quarta-feira, 9 de junho de 2010

RETALHOS DE UM DIÁRIO - Capítulos II, III e IV

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Capítulo I
Capítulo II

Eram nove horas quando passámos as Canárias. Foi o primeiro sinal de terra depois de Lisboa: sombras longínquas emergindo na imensidão, ponteadas por silhuetas de casario, rapidamente engolidas pela fita do horizonte.

Regressámos, após o aturdimento, aos lugares de rotina, aos cigarros, aos livros, às conversas do mais-valia-estares-calado, à modorrice das cadeiras de lona, ao anedotário forçado, à cegueira do mar.

Gastam-se, nos bares, os escudos em pulseiras, isqueiros, mas, principalmente, em muita cerveja.

O Pimentel, meio careca, olhos encovados, nariz de periquito, lábios talhados a navalha, queixo caindo desajeitadamente, falar nervoso, empurrando constantemente os óculos para cima, manifesta a sua nevrose ulceróide.

- Esta comida mata-me. Trago uma tonelada de medicamentos, mas não me vão valer um corno. Só a leite não me safo.
- Admira-me como estás aqui.
- Não tive empenhos de ninguém. No hospital da Estrela disseram-me que a tropa cura tudo. Nem a uma Junta Médica me propuseram. Chegando lá, vou direitinho para o hospital. Nem que me faça de doido.

Majores e Capitães discutem, em grupo, a fazerem horas para a segunda mesa que é às dezanove e trinta. Distingo pequeninas luzes, pirilampos sobre o mar. Estamos a entrar no golfo da Guiné, o calor é sufocante. A nossa posição está afixada no átrio da primeira classe: latitude – 27 06º norte; longitude – 15 21º oeste; distância percorrida em 24 horas – 377 milhas; a navegar – 3339 milhas; velocidade – 15,7 nós.

Hoje há cinema. O écran é um pano branco preso ao mastro da ré, onde o Kirk Douglas vence leões perante o ar desolado de um deprimente Calígula.

Visito a casa das máquinas: seis cilindros trabalham incessantemente, os êmbolos sobem e descem em tão impressionante velocidade que os julgamos parados; um moço guedelhudo, com óleo a brilhar em todo o corpo, é incansável na limpeza, fazendo rodopiar o desperdício. Umas escadas abaixo, o circuito emaranhado de tubos não deixa perceber o princípio e o fim daquilo. Peço uma explicação a um homem de meia idade, responde-me seco e rápido, mal o escutando no meio daquele barulho gigantesco. Ofereço-lhe o ouvido e vira-me as costas. Não entendo como ele compreendeu a minha pergunta. A certeza de que, onde estou, já é dentro de água, sufoca-me. Fujo cá para cima. Na proa, deixo-me vergastar pelo vento e pelas gotículas de espuma que se elevam do refluxo das vagas.

Capítulo III

A vaga larga deixou-nos, regressaram as ondas pequenas como bichos carpinteiros. Aparecem, por onde passo, manchas de vómitos que dão uma imagem de náusea, de ruínas, de vida destoante, de apetites estragados. A enfermaria já tem doentes e os médicos que vão a bordo dão consultas em qualquer ponto de encontro. O calor aperta mais, abafa num cheiro de mistura de suor, restos de comida e pestilência latrinária que umas breves bátegas graúdas não desfizeram, pois o sol, escaldante, seca tudo mais depressa do que demora a dizer.

O barco está a andar menos; o mar, mais cavado, não ajuda; a ventania sopra forte de caras à proa; as ondas, arredadas para os lados, sobem mais que o normal. Quem estiver na vante, suportando o terrível balanço, e olhar para a torre de comando, vê-a desaparecer e aparecer num movimento de mandíbula gigante. Peixes voadores, em volúvel desafio, acompanham-nos durante algum tempo. O céu, sem princípio nem fim, de uma chocante amplidão, reduz-nos a um ínfimo incontrariável; a lua, de um limpo imaculado e definível, consente-nos um deslumbramento; as estrelas, débeis e humildes, ameaçam apagar-se à mais pequena aragem, embora tenham um brilho de gelo.

Passei no hospital, em cuja morgue o corpo de um velho tripulante – de coração gasto por tantas viagens - aguarda a chegada a Luanda para depois regressar ao chão da sua origem. Nos porões, os soldados são obrigados a dormir nus para melhor resistirem ao calor que nem uns tubos de pano enfunados conseguem amaciar.

Atravessou-se o Equador às quatro da manhã com o barco envolto no sono, sem as costumeiras festas comemorativas. Ainda bem, detesto alegrias preparadas e bebedeiras gratuitas. Não durmo. Estou recostado numa cadeira do deck-A, olhando a escuridão uivante, os salpicos do mar a caírem-me aos pés, uma desumanidade sinistra. O baloiçar lembra-me um carro numa estrada de lombas, a proa e a popa jogam o tu-cá tu-lá, ora é esta a levantar e aquela a afocinhar ou vice – versa. Aqui vou eu, neste túmulo enorme, numa submissão compressora, só mar e céu, longe de tudo, dos meus, dos afectos, das fragrâncias dos vinhedos, do suor dos cavadores, do ar suspenso no cair do dia, dos ecos dos remoques, do ladrar dos cães aos ébrios da noite.

As ondas vergastam o casco, entoam como murros de raiva, metem medo; o vento, de leste, nem deixa acender um cigarro. Recolho-me ao beliche com a preocupação de não acordar o parceiro do lado.

Capitulo IV

Informam-nos que já se passara S. Tomé e Príncipe sem avistar vivalma.

A nossa posição: latitude – 08 22º Sul; longitude – 12 40º Este; distância navegada nas últimas 23 horas (resultante do adiantamento de uma): 344 milhas; velocidade: 15 nós; a navegar (até Luanda): 46 milhas.

Na noite anterior, quando dávamos mais uma volta aos ponteiros dos relógios, vimos, a uma alegre distância, os holofotes da fragata que nos começou a escoltar. Os seus sinais de luzes foram correspondidos com uma algazarra que mais parecia um grito de libertação. A ansiedade tomou conta de todos e o resto da noite foi um prolongamento daquela.

Ao meio-dia arrearam a escada do portaló. Há um frémito de emoção. Na lonjura, uma mancha escura surge por entre uma neblina refractada. A orquestra de bordo toca. Os bares não têm descanso: pedem-se martinis e cubas libres atulhados de gelo, bebem-se as cervejas pelo gargalo, há muitas asas e muitos grãos, berros avulsos de nervosismo. Penduram-se, ao pescoço, máquinas vulgares e outras sofisticadas, lembram-se parentescos a viver em Luanda e arquitectam-se barrigadas de camarão. A fragata apita, corre paralela, deixa-se retardar, os marinheiros perfilam-se e acenam com os bonés. Um prazer de companheirismo flutua no mar. Vamo-nos aproximando de Luanda. O Niassa tem os varandins repletos, nem uma nesga por onde os atrasados possam espreitar. Dois gasolinas, um cheio de raparigas esplendorosas, outro com um careca de barriga inchada, aceleram e afastam-se. A lancha dos pilotos esfaqueia as águas. Ouve-se, distintamente, a desaceleração do navio. A escada desce, ainda mais, quase roçando as águas. O Comissário, na plataforma da ponte, de rádio na mão, transmite instruções, recebe o piloto que guiará o barco até à acostagem. Dois rebocadores, o Quitexe e o Bero, contornamnos e colocam-se a bombordo. O piloto, na torre de comando, dá àqueles, por intercomunicador, ordens de marinhagem. O Quitexe dirige-se, então, para a popalado-bombordo e encosta, suavemente, a bossa. O Bero, por sua vez, apressa os motores, lançando uma fumarada espessa, dirige-se para a frente da proa, dois negros atam o cabo à amura, e aquele afasta-se, esbaforido, como se receasse ser esmagado pelo Niassa. O Quitexe, esse, continua, na ré, a empurrar, comprimindo a bossa contra o costado.

Entre os militares, a bordo, e algumas pessoas que estão no cais, iniciam-se reconhecimentos recíprocos; é uma confusão sem domínio, parece que tudo acabou aqui. A amarração está feita. Rondas de polícias militares, garbosos, de camuflados passados a ferro e lencinhos ao pescoço, erectos e peneirentos, fazem a segurança na zona do paredão. Começa a descida, os cartões de autorização amarrotados nas mãos.

Percorro a meia lua da marginal de lindas palmeiras. À sombra destas alinham-se bancos para saborear a brisa. Gozo, ao fim de tantos dias, o caminhar sobre a terra, meio tonto, desabituado, lançando, em redor, os olhos esfomeados. Não há um táxi; continuo a pé. Observo os prédios airosos, geométricos e alinhados; carros descapotáveis no passeio domingueiro, cabelos ao vento como se quisessem despegar-se das cabeças. Não é possível! Onde está a guerra? Nos sinais: jeeps cheios de camuflados e G-3 cruzam-se no à vontade de terra vigiada, olham-nos trocistas, com aquele ar superior de velhice guerreira.

- Leve-nos à baixa – todas as cidades têm uma baixa -, peço ao condutor, finalmente conseguido, um mulato corpulento que sorri à solicitação.

Quinze angolares saldam a corrida. Entrámos, eu e os meus acompanhantes, num restaurante com nome transmontano. O empregado que nos atendeu, quando soube de onde éramos, confessou-se:

- Vim para cá em 63, estive no Norte, e, quando estava para embarcar, resolvi ficar. Gosto disto, mas já tenho – pondo a mão no peito- um aperto aqui. Talvez vá lá no Natal.

Pagamos a conta e despedimo-nos. Em novo táxi, fomos para a Ilha: barracas, numeradas a cal, ladeiam a estrada da restinga; velhos, de barbicha branca, defumam a idade; na areia, sob a chapada do sol, crianças brincam com pneus lisos; nas esplanadas, barbecus domingueiros incendeiam o ar com aromas de churrascos; trinca-se, na espera, marisco acompanhado com uísques e cervejas geladas num deguste vagaroso; vivendas luxuosas, com espampanantes carros à porta, dão um tom de capitalismo ávido, a que não falta o moleque de uniforme branco; nas ruas, alcatroadas ou de terra batida, gingam negras de filhos às costas e sorrisos de neve.

Regressei ao Centro do trânsito caótico. Fui aos Correios mandar um telegrama para casa, olhei a Fortaleza, não dava para lá ir, imaginei os caminhos do Grafanil, lugar lendário da tropa, e dirigi-me para o morro dos musseques onde havia zaragatas no ar, procuras de sexo, olhares suspeitos, correrias persecutórias, odores intensos de catinga e petróleo queimado, uma viração deletéria.

O Niassa desamarraria pelas duas da madrugada. Relanço um último olhar a Luanda, aos seus lambrequins arquitectónicos em que, diante de uma baía serena como um lago, se misturam as origens lusas e as raízes naturais numa garridice cativante.

Subi para o barco numa desilusão de fim de festa. Ainda vi meter o caixão, com o tripulante falecido, num Land-Rover com as cores e o nome da companhia de navegação a que pertence o Niassa. Fui-me deitar, não querendo, sequer, escutar o urro que o barco dá ao partir.
Continua...

- Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória. M. Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua.

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