sexta-feira, 15 de junho de 2012

Lembro-me que no Quartel havia muitos livros…

1. O norte-americano Ray Bradbury escreveu Fahrenheit 451, um romance de ficção científica que foi publicado pela primeira vez em 1953. O francês François Truffaut realizou um filme a partir desse livro, de 1966, que por cá se chamou Grau de Destruição.

É a história de um futuro em que todos os livros são proibidos. O seu personagem principal é um “bombeiro”, o que nesta história significa “queimador de livros”. Isso basta para explicar qual era o seu trabalho. O número 451 refere-se à temperatura (em graus Fahrenheit) à qual o papel se incendeia (cerca de 233 grau centígrados).

Ray Bradbury declarou que a sua intenção original ao escrever Fahrenheit 451 era mostrar o seu grande amor por livros e bibliotecas.

Uso esta introdução porque estas coisas – bombeiros, livros, filmes, bibliotecas – também se misturam na minha memória dos tempos passados.

2. (Re) Começo a pedir perdão, mas a verdade é que, quando penso em Bombeiros, não são os do Peso da Régua que me veem logo à memória.

De Bombeiros, lembro-me sempre dos de Sanfins do Douro, das suas ambulâncias e das suas sirenes, eternamente saindo na noite quente do arraial para apagar o incêndio que os foguetes ateavam, atravessando penosamente a multidão. Para minha grande consternação, que nunca entendi porque não colocavam logo os veículos todos na estrada da encosta que ardia todos os anos na Romaria de Nª Senhora da Piedade. Deve haver uma razão técnica que me escapa. Ou, então, era uma coreografia que fazia parte do programa da Festa, sei lá! (Lembro-me também, por motivos que não são para aqui chamados, da sua Fanfarra e das suas majoretes, uma em especial).


Dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua recordo, isso sim, o Quartel, não só porque lhe passo em frente todas as semanas (e neste domingo até parei para tirar umas fotos!) mas porque era naquele edifício, num dos pisos superiores, que ficava a Biblioteca Gulbenkian que eu frequentei a partir de meados da década de 1970.

Compondo um quarteirão cultural de boa memória e que muitas cidades hoje invejariam, ficava, mesmo ao lado, o Cine-Teatro Avenida, onde vi alguns filmes que não podem aqui ser mencionados e outros de que não me lembro.

Hoje é um decrépito edifício, cujo estado de conservação nos envergonha a todos, contrastando de forma chocante com o remodelado e animado Quartel dos Bombeiros. (Quando for reabilitado e voltar a exibir filmes passa a chamar-se Cineteatro Avenida, como manda o Acordo Ortográfico!)

3. Bom, mas deixemos o cinema e voltemos aos livros e à Biblioteca. A Biblioteca Fixa da Fundação Calouste Gulbenkian era para mim o que a Fundação propriamente dita era para o país: o verdadeiro centro da vida cultural.

Em minha casa sempre existiram livros, muitos livros, estantes cheias deles. Mas na Biblioteca havia muitos mais e havia também aquele silêncio especial, que fazia com que a escolha dos livros a ler fosse mais refletida, assim como uma coisa de maior responsabilidade, não havendo lugar para ligeirezas nem arrependimentos: escolheu, vai ter de ler!

Dessas minhas escolhas há muitos livros e escritores que recordo, outros que nem por isso. Lembro-me, por exemplo, de duas “empreitadas”. (Isto é, leitura continuada e intensiva da obra de um escritor, hábito que ainda mantenho).

A primeira com Jack London (O Apelo da Selva, O Lobo do Mar, O Filho do Lobo, …), um escritor que hoje olho com muito respeito se bem que, confesso, sem ânimo para reler.

A segunda com Cecil Scott Forester e a sua série do Capitão Horatio Hornblower, essa saga marítima de que Winston Churchill disse “Hornblower é formidável!”. Esta frase vinha na contracapa dos livros e fixei-a, até hoje...

Lembro de ter adorado Três Homens num Bote, de Jerome K. Jerome e de ter odiado As Minas de Salomão, de Henry Rider Haggard, na tradução mal feita por Eça de Queirós (que aliás usurpou a obra e lhe chamou - ou alguém em seu nome – sua).

E lembro-me de ter muita pena porque na Biblioteca (praticamente) não existia banda desenhada, já então a minha perdição.

A Biblioteca Gulbenkian da Régua instalou-se no Quartel dos Bombeiros em 1960 e um dia, sem que eu desse conta, encerrou! Em seu lugar há hoje, na nossa cidade, uma Biblioteca Municipal, num edifício muito bonito. É toda moderna, cheia de livros, discos, filmes, tecnologia e pessoal profissional. E muita banda desenhada!

(Aliás, há uma Rede de Bibliotecas (http://rbpr.cm-pesoregua.pt/), que agrupa os centros de documentação de diversas instituições, incluindo a Biblioteca Municipal, o que me parece uma excelente ideia).

4. Podia forçar um bocadinho a nota sentimental e dizer que quando, todos os domingos, passo na Avenida do Doutor Antão de Carvalho, em frente ao Quartel dos Bombeiros, me recordo das longas e boas horas passadas na companhia dos livros que ali me emprestaram.

Mas, em nome da verdade, tenho que confessar publicamente que não é de nostalgia, mas de remorsos puros e duros o sentimento que me assalta. Porquê?

Porque nunca devolvi alguns livros à Biblioteca.

Tenho provas.

Não poderão ser mais de três livros, mas é como se fossem mil. Eles lá andam, nas estantes, no meio de muitos outros, ostentando, para minha vergonha íntima, a fita adesiva colorida na lombada que os identifica sem qualquer dúvida.

Acalmo a minha consciência com piedosas histórias que repito para mim mesmo sempre que me lembro destes livros. Que fui, um dia, devolvê-los, e a Biblioteca tinha fechado, sem deixar a nova morada.

Que, despeitado por fecharem a Biblioteca, decidi vingar-me causando um prejuízo irreparável ao pobre Sr. Calouste Gulbenkian, surripiando-lhe três livros.

Os livros estão seguros. Comigo, os livros estão sempre seguros, desde que mereçam respeito. Mas se alguém, legitimamente, os reclamar, devolvo-os.

Com juros e com alívio.
- Matosinhos, 4 de junho de 2012, Artur Costa

Clique nas imagens para ampliar. Sugestão de JASA (José Alfredo Almeida) para este blogue. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Junho de 2012. Texto também publicado no blogue do autor - Artur Costa - O Linguado e na edição do semanário regional "O Arrais" de 14 de Junho de 2012. Todos os direitos reservados. Só permitida a cópia, reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

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