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segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Os meus bombeiros

Camilo de Araújo Correia

Os Bombeiros Voluntários do Peso da Régua fizeram cento e dez anos. É um número bonito. Não por ser redondo, mas por traduzir muitos, muitos milhares de horas de trabalho e sacrifício e de quem dirige, de quem comanda e de quem obedece a regulamentos e sentimentos em benefício do mais anónimo dos anónimos - o próximo.

O programa das festas cumpriu-se no dia 2 de Dezembro e com ele a tradição de visitar bombeiros directores, comandantes, sócios e benfeitores falecidos, sepultados nos cemitérios da Régua e de Godim; de assistir à missa na Igreja Matriz; de percorrer em formatura as principais ruas da cidade; de apresentar cumprimentos à Câmara Municipal.

Antes do almoço tradicional, sempre animado, houve imposição de medalhas, cerimónias de tocante significado, em que os silêncios e os aplausos sublinham os méritos distinguidos.

A Direcção e o Comando mantiveram também a tradição de convidar autoridades, afinidades e simpatias mais evidentes, o que sempre corresponde a uma boa apresentação de toda a Régua. E, assim, nos aniversários a cidade fica ainda mais perto dos seus bombeiros. 
Quem já fez uma dezena de anos, ao assistir a estas festas centradas nas magníficas instalações dos nossos bombeiros não pode deixar de recordar o velho e minúsculo quartel do Cimo da Régua. Velho, modesto e pequeno mas muito querido dos seus frequentadores e visitantes fortuitos, sem falar do rapazio, incapaz de passar adiante sem se deslumbrar com o pronto-socorro de cadeirinhas e com a ambulância, uma caranguejola esquinuda, de um branco muito duvidoso e um conforto ainda mais duvidoso... Os carros entravam à justa na porta estreita, sempre com grande vozearia de indicações e avisos.

O quarto do Zé Pinto, o quarteleiro, era também minúsculo e abria para o «parque automóvel». Deste se passava à sala de jogos, por dois degraus. O quartel acabava aqui, se não contarmos uma pequena cozinha lá no fundo. Cozinhava ali a senhora Antoninha, esposa do Zé Pinto, ainda hoje inconformada viúva, e ele próprio preparava os petiscos que os jogadores da noite lhe pediam.

Jogava-se um bilhar muito gozado, um dominó muito batido e umas cartas muito lambidas.

Havia, ainda, uma estante de livros sonolentos, perturbados, muito de longe em longe, por esporádico leitor.
As formaturas só se desfaziam no quartel, à medida que iam entrando. De maneira que a porta estreita oferecia grandes dificuldades para manter o aprumo. As maiores dificuldades ainda eram as do Justino, garboso porta-bandeira de muitos anos. Garboso, mas desastrado… De rígida marcialidade, esquecia muitas vezes o globo da entrada: aquele globo de luz melancólica fendida por uma cruzinha vermelha. A rigidez do corpo e do gesto não lhe permitia baixar suficientemente a bandeira. Zás!... mais um globo. De nada valiam os avisos dos colegas mais próximos, feitos, disfarçadamente, pelo canto da boca: - Ó Justino... Ó Justino… olha o globo! Bumba!... mais um.

Até que um dia o Justino, muito infeliz, propôs que se arranjasse um globo de lata. 
Coitado do Justino. Já lá está, nem sei há quantos anos. Não pôde levar a sua querida bandeira dos Bombeiros da Régua. Ainda bem... Eu sei lá, se com o vagar da Eternidade, nos andaria a quebrar as estrelas, uma a uma.

Notas:
  1. Esta crónica foi publicada no jornal O Arrais, da edição de 6 de Dezembro de 1990.
  2. As fotografias da autoria de Baía Reis fazem parte do arquivo dos Bombeiros da Régua. E dizem respeito à tomada de posse do Senhor Dr. Camilo de Araújo Correia como Presidente da Direcção dos Bombeiros da Régua. 
Os Meus Bombeiros
Camilo de Araújo Correia
Jornal "O Arrais", Quinta feira, 10 de Fevereiro de 2011
(Dê duplo click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)
Os meus bombeiros
Clique nas imagens acima para ampliar. Matéria enviada por J. A. Almeida para "Escritos do Douro 2011". Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro". em Novembro de 2011. Actualizado em 4 de Novembro de 2013.

    quarta-feira, 23 de outubro de 2013

    Os meus bombeiros

                                                                                                                                José Alfredo Almeida
          
    Lembro-me de ler uns versos de Camilo Guedes Castelo Branco em que evoca a missão heróica dos bombeiros. Li-os escritos sobre uma fotografia a preto e branco onde está retratada a figura de um bombeiro sem que se veja o rosto, fardado a rigor, a sair de uma casa em chamas, com uma criança ao seu colo. São estes os versos: “E eis que em meio trágico do braseiro/surge a figura altiva do bombeiro/ Trazendo ao colo o pequeno ser”.

    Não sei precisar a data em que os escreveu e chegaram a ser publicados. Apenas posso dizer que foram declamados, no verão de 1950, numa brilhantíssima récita de artistas amadores e da Orquestra Reguense, dirigida pelo professor José Armindo, em benefício da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários da Régua.

    Quando aconteceu essa récita, Camilo Guedes Castelo Branco já não era vivo, falecera em 25 de Agosto de 1949, com 81 anos, mas o seu filho Jaime Guedes era, nesse tempo, o presidente da direcção da associação.

    O poeta Camilo Guedes Castelo Branco não fez parte do grupo dos fundadores da Companhia dos Bombeiros Voluntários da Régua, como então se dizia, mas foi pioneiro ao alistar-se aos 17 anos como bombeiro. Conheceu os principais fundadores da Companhia, aprendeu os ensinamentos do combate aos fogos com os três primeiros comandantes e teve formação com o inesquecível Comandante dos Bombeiros do Porto, Guilherme Gomes Fernandes.

    Na Régua do seu tempo, o poeta ficou mais conhecido como comandante dos bombeiros e pelo seu exemplo de dever cívico, mas é injusto não o recordar pelas outras facetas da sua vida, onde se revelou um cidadão empenhado política, social e culturalmente. Deve ser lembrado como um defensor moderado do ideário político republicano no concelho da Régua, onde exerceu as funções de administrador. Este discreto ajudante de notário foi ainda jornalista na imprensa local e dirigiu jornais importantes que se publicaram na Régua, como o jornal O Cinco de Outubro. Publicou apenas um livro, o Fraternais Dolores (1923), e deixou muita poesia dispersa nos jornais. Por editar ficou o livro Arias Sertejanas, mas isso não impediu que Camilo Guedes Castelo Branco fosse reconhecido como poeta “lírico de altíssimo talento”, como disse João de Araújo Correia, que incluiu na sua Lira familiar uma das poesias do nosso comandante. Os seus dotes literários brilharam também como autor de peças de teatro, destacando-se a opereta As Andorinhas, que foi musicada pelo maestro Almeida Saldanha e popularizada dentro e fora da Régua nos palcos do teatro amador.

    Mas vamos ao que interessa, que são aqueles versos dedicados a um bombeiro sem nome e sem rosto. Quem concebeu a ideia de associar os versos do poeta a uma fotografia de um bombeiro com uma criança ao colo, teve como intenção construir uma imagem apelativa ao sentimento, evidenciando o sentido muitas vezes dramático da missão de um bombeiro, que nunca procura A SUA HONRA NEM A SUA GLÓRIA na hora de salvar uma vida em perigo.

    Pela qualidade literária, pela vibração afectiva e pelo sopro de humanidade que dela se desprende, gostava de lembrar e partilhar a poesia “O Bombeiro”, donde foram retirados aqueles versos:  

    “No silêncio da noite, de repente,
    Ergue-se a voz estrídula dos sinos
          num longo baladar
    E à distância brilhou, sinistramente,
    Um clarão, que tingiu a luz do luar
        de laivos purpurinos.
    “Fogo! Fogo!”-alguém diz com aflição.
    E logo a pobre gente do lugar,
    toda cheia de espanto e de canseira,
    Pôs-se a correr, gritando, em direcção
        da medonha fogueira.

    O incêndio crepitava 
    e, batido do vento, devorava
    Uma pequena casa arruinada.
    E, perto, uma mulher d`olhar aflito
    erguia as mãos ao céu calmo e infinito
    a chorar e a gemer desesperada.
    Ali, em meio da fogueira, tinha
    essa mulher um filho, a criancinha 
    mais bonita da velha povoação,
    e o fogo, em seu horrível avançar, 
    iria dentro em breve transformar 
    o seu pequeno corpo num carvão.

    Metia dó a pobre mãe! Mas como
    Salvar-lhe o louro e cândido filhinho,
        se a labareda e o fumo,
    num espantoso e horrível torvelinho,
    ameaçam devorar rapidamente
    quem se abeirar dessa fornalha ingente?

    Podes chorar, mulher! ninguém te acode.
    Chora, que és mãe; mas vê que ninguém pode
    esse anjinho das chamas libertar.
    Olha: em meio da tétrica fogueira
    anda a morte, feroz e traiçoeira,
        a acenar, a acenar…

    Mas nisto, junto ao prédio incendiado
    surge um homem soberbo de valor.
    A multidão ansiosa solta um brado
        de espanto e terror.

    Ele caminha sempre com a firmeza
    e a intrepidez estóica dos heróis;
    escala a casa em chamas com presteza,
    escala a casa em chamas…e depois…
        depois desaparece.
    E a pobre mãe aflita cai de bruços
    A murmurar baixinho, ente soluços,
        Uma prece…

    Na multidão, silêncio. Só se ouvia
    um secreto rumor, que parecia
    o palpitar de muitos corações…

    Senhor! És pai e cheio de bondade!
    estende lá do azul da imensidade
    O teu olhar repleto de perdões!

    E eis que em meio trágico do braseiro
    surge a figura altiva do bombeiro
    Trazendo ao colo o pequeno ser.
    Passou…desceu…e dentro em pouco, ansioso,
    depositava o fardo precioso
    no regaço da pálida mulher.”

    O poeta sabe do que fala; como velho bombeiro que foi, retirado do corpo activo, parece recordar uma história real de um fogo, um que ele próprio combateu com o seu espírito abnegado e corajoso ou um dos muitos em que comandou. São esses heróis sem tempo, sem rosto e sem nome que, para protegerem as nossas vidas e bens, sacrificam, se for preciso, a sua própria vida. O comandante Camilo Guedes Castelo Branco ensinou o seu lema aos seus bombeiros: “Para se salvar uma criatura de uma morte certa, todos temos a obrigação de sacrificar seja o que for, mesmo que sejamos nós próprios”. 

    Os bombeiros são heróis anónimos. Como está visível na poesia, a medalha mais importante é o bem que fazem; são a sua coragem e o seu altruísmo que nos devolvem nos maus momentos a esperança, a alegria e o sorriso de eternamente gratos pela sua existência.
    …………………………………………………………………………………………………………………………
    As minhas recordações da infância estão povoadas com os primeiros bombeiros que vi a combater um fogo que ameaçou destruir uma velha casa nas Caldas do Moledo, lugar onde nasci e dei os meus primeiros passos. Se não fossem esses corajosos bombeiros, as chamas teriam reduzido a cinzas a vida de uma família pobre e os seus míseros haveres. Nunca soube o nome dos bombeiros que apagaram esse fogo, mas eles ficaram-me retidos nas malhas da memória como heróis.
    Mal sabia eu que, muitos anos depois deste fogo, as voltas do destino me pregavam uma partida e faziam-me ser um bombeiro, sem farda nem capacete, pois que fui convidado para assumir a Direcção da Associação, isto é, tomar conta das contas, dos papéis, das mil e uma burocracias que não os podem ocupar para estarem sempre prontos a responder ao toque da sirene. 
    Tive fortes razões para recusar o convite, mas o apelo das minhas memórias de um fogo fizeram com que aceitasse, com honra, um cargo directivo para o qual não sabia se estava preparado, nem se teria competência para estar ao lado de homens que eu admirava e eram os meus heróis. O certo é que tive de aprender com os bombeiros no activo, e, no meio de muitas tormentas, deixei-me ficar na companhia deles. Quando olho para o calendário do tempo, vejo que já passaram cerca de quinze anos a dirigir os nossos bombeiros. Não são muitos os anos a que me dedico com zelo à instituição se os comparar com a sua longevidade já mais que centenária. Confesso que me limitei a dar um pequeno e humilde contributo para a tornar melhor, como fizeram todos os meus antepassados. Aprendi com os bombeiros lições de sacrifício e solidariedade e actos de muita humanidade.

    Por isso, muitas vezes me recordo daqueles versos de Camilo Guedes Castelo Branco impressos numa fotografia eterna que me não deixa esquecer os meus bombeiros, heróis sem nome nem rosto que continuam a apagar o fogo da minha memória, lá nas ruínas do velho Moledo, cumprindo o espírito da sua missão: VIDA POR VIDA.
    - Versão modificada e actualizada em Outubro de 2013.
    Nota do autor*: Este título fico a dever por inteiro ao Dr. Camilo de Araújo Correia que, em primeira mão, deu origem a uma sua deliciosa crónica, para nos contar histórias dos tempos em que foi Presidente da Direcção da Associação dos Bombeiros da Régua.
      • *O Dr. José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também cronicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária e fatos do passado e presente da bela cidade de Peso da Régua.
      OS MEUS BOMBEIROS
      Jornal "O Arrais", quinta-Feira, 15 de Dezembro de 2011
      (Click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)




      Clique  nas imagens para ampliar. Colaboração de texto e imagens do Dr. José Alfredo Almeida e edição de Jaime Luis Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Dezembro de 2011. Versão modificada e actualizada em Outubro de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.