No último artiguinho aqui publicado falei no monte do Maio e falei de tudo quanto a vista pode alcançar dali, daquele lugar altaneiro, um belo miradouro debruçado sobre o casario do Peso, sobre o vale de Jugueiros e toda a montanha de Loureiro com a ossatura bronzeada do Marão a servir de pano de fundo, na distância dos cenários.
Eu, amigo, de todos os horizontes e todas as lonjuras, tinha por costume subir até lá cima, ao monte do Maio. Isto nos tempos da minha juventude, como se quisesse deixar por ali as marcas do meu território e refazer o mundo das minhas aventurosas descobertas.
Adiante… Já me perguntaram se é fácil subir ao monte do Maio. Mas, vamos voltar lá, em busca dos longes revelados e a matar alguns velhos saudosismos.
Digamos, desde já, que o monte do Maio não tem acesso por estrada pública e só uns caminhos de consortes e umas escadinhas da meia-encosta lhe vão dando a necessária serventia. Digamos ainda que o monte do Maio não é altaneiro em demasia. Visto em altitude, é um arremedo de monte. Mas é um prodígio de vistas panorâmicas.
Tanto eu como meus irmãos, além doutras ocasionais fraternidades, tínhamos ali, mesmo no ciminho, o símbolo de todas as aventuras e que era um marco geodésico sempre caiadinho de branco e a que chamávamos o Pinoco.
Por esse tempo dizíamos que o Pinoco mirava outros Pinocos lá por longe, de monte em monte e que serviam para uma conveniente medição da terra. Também ouvíamos dizer que era por via da tropa e de uma qualquer estratégia militar.
Dito isto, vamos ali, a deslado do Pinoco, ver a casa do Bernardo Perdigão. Ele e a mulher a Engrácia, não têm filhos e vivem naquele meio desterro, afeiçoados a uma casa que não tem água nem tem luz. Mas é uma casa ainda altaneira, debruçada sobre o vale do Fontão e Remostias, ainda os baixios das Fontainhas com a sua antiga Capela das Sete Esquinas.
Em volta da casa do Bernardo tem o governo de duas ou três pipas de vinho, algumas árvores fruteiras e uma pequena horta de couve galega e outros renovos. Em tempo de chuva aproveitava as escorrências do telhado, para encher um pequeno tanque e os barris de sulfato.
O Bernardo é um homem de pequena estatura, muito pitoresco e todas bonomias. Gosta de nos receber e gosta de nos mostrar esta ou aquela curiosidade. A casa, soalheira por fora e um tanto enoitecida por dentro, é sobre o comprido, sem janelas e só uma telha de vidro em meio de telha vã dá alguma lumieira à espacidão da saleta comum. A cama de ferro, lá no fundo, está mergulhada numa quase penumbra e nem sei se é cama de bons-dias ou boas-noites. Avulta, na parede, um Cristo crucificado já enegrecido pela fumaceira do tempo mas donde parece irradiar um misto de luz e santidade num rosto descaído. Há ainda uma gaiola sem pássaro e há, no caibramento do tecto, um extenso dossel de teias de aranhas que, no dizer do Bernardo, é um bom sumidoiro de varejas, moscas, moscardos e mosquitos, a bem do aranhão.
Na mesa de comer está um lampião de faces vidradas, um candeeiro de petróleo, um jarrinha com flores de papel e um exemplar do Seringador que é uma distracção das escassas letras do Bernardo, ele que vai sabendo novas do calendário, a época das sementeiras, a sazão dos frutos e, por acréscimo, alguns anexins, de par com umas saborosas anedotas.
Nas meias tintas da casa do Bernardo ainda se divisa um gato preto retinto, de olhos bem avivados de amarelo, a andar por ali por cantos e recantos, numa postura felina e sorrateira como que a querer escorraçar o diabo.
Do mais, o que se vê são os trastes domésticos, panelas e alguidares, canecas e pratos ladeiros, malgas e pequenas travessas, com o caneco da água de cozinhar e beber pousado numa banqueta.
A mulher do Bernardo, a Engrácia, é uma mulher lideira, alta, bem encorpada, sempre vestida de preto e dizem que dada a feitiçarias e bruxedos. Tirante uma ferradura pregada no tabuame da porta, nunca vi por ali amuletos nem registo de lengalengas ou ladainhas distorcidas. Mas o Bernardo, meão de estatura, esse é dado à violência doméstica e quantas vezes vem lá de cima, pela tardinha, uma desenfreada gritaria da Engrácia.
Mas, no dia seguinte, a Engrácia vem à fonte encher um caneco de água e não se dá conta de que tenha quaisquer pisaduras, nem a cabeça escaqueirada nem sequer duas costelas metidas dentro. Como se a violência doméstica do Bernardo fosse uma violência bem domesticada. E a Engrácia lá vai, a subir os caminhos do monte, de caneco à cabeça e a falar sozinha, como que a castigar o cansaço.
Eu cá me fico, em descanso e a dialogar com a memória de outros tempos.
- Por Manuel Braz Magalhães, Abril de 2013. (conclusão em breve)
Clique na imagem para ampliar. Texto e imagem cedidos por Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Abril de 2013. Também publicado no jornal semanário regional "O ARRAIS" edição de 17 de Abril de 2013. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.
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