ao Centro do trânsito caótico. Fui aos Correios mandar um telegrama para casa, olhei a Fortaleza, não dava para lá ir, imaginei os caminhos do Grafanil, lugar lendário da tropa, e dirigi-me para o morro dos musseques onde havia zaragatas no ar, procuras de sexo, olhares suspeitos, correrias persecutórias, odores intensos de catinga e petróleo queimado, uma viração deletéria.

    O Niassa desamarraria pelas duas da madrugada. Relanço um último olhar a Luanda, aos seus lambrequins arquitectónicos em que, diante de uma baía serena como um lago, se misturam as origens lusas e as raízes naturais numa garridice cativante.

    Subi para o barco numa desilusão de fim de festa. Ainda vi meter o caixão, com o tripulante falecido, num Land-Rover com as cores e o nome da companhia de navegação a que pertence o Niassa. Fui-me deitar, não querendo, sequer, escutar o urro que o barco dá ao partir.
    Continua...

    - Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória. M. Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua.

    sexta-feira, 4 de junho de 2010

    RETALHOS DE UM DIÁRIO - Capítulo I

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    Capítulo I

    Aqui estou, estranhamente sereno, no meu camuflado ainda de goma, quase plástico, com galões dourados a simularem-me o indulto da contrariedade, esperando a chegada de um velho General que se levantou tarde ou se esqueceu de mais um embarque para despachar. Aqui estou cheio de sono, com a noite anterior passada a beber cervejas e a apalpar mulheres, Lisbon by night, as meretrizes da Avenida, a pancada do Cais do Sodré, os Cafés do Chiado cheios de fumo das conspirações escancaradas para a Pide se entreter, as chagas prostituídas do Intendente, o Tejo sem os meninos do Soeiro Pereira Gomes ou os Gaibéus do Alves Redol; em S. Bento a teimosia guardada de um ditador e, sob a ponte com o seu nome, nem um barco de liberdade. Berrei, naquelas horas, a tentativa do esquecimento. Coimbra estava longe e, pressentiu-se-me, irremediavelmente perdida; as serenatas uma saudade de alma a sangrar. Coimbra parara num guarda-vestidos da velha casa onde nasci com uma capa negra à minha espera. Os livros na estante do meu quarto, vazio durante dois anos, resistiriam à humidade de dois invernos porque havia sempre dois verões para os secar. Minha Mãe frequentaria a Igreja com a devoção redobrada, de preto vestida como um luto de morta-viva, sem sorriso, os olhos de vermelho escuro. As flores, na Primavera, desabrochariam sem a satisfação do meu olhar e o jardim cresceria à medida da minha ausência. A aldeia não me veria a cara, os caminhos e as ervas dos vinhedos não sentiriam os meus passos, a luz continuaria a faltar, a água seria promessa renovada, a fome espreitaria alguns lares pobres, os meninos deles brincariam descalços e o meu Avô continuaria lá adiante, no Espírito Santo, à minha espera.

    Saí cedo do quartel, os Unimogues e as Berlietes a esmurrarem os olhos da noite, repletas de caixotes, sacos e homens-crianças de estômagos enfartados de pão e leite misturado com mentol. A cidade, uma sombra enorme: grupos de operários, de marmitas nas mãos, a dirigirem-se para a cintura das chaminés gigantes que nunca paravam de vomitar labaredas como vulcões em ressaca; Vila Franca lá atrás, tapada pela Siderurgia e perdida na lezíria; na auto-estrada da Encarnação os primeiros carros corriam, ainda à vontade, de faróis acesos.

    Gostava que alguém trouxesse o General para acabar com esta palhaçada e os soldados terminarem os abraços e secarem os olhos. Eu não choro. Já me chegou a despedida no fim daqueles amargurados doze dias que me deram de licença como se fosse a última vontade de um condenado. Por muitos anos que viva, jamais esquecerei aquele aperto de minha Mãe: tinha o sangue do cordão umbilical, o despedaçar de um coração único. Julguei morrer ali, envolto naqueles braços, amortalhado por aquelas lágrimas, aquele pranto do fim do mundo, enfiados num quarto feito dispensa da casa secular em que nasci. Disse para comigo: «NÃO VOU!». Os gajos que me viessem prender, que me arrastassem para onde quisessem. Afinal, por que me separavam da minha Mãe? Com que direito? Ao mando de que razão? Plantassem as cruzes noutro cemitério, medalhassem peitos nas praças imperiais, o meu só queria a liberdade e o amor. Mas estou aqui, sem fugir para Genebra, sem inventar úlceras, miopias ou pés chatos, sem cunhas para me livrarem da tropa; estou aqui, cobarde da minha revolta, mas, certo de que ninguém me chamará desertor, com este magote que enerva, à espera - repito - de um velho General desocupado que finja que passou revista ao atavio do batalhão, devidamente filmado por uma câmara para à noite abrir o telejornal e mostrar à Nação mais um contingente a marchar rumo a África «no cumprimento do dever». O barulho é uma inércia auditiva. Olho as estátuas, sem heráldica, da Polícia Militar, e dão-me pena, pena não, desalento, é isso, um imenso desalento como quem é obrigado a conviver com a inutilidade. Apetecia-me ir embora, mandar bugiar isto tudo, voltar a Coimbra, ao bar das Letras, tomar um café para ver aqueles borrachos a mostrarem as coxas, os mamilos a esticarem as blusas, e, eu, tímido, fingindo descontracção, pagaria a conta, desceria à Baixa, ali pelo Quebra-Costas, daria meia volta até à Sofia e subiria Sá da Bandeira. Na Praça da República, num banco virado para o Mandarim, faria horas para o almoço na Associação, passando os olhos pela Vértice ou pelo Via Latina. Mas não, estou aqui, ensonado, farto de esperar, ansioso que estas cenas acabem, com o olfacto saudoso dos cheiros das vinhas e da cozinha da minha casa. Ao lado, o Niassa com a escada do portaló descida e alguns tripulantes debruçados na amurada, curiosos por coisas diferentes de outros embarques.

    - Meu Alferes, o nosso Capitão está a chamá-lo – diz-me o Cabo Álvaro sem expressão na voz.
    - O meu Capitão chamou-me? – apresento-me, erecto e militarão, como me ensinaram em Mafra.
    - Silvestre, arranje-me uns homens do seu pelotão para levarem uns caixotes para bordo. Estão junto daquele – apontando com o indicador direito - jeep da PM – ordenou-me o capitão Silveira.

    Chamei o Furriel Manso para escolher seis homens e disse-lhe o que deviam fazer. Vi-o chamar o Cabo Álvaro e constatei a eficiência da hierarquia militar.

    De repente, um tremor a despertar modorras, toda a gente começa a correr. Ouvem-se vozes de comando meio baralhadas, repetem-se despedidas, os comandantes das Companhias mandam formar. Acho que é, agora, finalmente, que o General vem. Os tipos da televisão erguem as máquinas de filmar. O meu pelotão está pronto. Os familiares dos militares acotovelam-se e o varandim da Rocha de Conde de Óbidos está à cunha. Há toques de clarim e ruídos de portas de carros a bater, continências a torto e a direito, risos nervosos e apertos de mãos para a chapa. Em posição de à vontade, tenho atrás. O pelotão com o Silva a fungar, o Dias a insultar o Cubano e este a responder-lhe à letra, o Luís a ajoelhar o traseiro do Dionísio que esperneia caneladas, o Álvaro a assoar-se. Viro-me para amainar o temporal.

    - Nosso Alferes! - gritou-me o Capitão Silveira. – O seu pelotão está pronto?
    - Sim, meu Capitão! Terceiro pelotão pronto! – disparei, lembrando instruções de ordem unida.

    Pousou um silêncio de começo de Missa. Com todo o corpo militar em sentido, surge, ao fundo, o General de estrelas brilhantes, novinhas como se tivesse sido promovido no dia anterior. A banda toca a marcha Angola é Nossa. O velho Oficial inicia a inspecção às tropas no ritmo apressado de quem se quer desembaraçar de uma chatice. Olho o céu e ninguém me traz a alegria e a paz, sou prisioneiro dentro deste espaço, com fé, mas sem profetas; o sol não anuncia que a guerra vai acabar e os anjos não nascem na ilusão de quem não lhe apetece partir. Acabada a revista, a Alta Patente calhou postar-se diante de mim, esperando o desfile em continência. Tem uma cara de rugas em cortinas e um nariz absurdamente elegante no meio de uns olhitos inócuos que observam encobertos por umas grossas lentes de miopia anciã.

    Os militares, à medida que o desfile se desenrolava, subiam para o barco. Apressei-me quando chegou a minha vez. Não tinha ninguém a quem acenar; pedira para que me poupassem a repetição do afastamento. Ainda não alcançara o tombadilho, ouço uma voz a chamar-me. Volto-me. Vejo o Jorge, grande amigo feito em Mafra, no empedrado, a gesticular e a gritar: «Vou amanhã para a Guiné!» Sorrio e desejo-lhe boa sorte. Debrucei-me na balaustrada, enquanto ainda desfilava um resto, mas a PM, imperial nos seus lenços amarelos, afastou-o sem parar de acenar.

    Era uma coisa indescritível: gritos, berros, choros, gemidos, apelos, recomendações, lenços agitados, crianças apavoradas, Mães desfalecidas e, também, carpideiras avençadas. Parecia o desespero de um Povo a clamar uma orfandade colectiva. Então, invadiu-me uma tristeza tão grande e tão forte que não segurei o choro, qual um rio a romper o dique da minha impotência de não conseguir dizer NÃO, de estoirar com a chantagem da deserção, da coacção do anti-patriotismo.

    O barco apitou. Muito devagarinho, como se quisesse desamarrar sem se notar, o Niassa separou-se do cais. Da banda militar, irromperam, inesperadamente, os acordes do Hino Nacional. Estremeci, o sangue a ferver, os pêlos a roçarem a farda, as lágrimas em cascata. Meu Deus!, aquilo soube-me a traição sem dicionário, exploração sentimental, alibi de uma infracção, um recurso cruel para o inabdicável. A terra ia ficando longe. Junto a mim, um soldado, de cerveja na mão, perdido de bêbedo, espumando palavras sem nexo, «Haja alegria! Haja alegria!», ria, ria alarvemente.

    Lisboa manchava-se no horizonte. Lisboa capital de uma Pátria que espalhava a sua juventude pelos matos da guerra, sem um esboço de paz, sem uma esperança de que o sofrimento valesse para alguma coisa.

    O terraço de Alcântara era um lenço gigante ondulando às tágides, soprando velas e espargindo lutos. O soldado bêbedo, enrodilhado no chão, como uma criança a quem arrancaram um presente, gemia: «Eu quero a minha Mãe! Eu quero a minha Mãe!» Levantei-o, nem sei se com piedade ou raiva, e chorámos os dois como choram dois irmãos verdadeiros: agarrados um ao outro.

    Os alto-falantes anunciam: «O almoço começou a ser servido. Oferecemos, entretanto, um programa de música seleccionada.» Os sons tristes de La poupée qui fait non acompanham-me até à sala de jantar. Como só fruta. A cabeça entontece-me. Os soldados, de pratos nas mãos, não sabem para onde ir. É um ambiente desorganizado, de começo. A diferença das águas do Mar da Palha para as do Atlântico acentua-se: mais azuis e movimentadas. Lisboa é, agora, uma pincelada de névoa sebastiânica. Uma lancha junta-se ao barco para recolher o piloto que vai descendo pelos degraus do portaló. Aquela apita forte, trocam-se votos de boa viagem, e, acelerando os motores, afasta-se. À distância regulamentar, uma fragata escolta-nos. Gaivotas elevam-se sobre os mastros para depois picarem em voos razantes. Um ar pesado de enjoo envolve o quartel flutuante. Debruçados nas amuradas, homens vomitam o almoço e olham para o sítio de onde partimos. Dói-me a cabeça, pareço andar à roda. Deambulo pelos decks, vejo gente que não conheço, absorta, de olhos inchados, caras perdidas.

    Navega-se, moderadamente, por entre babas de espuma, sem nada já ao longe, uma solidão infinita, um desamparo que atordoa, um abandono irremediável. Chegam os primeiros radiogramas. Antes não viessem: «Todos estão contigo. Felicidades e um regresso rápido.» Está bem, um regresso rápido para quem acaba de partir. Procuro conhecidos para mastigar palavras, mas eles e elas enclausuraram-se. Os relógios são atrasados uma hora e à meia-noite terão igual recuo. Não suporto a dor de cabeça, sinto uma estranha sonolência de delíquio. Vou para o camarote e deixo-me embalar por este berço gigante.
    Continua...

    - Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória. M. Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua.
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