terça-feira, 30 de novembro de 2010

A MÃE DE TODOS

Alice deixou um dia a aldeia entre as montanhas durienses para servir na casa de um Senhor Doutor do Porto, levando consigo a ilusão de um sonho. Ainda foi à terra, duas ou três vezes, mostrar a roupa da cidade e os brincos que a patroa lhe oferecera. Hoje, porém, talvez já nem saiba como se toma o comboio. Enterrada a Mãe, que o Pai nem conhecera, vendida a leirita de uns almudes, fez um risco no calendário da sua recordação. Gastava as tardes domingueiras no jardim diante da casa onde fazia a comida e as camas, aspirava a alcatifa e sacudia as carpetes, limpava as pratas e entretinha adolescentes rabugentos, até achar o companheiro da sua sina. Afeiçoou-se por um mecânico e foi viver para uma casita mal alevantada dos subúrbios.

Começou cedo a criação; enquanto as marés sobem e descem, viu-se com uma ranchada de filhos. Dava umas horas como mulher-a-dias com a sogra na guarda da canalha. Passava muito tempo no hospital, nas consultas de pediatria, e dava-se, por isso, com enfermeiras e médicos com o à vontade consentido de tantas idas e vindas numa preocupação aflitiva por quem levava ao colo e pelos que deixava sob o olhar da segunda Mãe. Já nem precisava de papel ou de espera, todos lhe toleravam a prioridade, que a uma Mãe procriadora não é só o respeito a mandar, mas, também, uma admiração condoída. Vinha do fim da cidade onde a auto-estrada se estende numa fita preta que se perde, ao longe, com os carros disparados a afundarem-se nas lombas.

O rosto de Alice mostrava canseira, envelhecido antes da razão; as pregas nos olhos e nos cantos da boca traduziam embaraços e noites mal dormidas. Quase que não tinha peitos, chupados pelas bocas da inocência sem culpa de terem nascido a eito. Contudo, por cima desse espelho de privações, um sorriso bonito, muito bonito, tornava-a simpática e afável; era um daqueles sorrisos de quem logo se gosta por não enfatizar as desgraças. Acarinhava os filhos sem pieguices ou obsessões. Sempre «lavadinhos e arranjadinhos», não se escusava de, em pleno átrio, desnudar um seio mirrado para o meter na boca de um mais apressado pela hora do sustento.

Joaquim sujava-se na oficina e em biscates de fim-de-semana para sustentar a prole. Não era gastador nem seroava nos Cafés. Viciado, só no tabaco e no futebol, mas, até nestes, se moderava: fumava Definitivos e o seu clube militava numa distrital sem nome nos jornais de segunda feira. Ia sempre como um fuso para casa, sem o fastio dos casamentos arrastados. Quando a mulher se demorava, esperava sempre que a porta se abrisse. Os vizinhos da ilha não lhe ouviam um ralho ou uma descompostura e, como «casal que não se insulta não se ama», julgavam que apenas se toleravam.

Um dia, porém, as horas passavam e a Alice não chegava. Sabia-a numa consulta com «o mais novinho, de seis mesinhos». Combinou com a Mãe a continuação da vigília e meteu-se a caminho. Encontrou a Mulher na paragem do autocarro, diante do hospital, com dois bebés, um em cada braço.

- Então o autocarro não vem, é?... Estás à espera do 99 como o Samora?!... – troçou.

- Quantos já passaram!... – retorquiu a Alice.

- Espera – espantou-se -, de quem é esse bebé?!

- Foi uma senhora que me encontrou à saída e pediu-me para lhe ficar com ele.

Disse que era só tempo de ir ali, não sei onde, fazer umas compras, já lá vão mais de duas horas e não aparece. Estou preocupada...

- Oh! Mulher... Ela não volta mais! Não vês que o abandonou?!... Deixa lá!... Quem cria nove também cria dez! Vamos embora!

E lá foram, cada um com o seu filho, no autocarro apinhado, a caminho da casita mal erguida nos confins da cidade para continuarem a servir o futuro do mundo.
- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Comemoração do 130º aniversário dos BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS DO PESO DA RÉGUA

(Clique na imagem para ampliar)
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O convite de 28 de Novembro de 1880
Quando se celebram as cerimónias do 130.º aniversário da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários recorda-se o convite manuscrito pelo punho do Comandante Manuel Maria de Magalhães dirigido aos Sócios Activos para comparecerem aos festejos da inauguração da Associação Humanitária "Bombeiros Voluntários do Pezo da Regoa" que teria  lugar, pelas 10.00 horas da manhã, na casa da extinta Associação Comercial, sita na Rua da Boavista - hoje a actual Rua Serpa Pinto - para dali saírem fardados em formatura, dirigindo-se à Igreja Matriz, onde assistiriam a uma missa que "há-de celebrar-se para comemorar o acto da inauguração e a benção das bombas".

O resto do programa festivo do 28 de Novembro de 1880 havia de ser apresentado aos mesmos sócios durante a reunião. Só é pena não o conhecermos para aqui o recordarmos como um dia em que a sociedade civil reguense de mão dadas com o poder autárquico, souberam criar uma "instituição tão civilizadora, humanitária e útil"  para a protecção e socorro das pessoas do concelho da Régua, como bem salientou numa intervenção pública o ilustre presidente da Câmara, Dr. Joaquim Claudico de Morais, nesse longínquo tempo.

Conhecido é o convite festivo do 130.º aniversário da Associação que se comemora no próximo dia 28 de Novembro de 2010 e que se dirige a  todos os sócios. Do programa elaborado, a Direcção e o Comando da Associação dos Bombeiros da Régua pedem aos sócios que participem em todos os actos e, em especial, na celebração da Missa a realizar-se na Igreja Matriz, pelas 10.30 horas, em memória de todos os bombeiros e directores que serviram devotadamente a nobre causa do voluntariado.

Será, assim, uma boa maneira de lembrarmos o histórico convite do Comandante Manuel Maria de Magalhães e, o que ele e os restantes 27 sócios fundadores, nos legaram para futuro como grande  exemplo de generosidade.
- J. A. Almeida, Peso da Régua, 24 de Novembro de 2010.
(clique na imagem para ampliar)

CONVITE
A Direcção e o Comando da Associação Humanitária dos Bombeiros
Voluntários do Peso da Régua têm a honra de convidar V. Ex.ª a
participar nas comemorações oficiais do 130.º aniversário, de acordo
com programa abaixo (27 e 28 de Novembro de 2010):
(Dê duplo click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)
Comemorações do 130º Aniversário dos BVPeso da Régua - Convite

O meu barquinho

(Clique na imagem para ampliar. Imagem composta em PhotoScape com fotografia original do Dr. Camilo de Araújo Correia e desenho de um barco rabelo de autoria de Fernando Guichard.)

Por Camilo de Araújo Correia
De tanto lhe namorar o barco, da cada vez que o via, o meu amigo acabou por me dizer: - Se gostas tanto desse barco, podes levá-lo! Ele, afinal, é mais teu do que meu, desde que lhe puseste a vista, em cima...

Um barco rabelo maravilhoso, com a silhueta que tantas vezes ainda pude ver recortada nas águas e nas margens do Douro, quando fugia da escola para me extasiar com o tráfego do rio, no cais do Régua. As mãos que o construíram não quiseram faltar-lhe com a mínima verdade dos rabelos grandes. Todas as tábuas do casco harmoniosamente imbricadas, segredo da resistência do barco que é preciso, respeitar. Espadela e mastro nem mais nem menos compridos que a distância que vai da ponta da proa à ponta da popa. Os ventos e os rápidos, ou pontos, foram ensinando que teria de ser assim. A apegada também exige dimensões e colocação exactas. Lá no alto o arrais tem de movimentar-se no espaço cinético do rabelo, se quiser vencer as fúrias do vento e do rio.

O meu barquinho vinha carregado de pipas e não lhe faltava qualquer apetrecho de navegação e subsistência. Cordame de andar à sirga, remos, varas, caixa do pão e do sal e, à proa, um pote com as tigelas alinhadas para a distribuição do caldo.

Talvez se possa dizer que não há rabelo sem senão. O meu também o tinha - a vela. Não passava de um trapo, sem forma e sem vida, pendente da cruz do mastro. Tão morta que me parecia o sudário de quantos arrais morreram a subir e a descer o rio. Se Joane, o doido da Barca do Inferno, a tivesse visto, não deixaria de dizer na sua linguagem vicentina:

- Caga na vela!

Aquela vela foi, durante muitos anos, o desgosto do meu cantinho etnográfico. Da croça à podoa, da trouxa ao cesto vindimo, do copo de prova ao canado, do argau à tomboladeira do pote às tigelas da aguilhada ao carro de bois, do almude à angoreta, da enxada ao chapéu de palha, do… ao bordão de um mendigo que viveu da caridade das quintas, tudo autêntico, tudo perfeito menos o diabo da vela!

O desgosto acabou, há dias. O meu velho amigo Artur Joaquim (Calceteiro), que andou no rio até lhe escapar por uma unha negra, alegra a sua reforma construindo barcos rabelos à porta de casa. Miniaturas encantadoras do barco que o ia matando lhe saem, agora, da memória e do coração.

Levei-lhe o meu rabelo como quem leva um aleijadinho a urna romaria de fé. Veio curado curado. O meu barquinho tem agora uma vela moldada pelo vento, cheia de sol e de rio.

Peso da Régua, Julho de 1986

Com a arte de mestre Artur Joaquim julguei tratado o último rabelo aleijadinho. Muito me enganei. Se voltasse a este mundo, não lhe faltaria clientela.

Com o desenvolvimento do turismo fluvial, molham agora a barriga nas águas do rio Douro uns rabelos (?) verdadeiramente monstruosos. No espaço que dantes era das pipas, há agora um grande salão, com janelas e cortinas. A apegada parece a torre de comando de um transatlântico. E, ridículo dos ridículos, a espadela parece o rabo cortado de um cão de luxo.

Moliceiro é moliceiro, fragata é fragata, carocho é carocho, saveiro é saveiro… rabelo é rabelo.

O rabelo morreu como um velho a contar os séculos no seu rosário de medos e glórias. É hoje um honroso e comovente símbolo da primeira Eternidade do nosso rio. Não merece que façamos dele uma deprimente fantochada.
- Colaboração de J. A. Almeida para "Escritos do Douro" em Novembro de 2010.
(Clique na imagem para ampliar - imagem recolhida na internet livre.)