terça-feira, 16 de novembro de 2010

O QUARTO ALUGADO - II

Estranhos, ali, eram os estudantes, encolhidos diante daquela libação popular, quase envergonhados por não terem calos nas mãos ou surro nas unhas, filhos de ventres diferentes que não os obrigavam à fedentina da vida.

João sempre gostara do mês de Abril; lembrava-lhe os rebentos pascais com as corolas a despertarem os sentidos. Na janela da carruagem passava o filme do alvoroço primaveril, a terra a despertar, rejuvenescida e liberta. Até as crianças, que acenavam, tinham uma alegria nova, lavada das tristezas de Inverno, como se flores lhes enfeitassem os sorrisos. O olhar rolava pelos campos - quadros de pintores naifes - numa volúpia epidémica. Pensativo, Artur, não dizia nada; parecia que congeminava enredos. Não se sentia à vontade, desconfortável no assento de madeira, mexendo-se na inglória procura de melhor cómodo para o rabo.

- Já estás arrependido de ter vindo?... – sibilou João.

- Podíamos era ter comprado um bilhete de primeira. Por mais qualquer coisa... – Artur, com um esgar de contrafeito, voltou a remexer o traseiro.

- Deixa lá, fica para a vinda.

- Há muito tempo que não andava nesta geringonça. Enquanto o meu Pai não comprou carro, vinha nisto ao Porto. Lembro-me que, numas férias de Verão, andava eu ainda na Primária, trouxe-me com ele. Levantámo-nos de noite e a minha Mãe arranjou-nos uma saca com pão, presunto e azeitonas. Quando chegámos a S. Bento, depois do susto do túnel, fiquei tão palerma que o meu Pai teve que me puxar. Amedrontei-me com o barulho, aquele chiar aumentado das locomotivas debaixo da cobertura, os carregadores a lutarem pelas malas, uma confusão depois lá fora, os eléctricos a tilintarem, as mulheres a venderem chocolates, toda a gente a empurrar-se. Tive tanto medo de me perder, que até nas lojas onde o meu Pai entrava não lhe largava a mão.

- Eu já não posso dizer o mesmo. A primeira vez que vim ao Porto de comboio não tinha mão nenhuma a que me agarrar...

Entre eles fez-se um silêncio que acentuou o ruído sobre os carris e o contorno de algumas conversas. A carruagem perdera, com a descida das matronas das cestas, a inflexão da feminilidade serôdia; à frente deles, um homem aparava as unhas com uma navalha e, nas suas costas, outros debatiam técnicas de trolha. A paragem em cada Estação era um clamor de vozes e correrias. O comboio chegava, como animal encanzinado, num afluxo tumultuário; a locomotiva, resfolgando, parava um bocado adiante para as carruagens ficarem na extensão do cais; os que esperavam e os que vinham saudavam-se; algumas malas passavam pelas janelas; uma azáfama estralejava no éter a lembrar desordens em romarias. Um silvo agudo, idêntico a um assobio de réptil, punha de novo em marcha aquele amontoado férreo e o ramerrão regressava. Nos apeadeiros, as mulheres, de bandeirola verde na mão, enquadravam figuras de sépia.

- Não achas que o viajar de comboio acicata a memória? Assim como um regresso ao passado? – surpreendeu Artur.

- Uma saudosa desfilada do tempo... - acrescentou João.

- Brincadeiras de meninos, os passeios aos montes de onde víamos esta coisa a deitar fumo, o eco do seu apito ao longe, uma recordação perdida para além do olhar...

- Porra, Artur, estás numa forma espectacular...

Desenhou um sorriso de tédio. Tirou, do bolso do casaco, um maço de CT e puseram-se a fumar. A carruagem estava quase vazia. Os trolhas e o homem que, em silêncio e ar desconfiado, cortara as unhas com a navalha tinham saído na Régua. Apearam-se no Pinhão e meteram-se num carro de praça. Até casa de João o trajecto era curto: vinte minutos bem contados por curvas e contracurvas entre desfiladeiros que abortavam no Douro e montes de vinhedos que tocavam o céu. Quando chegaram ao terreiro da aldeia, plantada num alto que abarcava o rio, João, lembrando-se que não tinha dinheiro que chegasse, pediu ao chauffeur para aguardar um instante e correu para os braços e para a bolsa da Mãe. Esta recebeu-o com a generosidade do sangue e ao amigo com a marca da ancestral educação rural; a Aninhas - velha criada da casa desde os tempos dos Avós - nunca mais o largava com aquele carinho da criação. Depois de pagos os vinte escudos do frete, atiraram-se, esfomeados, às fatias de bola de carne, aos jesuítas e ao café com leite, antes mesmo de desfazerem as malas. A Mãe – Carlota por assento teologal e Menina Carlotinha por baptismo popular – sentou-se diante deles, feliz de rever o filho e curiosa por desvendar aquele amigo que ele trazia e de quem lhe falara como um irmão. Afeita aos princípios estabelecidos entre as montanhas, como estas inamovíveis, gostava sempre de saber com quem se dava o filho, não fossem as más companhias estragar-lhe a justificação da existência. A viuvez não lhe secara a finura, dir-se-ia que a sazonara na roleta da vida. Debruçado sobre a chávena, Artur sentia-lhe o olhar inquisidor a investigá-lo num tacteio de caminho desconhecido.

- O Artur é destes lados, não é?... – a voz tinha o tom de quem inicia um interrogatório.

- Sou sim, D. Carlota. Sou do Alto do Cume.

- Terra bonita... Gente fidalga...

- A minha Mãe, depois da morte do meu Pai, vendeu tudo e foi para o Porto.

- Desgostos...

- Mãe, por favor, as férias não são para coisas tristes. Lembre-se que estamos na Páscoa, o tempo da ressurreição...

- Pois é, meu filho, tens razão.

Ela aprendera que os olhos espelham a alma e os lábios o carácter. Os dias seguintes, na naturalidade das horas e dos comportamentos, dariam para o observar, mas, sem perceber muito bem porquê, aquele rosto deu-lhe uma ténue impressão de ferida por cicatrizar.

João e Artur dividiram aposentos: ele, no seu habitual quarto do fundo com janela para a estrada; o amigo, no chamado quarto de hóspedes, em frente do corredor, virado para o pátio da habitação. Esta, vulgar casa de lavoura sem cosméticas arquitectónicas que merecessem distinção, tinha a forma de um L: numa parte, a Casa Um - nome que vinha já do Avô -, ficavam a cozinha, as salas, o quarto de banho e os quartos de dormir; na outra – que, por sequência, era a Casa Dois -, meia dúzia de divisões sem uso diário e que serviam de poiso para tabuleiros onde se espalhavam uvas escolhidas, figos, abóboras e outros frutos de época. No armazém, sob o soalho da primeira, alinhavam-se dois toneis e, numa divisão contígua, uma espécie de celeiro com cachos de cebolas dependurados de uma trave, batatas, feijão, favas secas e uma pequena tulha para o escasso azeite de colheita. Debaixo da segunda, dois lagares, com as respectivas prensas, e, entre eles, pousado nas beiras, o andor do mártir São Sebastião todos os anos ornamentado por D. Carlota, na festa do orago, em obediência à disposição testamentária do marido, que, àquele, toda a vida, devotou veneração. No quintal, espaçoso, com canteiros de cravos definidos por barbantes delicados, cultivava-se, em volta do poço, uma horta de repolhos, tomates e alfaces. A um canto, meio escondidos, ficavam um galinheiro de fecundas poedeiras e o alpendre-garagem do Volkswagen azul, achatado como uma joaninha. Era a sua casa. Ali nascera e se fizera sem artifícios, educado pelos dogmas de uma Mãe vestida de negro e de uns Avós que duplicavam as carícias ao neto de paternidade extinta. O Avô, além de umas leiras espalhadas, negociava em vinhos, calculando comissões, e a Avó subia e descia escadas com canecos de água à cabeça ou bacias de roupa que punha a corar conforme o tempo mandava. A filha costumava dizer-lhe: «Ó minha Mãe, a Senhora julga que estar quieta é pecado?!... Não tem quem lhe faça isso?!...» Ela respondia-lhe: «Trata dessa criança que já tens muito que fazer!...»

Carlota estudara, conforme regra daqueles tempos, num colégio de freiras, em Lamego, de religiosidade e disciplina austeras, até lhe saltar aos olhos Joaquim Silvestre, primogénito dos Casais, abastados lavradores dos baixos de Sande. Era um jovem e bem apessoado professor primário numa Escola citadina que, todas as tardes domingueiras, se postava, junto do salão de chá, a vê-la passar rumo aos terreiros dos Remédios. Carlotinha nunca notou a marcação. A clausura colegial retirara-lhe a arteirice de adolescente. Silvestre, por conhecimentos colegiais, soube o seu nome e escreveu-lhe uma inflamada declaração amorosa. O que ele fez! A carta foi direitinha ao Pai que, atónito, tratou de descobrir «o mariola que anda a desencantar a minha
filha!». Quando soube que era o filho do Casais, a quem algumas vezes tratara das carregações, amainou o reproche e não conseguiu esconder um sorriso travesso. Depois de muita cavaqueira com a consorte - que o aconselhava a moderar-se - e noites mal dormidas a magicar no futuro da sua donzela, cruzou-se, por uma daquelas eventualidades que até se afiguram como encontros combinados, em plena rua dos Camilos, na Régua, com o dono do candidato à sua filha. Entraram no Nacional, sentaram-se e pediram dois cafés. Depois de muitas finezas e interesses escondidos a que a natureza humana não resiste, separaram-se com um abraço tão festivo como se tivessem selado um chorudo negócio de vinho a contento de ambas as partes. - Só eu – contava-lhe a Mãe, algumas vezes, nas horas mortas da saudade – não sabia de nada. O teu Avô a fabricar o casamento com o teu Pai e eu, ali enfiada a rezar e a estudar, longe de tudo. Vê lá tu que nem me deram a ler a carta dele, como se fosse a mensagem de um demónio! Não era, de facto, o recado de um demónio, mas uma involuntária predição.

Carlota e Silvestre (re)conheceram-se num almoço de domingo, fingidamente casual, nas férias de Verão. Os Pais haviam-lhe anunciado, de véspera, a chegada de visitas para o almoço. Estava a ajudar a Mãe a pôr a mesa quando elas entraram. Nas apresentações, o rosto de Silvestre trouxe-lhe uma identificação já vista, uma remanescência de qualquer lugar, mas não sabia de onde. Durante a refeição, no meio de conversas sobre míldio, sulfato, perspectivas de vindimas e elogios ao arroz de cabidela, Silvestre lembrou os passeios dominicais e o lugar em que a via ir, no meio daqueles vestidos todos iguais, azul de céu, colarinhos debruados a branco, pela avenida das tílias, «rumo ao retiro – carregando no substantivo - dos Remédios». Decantava a conversa com uns olhos castanhos de sombrio romântico que se lhe fixavam a estudar a reacção. Decididamente o tipo estava a galanteá-la. Empalidecida, fitou o Pai que, à cabeceira da mesa, lhe sorriu numa cumplicidade estranha, ele que tantas vezes a advertia para a manha dos homens. Não estava a perceber nada. Calou-se, envolta em pudor, e foi com alívio que se levantaram da mesa. Ia a retirar-se para o seu quarto, quando a Mãe, desajeitadamente, lhe sugeriu «uma voltinha pelo quintal com um sol tão bonito...». De repente, percebeu-se emboscada. Não desdenhava o Silvestre, o seu ar já maduro, com cara de gente. O subentendimento paternal entreabria-lhe a oportunidade de se libertar de uma submissão quase monástica que os seus dezoito anos, a custo, suportavam. Enquanto passeavam por entre os craveiros, dentro da casa, na sala das visitas, fumando e bebericando café e uns cálices de aguardente velha, os donos dos dois, satisfeitos com «a milagrosa coincidência que Deus quis», desfrutavam já o futuro estatuto familiar; e o Senhor Casais dava carta livre ao Senhor Oliveira – assim se chamava o Avô de João – para lhe colocar o vinho da próxima vindima na Casa Inglesa com quem intermediava.

Para encurtar razões, que este tipo de enredos casamenteiros rematavam-se sempre da mesma maneira, pois aquela época não consentia emancipações ou recusas ao familiarmente ajustado, Carlota e Silvestre legitimaram a sua união, no ano seguinte, em cerimónia a condizer com a vetustez da velha Sé, num trigueiro sábado de Maio – as Mães dos noivos assim diligenciaram por ser o mês de Maria - do ano em que os ares andavam turvos e a Polónia, com os panzers hitlerianos à porta, sem ter a quem pedir socorro. O velho Casais meteu uma cunha ao Director Escolar – aproveitando, sem rebuço, o copo de água em que era um dos convidados – para o filho ser transferido para a Escola da terra de Carlotinha. Esta fez-se, assim, exemplar doméstica, ou antes, Dona de Casa, deixando a canseira dos livros e a prisão colegial. As núpcias foram em Lisboa, gastando as poucas horas disponíveis fora do hotel, sito nas imediações do Chiado, a visitar a Torre de Belém, o Mosteiro do Jerónimos, o Palácio Cor de Rosa em que mal tilintava a espada do Fragoso, o da Assembleia Nacional, cujo anexo de S. Bento guardava o grande filho de Santa Comba Dão, o Jardim Zoológico e a Boca do Inferno; não falharam, também, uma revista no Parque Mayer, o corropio do Bairro Alto, Alfama e Mouraria à procura da sombra da Severa, assim como as prendas para os Pais nos Armazéns Grandela. Regressaram revigorados e felizes, recebidos com mimos e risinhos coniventes. Poucos meses depois, Silvestre caiu na cama, destroçado por um inexplicável cansaço que lhe embargava as forças e suores incompreensíveis a minguarem-lhe as carnes. Alvoraçados, consultaram o Dr. Feliciano, médico de ambas as famílias. As análises pedidas mostraram um aumento anormal dos glóbulos brancos – leucócitos lhes chamaram – , os vermelhos muito abaixo do mínimo. Como a resposta à medicação era nenhuma e o emagrecimento acentuado, recorreram aos melhores Especialistas do Porto. Por alvitre de um primo afastado do Casais, até a Lisboa foram, penosamente, na peugada da fama de um, em derradeira esperança de cura. Todos os consultados animavam os acompanhantes, e lá iam dizendo, simplificando, para susterem mais perguntas, que era uma infecção no sangue. Só depois da sua morte, que pouco demorou, e com a Carlota grávida, é que os familiares souberam que tinha sido uma leucemia a causa de tamanha tragédia. Ela, esgotada de tanto padecimento e desiludida pelo luto, agarrava-se à barriga como se temesse um fadário igual para o fruto da sua breve união. Quando o pariu e lhe escutou o primeiro choro, foi como se um grito de injustiça lhe brotasse das entranhas.

- João!

- Mãe!

- É o telefone para o teu amigo.

João e Artur, no fundo do quintal, contemplavam o vale, esmagado entre penhascos que se levantavam lancinantes às cumeeiras dos astros, o rio correndo cheio de graça na rudeza da paisagem. Espreitava-se a parte ribeirinha do Pinhão e a sua ponte, abarcavam-se montes e montes de vinhedos com solares de vigia, elos de estradas e calços de simétricas escamas em dorso gigante, tudo envolvido por um silêncio imponderável de fim de tarde que dava a impressão do lento esmorecer de um gemido longínquo. Ele era, de facto, dali. Conhecia aquele recomeço do viço, os cheiros da erva e da terra ressuada, aquela doçura de promessas de frutos e a alegria das maias a repelirem o diabo. Era dali, mas, às vezes, julgava-se estranho àqueles rumores dos trabalhos e das vozes das gentes; àquela orografia ondulada de proporções colossais, sideral e terráquea, tão compacta e eloquente que agitava a alma.

- Era a minha Mãe – informou o Artur quando se lhe voltou a juntar.

- Podias-lhe ter telefonado, mal chegaste. Estás à vontade.

- Eu sei. Passou-me.

- Está tudo bem?

- Telefonou para saber se tínhamos chegado direitos. O resto não sei... Isto é mesmo bonito... Aquilo lá no alto o que é?

- Não estou a ver.

- Aquelas bolas suspensas nos fios.

- Ah! dizem que é por causa dos aviões.

- Olho para isto como se não tivesse nascido aqui, nem memória tenho.

- Amanhã vamos à tua terra.

- Nem penses. Irei lá, se for, quando já ninguém se lembrar de mim.

- Não queres ir pôr flores no teu Pai?!

- Claro, mas isso é diferente. O cemitério fica desviado da aldeia e não há olhos a cheirar. Aborrecem-me as perguntas de saco, estou mesmo a imaginar, como vai a Mãezinha, foi uma pena o Paizinho, e o Menino anda bom?, nunca mais cá vieram... Como se estivessem a tirar a pele a um gajo, a despir as misérias familiares... E se encontrar por lá a beata, a quem a minha Mãe manda, todos os meses, dinheiro para o arranjo da campa, ainda durmo lá. É uma chata que nem imaginas.

- Eu acho graça a isso... É como se todos fossem da família.

- Família?... Não alinho muito nessa coisa do mito da franqueza aldeã. São implacáveis, não perdoam nada, e cilindram qualquer um sem dó nem piedade. Não se pode dar um peido que toda a gente sabe e, se gostarem de ti, em vez de um dás cem...

- Gente ruim há em todo o lado. Não encontras, na cidade, a ajuda das pessoas daqui. Estás a encruar, falas como um citadino. Claro que lá passamos despercebidos, somos um número, aqui temos um nome, um passado...

- E futuro... Um futuro do caralho...

- O futuro somos nós que o fazemos...

- Deixa-te de merdas... Não me venhas com frases feitas. Quem gosta da agricultura é masoquista. Desde que perdi o meu Pai, perdi a terra. Com ele morreu tudo. Quando a minha Mãe resolveu vender a casa e as terras ao meu Tio até fiquei satisfeito, assim como se me libertasse de um fardo, como um namoro antigo desfeito por uma traição intolerável, entendes?...

- Podíamos dar uma volta enquanto falamos. Que dizes?

- Ver o quê?...

- Pedras, lagartixas, vinhas, oliveiras, um sabugueiro perdido, gente suada, canalha com ranho, mulheres emprenhadas, borrachões, raparigas sem cremes...

- João, vê se te acalmas...

A Mãe, com um xaile verde azeitona sobre os ombros para se resguardar da fresca do entardecer, desceu as escadas da cozinha, enxotando o Leão que, aos pulos, a envolvia em afagos.

- Vou à Senhora do Monte – insinuando a informação num convite.

- Estava precisamente a dizer ao Artur para irmos dar uma volta... Deixe, eu levo-lhe a chave – disse João.
Continua...

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

O QUARTO ALUGADO


Entre a aparência exterior – aparência porque existe mais o que não se vê do que o que se vê – e a revisitação da memória, havia um mundo de ilusões mortas. Sabia que o regresso físico aos espaços e aos tempos antigos já não seria possível. Era um homem cheio de incertezas e, talvez, por isso, tímido. Vivia o contencioso da vida - essa consumição incoerente em que se julga já não perspectivar retornos -, uma desencantada impossibilidade de emendar os passos. Ficava-lhe o sorriso da anuência; perdida a hora da anulabilidade, restava-lhe permanecer no testemunho. Aprendera na leitura e nos exemplos esparsos que a suportação – o estado em que nos calamos na esterilidade dos conflitos de saldo - vai, cada vez mais, sustentando-nos, como se só depois da morte se alcançasse a rectidão e em vida a parcialidade. Em muitos dos seus dias sentia uma vertigem imensurável. Não era a trascâmara dum pessimismo representado, escondendo, desde a génese, uma metamorfose, antes a procura de uma resposta - solução que substituísse os tiques da sobrevivência. Onde esse ponto na terra em que a paz seja branca? Um sítio sem olhares de desforço e sem a aniquilação dos sentimentos? Um pequeno lugar em que nos sentemos e o fim seja sempre fim, quietude total, o silêncio seja o silêncio de si próprio, a vida e a morte uma mesma coisa na compreensão de um absoluto em que não há nada a definir? Um sítio sem ser e sem ter porque simplesmente não existe, apenas uma imanência que se (a)larga às solicitações? Desejava não afunilar os dias, a sumarização dos modos e dos pensamentos que, se não contrariada, despega os laços quotidianos. Lembrava-se dos sonhos da infância - esses vigores inocentes de contornos amarelecidos - como se viáveis na idade adulta. Não se esquecia, contudo, que as vidas nunca são cheias. Se, como alguém disse, «uma

vida plena é um sonho de adolescente realizado na idade madura», não ignorava que as impossibilidades também se definem porque são elas, afinal, que melhor sossegam as necessidades... O ansiado desusa-se quando saltam os anos, pois entre uma vontade e a sua concretização tem de haver uma coincidência temporal fora da qual nada se fundamenta, e a consciência move-se e modifica-se nos trilhos da matéria e da alma humanas. Como a lembrança.

Conheceu-o no Porto, num colégio de filhos da burguesia citadina que se estendia das Antas até à Foz, de missas solenes, aulas rigorosas e padres mal encarados que julgavam, assim, disciplinar o sangue novo. Atraíram-nos as sombras dos olhares e a timidez dos gestos. Descobriram-se com os mesmos gostos e as mesmas rebeldias. Não aceitavam o País sombrio como uma prisão, nem os seus mandantes como carcereiros. O sol parecia-lhes emprestado e eles queriam-no quite. Sabiam que a guerra os esperava e não estavam dispostos a faze-la pela teimosia de velhos ditadores com pêlos no coração. Juntaram carteiras e repartiram a repugnância. Nos tempos mortos, sem aulas, desciam Santa Catarina, até ao Tribunal de Polícia, para verem o juiz aplicar as leis que condenavam miseráveis que roubavam para enganar a fome. Sonhavam ser advogados duma justiça gratuita ou revolucionários duma sociedade igualitária. Detestavam tanto os dedos repletos de anéis  quanto os rostos desnutridos das crianças das ilhas, juravam acabar com as vaidades dos faustosos e com os velhos carregados de papelão. O combate era o mesmo: contra a ostentação e a pobreza que ambas desfaziam o equilíbrio. Naquele meio, enquanto os colegas discutiam Jaguares e Lotus, festas particulares e engates na Avenida Brasil, casas no Moledo e palácios em Gondarém, fumavam Marlboro comprado no contrabando de Leixões, vestiam as roupas das boutiques e propalavam as prosperidades paternas que iam de consultórios afamados de Sá da Bandeira a fábricas prestigiadas de Riba D’Ave, eles encolhiam a ruralidade como se transportassem uma rareza provocatória. Não se sentiam rejeitados, mas, anotados numa diferença de casta. Eram os parolos que falavam axim, tinham a visão da verdura primaveril ou da palidez outonal e não o cinzento disfarçado pelo comodato da aparência; comiam batatas e sabiam como se plantavam, tratavam e colhiam, não as esmagavam em puré de menor esforço.

Vivia num quarto alugado, numa esquina das ruas de Santa Catarina e Firmeza, onde almoçava e jantava na companhia dum casal descompensado: ela, alta, rosto cheio de ruge, busto disforme em relação às ancas sumidas como duas canas; ele, curvado, velho prematuro, faces de delta, lábios secos a chuparem sempre um português suave sem filtro, olhos suplicantes pelo fim do mês. Chamava-se Alzira, a matrona, e, até, o nome - sempre lhe pareceu isso - condizia com a sua vanglória. Ele, Francisco - que, como sabemos, é título de santo arrependido de doideiras antigas -, gemia-lhe (ou ruminava-lhe?), num despropósito manso, juras de amor sempre que ela abria a porta, pelo tarde, quase noite, e entrava, apressada, com cara de desplante, para servir uma omolete de fiambre com arroz aquecido, sobrado do almoço. João detestava-a toda: o corpo em funil, o rosto de mercearia, o desprezo com que tratava o marido. Tinha um ar marcial, impróprio de homem quanto mais de mulher, e via-se que fazia da casa um uso forçado. Só a pena que sentia pelo homem, queimando a reforma dos STCP em cigarros, o impedia de se mudar. Acrescia que o quarto tinha uma vista larga, estendida até à Batalha, de onde apreciava, nos declinares dos dias, aquela agitação de feira com os eléctricos a tilintarem para o Marquês. Também era rápida a derrotina até à Baixa, para, depois de, no Sport, matar a fome com um prego e um fino, se espraiar, Diário de Lisboa debaixo do braço, no jornal luminoso onde passavam as notícias que o ditador do Vimieiro autorizava.

A companhia do Artur – assim se chamava o colega e amigo - não era só o alheamento da rotina, mas, acima de tudo, a comunhão da utopia. Iam à Unicepe ou à Leitura folhear os livros que não podiam comprar, às sessões do Cine Clube, no Batalha, aos domingos de manhã, e reuniam-se na casa dele, em Latino Coelho, entusiasmando-se na leitura de Rosa Luxemburgo, a última edição da Seara Nova ou os Ensaios de António Sérgio. Ele vivia ali com a Mãe, vendo, algumas vezes, por lá, um sujeito alto, com ar de desocupado. Tinha maneiras de aproveitador, enquanto ela cara de berço limpo e afabilidade condizente. O Pai fora um confortado lavrador, na vizinhança de Alijó, até o coração parar na subida de um socalco. A Mãe, professora primária, cansada do luto e de aturar os filhos dos outros, ainda no viço da idade, comprou um andar no Porto depois de vender as vinhas, a casa e os lagares a um irmão que sempre as invejou. O tempo ia passando na contemplação do filho e no remoer de uma viuvez precoce. Senhora de modos colegiais e conhecimentos na escala dominante, não lhe foi difícil beneficiar de um lugar na Escola do Magistério, no cimo da Rampa da Escola Normal, a imperar nos serviços administrativos. A idade, curando feridas, habitua a vida, o que a levou a não se furtar aos ludíbrios da sedução como quem tolera um passatempo sem mais nada para fazer. O Senhor José – assim se chamava o intruso - era essa permissão não realizada, ficando sempre de mãos livres para rectificar um engano. D. Dulce – a Mãe de Artur - avançara na época e colhera da sua experiência no mundo a reserva afectiva e uma serpentária postura social. Os seus olhos tinham uma coloração esbatida de quem espera pouco dos outros. Dizia-lhe algumas vezes: «Sabes, João, estou cansada de dizer ao Artur para viver sem desesperos. Nunca sabemos quanto duramos nem como acabamos. Sois novos, eu também já fui, mas essa é a minha vantagem: poder falar do já conhecido.» Artur, que aliava a sensibilidade nascida à revolta adquirida, não suportava aquela deslealdade materna. Lembrava-se, ainda menino de bibe, do funeral do Pai, das lágrimas, dos soluços e das janelas da casa fechadas durante dias. Alguma coisa não batia certo no seu entendimento: tinha sido tudo fingido ou agora é que era verdade? Dedicava à Mãe aquele respeito que não admite discussões. Não lhe fugindo no desvelo, parecia-lhe, por vezes, que ela usava isso como recompensa chantagista para lhe travar os impulsos. As particularidades das vidas, todas as intimidades, conhecem-se pela confiança que a amizade conquista, como se, sem aquelas, esta não fosse mais do que um frivolidade. Longe de existências muito convividas, de faustos e simulados exageros que são, afinal, rápidos naufrágios em que poucos se prestam ao socorro, João e Artur nada ocultavam, tinham enterrado o egoísmo e alcançado o cimo da relação. Mais do que irmãos, em que tantas vezes se disfarçam invejas de posse ou ciúmes de ascendência, eram almas germinadas por semelhanças de carácter, sem despojos para contender. Todos os dias burilavam a confidência. Sabiam os nomes e as maneiras, os venífluos e as hematoses, as máculas e as santimónias de ambas as sagas familiares, discutiam-nas como se lhes fossem pertença e mútuos os ditames. Artur mastigava a inabilidade de não impedir a presença «daquele gajo»; ter que comer com ele, mesmo esporadicamente; sentir-lhe o cheiro e a peganhosice assassinava-lhe os dias. Libertava-se, ganhando uma euforia de reconquista materna, quando ele batia a porta e dizia «até amanhã!» com um modo de chupim repelente. Não trocavam, ele e a Mãe, uma palavra sobre José. Comportavam-se como se aquilo fosse uma ferida que acabaria por desaparecer. Era uma relação septicémica que um dia tinha que ser, forçosamente, sangrada. Ambos esperavam qual deles seria o primeiro a iniciá-la.

- Quando fores a ver, ponho-me a andar. Deixo a minha Mãe à vontade. Vou lavar pratos para Paris e fico pronto para todos os exames de Francês - disse-lhe, Artur, no feriado de uma aula, no Café Saban.

- Não deves abandonar o que te pertence - retorquiu João, para quem a França era uma miragem literária.

- A minha Mãe já não me pertence desde que o tipo entrou na minha casa. Não devia ter feito aquilo - acentuou, olhando-o bem de frente.

- Não te esqueças do que já te contei: a minha Mãe também ficou viúva aos vinte anos, nasci sem conhecer o meu Pai. Ás vezes, penso muito nisso, como reagiria se ela se voltasse a casar, mas, também, acho que não tenho o direito de a impedir.

- Mas a minha nem se casou... Não se atira ao lixo a memória dos que nos deram o ser – fazendo um gesto largo com os braços.

- Vamos dar uma volta, não falemos mais nesta merda.

- Mas falemos, Artur, os orfãos devem expulsar os seus lutos. Entre a vida que nos deram e a morte que os enterrou há uma recordação incurável.

- Tu não conheceste o teu Pai, é mais fácil a tua posição, nunca o viste.

- Parece-te. Tenho a saudade da sua imagem. Pelas fotografias vê-se que era um homem com olhos tristes como se já adivinhasse a sorte. Há pessoas assim, que nascem para o inevitável.

Lá fora, sob uma chuva miudinha feita choro de uma velhice, os carros subiam e desciam Sá da Bandeira. O Porto, no Inverno, é uma arca frigorífica desconsertada. As pessoas - carregadoras de heróicas paciências - arrastam-se na obrigação de prover o sustento, olhar de zelo e caminhar de funeral. Dentro do Saban, o cheiro a torradas e a café, o fumo dos cigarros, a voz avinhada - «Graiiixa!» - do abrilhanta sapatos, o olhar pasmado de velhos sorumbáticos, as larachas dos que não tinham aulas e, na cave, os ecos das carambolas do bilhar.

- Vais – te habituar à situação – retomou João, dando-lhe uma palmada no braço. - Ele trata-te bem?

- Mostra-se agradável. É um manhoso. No outro dia, à mesa, quando estávamos a jantar, disse que eu precisava de um relógio novo, que este não valia nada. Meteu-me nojo, aquilo soube-me a azeite rançoso, e respondi que o dele é que era uma cebola. A minha Mãe fez aquele sorriso do costume e tocou-me na perna. É o sinal para me calar. Ela pressente o conflito e desespera-se em adiá-lo, entendes? Como não quero feri-la, calo-me.

- Está na hora do Latim – lembrou João.

- E se não fôssemos? – insinuou Artur.

- Vamos, vamos, o Careca dá umas aulas porreiras. Além do mais, temos que treinar as declinações e pedir-lhe ajuda para a tradução daquele poema do Virgílio. Anima-te Artur! – rematou um João sorridente, bufando nas mãos e esfregando-as.

Eram, no entanto, as aulas de Literatura do Braga que mais os estimulava. Riam-se quando descrevia as tragédias ou as catilinárias Camilianas, e sonhavam ser poetas quando discutiam Cesário Verde. O Braga dava aulas no Particular porque se recusara a assinar o papel de renúncia às suas ideias, condição indispensável para

todos os que concorressem ao Ensino Público. Não escondia o seu rancor e, à tarde, depois do almoço, as faces avermelhadas, atirava inflamado: «Lembrem-se que aqueles figurantes do Alexandre Herculano têm um prazer sádico de esticar os que lhe aparecem sem serem do Liceu! Têm que estudar o dobro! Ouviram bem?! Não se riam que, depois, choram!» Fazia uns apontamentos, em fascículos, que todos compravam e lhes serviam para arredondar o ordenado. Modestamente vestido, sempre com o mesmo casaco puído nos cotovelos, o Braga era o ídolo.

Terminadas as aulas, com a noite a nascer, desciam Santa Catarina, mirando as raparigas, iam ao Rialto tomar um café, recapitulavam as lições, sentados nas poltronas, enquanto espreitavam as coxas das miúdas e a hora do jantar não chegava. Contornavam, depois, a Brasileira («Olha o António Pedro!»), subiam a 31 de Janeiro, passavam na Vadeca e ouviam uns discos (aparentando que iam comprar) do Clif Richard e dos Beatles. Nos Correios da Batalha pedia uma chamada para a Mãe, algumas vezes desistindo tal a espera, miravam as empregadas da Janota, espreitavam a montra da Latina, e repetiam Santa Catarina, agora subindo-a, para se

separarem no cruzamento da Rua Firmeza onde o Artur saltava para o eléctrico do Marquês. João voltava para o quarto, revendo a matéria dada até o mastodonte da Alzira o chamar para os restos do almoço. Em algumas tardes de sábado, bafejadas por amenidades (as de domingo repeliam-nas pela balbúrdia formigueira), iam até à Foz. Desciam à Praça e olhavam os títulos da Figueirinhas enquanto o eléctrico que, ao longo da Marginal, desenhava o mais belo trajecto do Porto, não vinha. Apeavam-se em frente da Doce Mar, atravessavam para o outro lado e espreguiçavam-se pela Avenida Brasil. A maresia despertava-os para as lembranças das férias. Subiam ao terraço do Homem do Leme, ladeavam o aquário Vasco da Gama, insinuavam-se pelos trilhos ajardinados, paralelos à avenida Montevideu, mirando os palacetes da burguesia bem sucedida, passavam o Castelo do Queijo, até se quedarem no parapeito em pedaços da praia Internacional. Repetiam o passeio ao contrário e, numa das esplanadas da beira-mar, pediam uma torrada e duas meias de leite. Deixavam-se estar a gozar a soalheira, de olhos fitos na modorra envolvente. Não havia dúvidas: a Foz era a diferença do Porto, a alta roda das mansões e apartamentos insonorizados como num condomínio asséptico. Os adultos confabulavam traições domésticas ou adornavam venturas profissionais, enquanto os filhos fumigavam em bailes de garagens. Os de fora demandavam o Orfeão nas imediações do Passeio Alegre ou a Aurora da Liberdade para os lados de Matosinhos, onde apalpavam criadas de servir ou peixeiras de ancas roliças. Muitos dos moradores distinguiam-se da casta restante, tinham os tiques elitistas da posição, vestiam, falsamente négligés, as melhores marcas das lojas de estilo e passeavam os caniches como objectos de luxo ou eram arrastados pelos podengos de guarda.

João e Artur gostavam de estar ali, pernas esticadas, a contemplar aquele bocejo pastoso, com a brisa, resvés à areia, a distende-los. A hora tinha sido adiantada, anoitecia mais tarde, o sol acariciava, já se viam alguns vendedores de picolés, língua da sogra e batatinha à inglesa. Apetecia aquele ambiente diferente, com raparigas de mini-saias atrevidas, os acompanhantes desejosos de conquistas para anunciar nas segundas-feiras de aulas. João apreciava o jogo da sedução, aquela troca de olhares como um flébil motim interior que distrai corações inconstantes. Elas sentiam-se cobiçadas, relevavam a sensualidade, tricotavam risinhos nervosos e, de través, observavam os efeitos.

- João, posso ir passar a Páscoa contigo? – perguntou Artur, assim sem mais nem menos, acordando-o da modorra.

Não lhe respondeu, num desvelo contemplativo da mesa em frente. Estava agarrado a uns olhos azuis, se não eram azuis assim os ambicionava... No meio da algazarra do grupo, ela parecia absorta, sem acompanhar as risadas, de olhar arrependido por estar ali; o seu rosto era um nórdico postal ilustrado; até o cabelo, deslizando pelos ombros, tinha a cor do caramelo.

- Joããão! – berrou Artur, fixando-o de lado. – Porra!, não podes ver uns joelhos!!!... – chacoteou.

Mas ele escutara a pergunta, ou melhor, pareceu entende-la no fundo do entorpecimento como um despropósito sem ligação com o momento.

- Que disseste?...

- Perguntei se não te importavas que eu fosse passar as férias da Páscoa contigo, lá em cima – fitando, distraído, um barco que, ao largo, aguardava vez em Leixões.

João fixou-o surpreso, não pela ideia, mas pelo significado: “Este tipo deve-se sentir mesmo mal! “.

- Mas qual é o problema? Só tenho é que avisar a minha Mãe. – E calou-se como se achasse tal pedido naturalíssimo.

Quando começou a esfriar, subiram as escadas para o passeio largo da avenida e esperaram o eléctrico. João resolveu recuperar a conversa.

- Queres, então, ir nas férias comigo, é?...

- A minha Mãe deu-me a entender que gostaria de passar uns dias em Lisboa. Temos lá uns primos, eu mal os conheço, moram para os lados da Parede, Oeiras ou coisa parecida, e o gajo vai com ela. Pediu-me para ir com eles, mas não me estás a imaginar nessa viagem, pois não?

- Não sei porquê. Atenção: não estou a insinuar que não quero que vás comigo, vê se entendes, mas a tua Mãe com certeza que gostaria que fosses.

- João... – balbuciou Artur, mirando-o de soslaio, envolto num sorriso de troça.

Meteram-se no eléctrico e, como não havia um único lugar vago, encostaram-se à vedação da plataforma.

- Não há meio de ultrapassares a situação, não é verdade meu cara de caraças? – folgou João. – Não consegues aceitar, pois não?

- Não. Às vezes, bem tento, esforço-me por me iludir, arranjo motivos para dar o caso como adquirido, mas é demasiado. Não te aborreço com estas merdas, pois não?

- Claro que não...

Pouco mais falaram durante o trajecto. Comeram um prego em prato no Estrela, subiram 31 de Janeiro e foram ver o Cowboy Insolente ao Águia Douro.

Estava um sol maravilhoso naquele começo de tarde dum sábado de Abril, quando tomaram o comboio de Barca de Alva. São Bento era uma câmara de eco das pressas feitas de correrias e despedidas. Os migradores do interior, que saíam de casa nas madrugadas de segunda-feira, voltavam para aliviarem os corpos de uma semana
a acartarem argamassa, arrumavam os embrulhos e os garrafões como posses suadas, fotografando os mais próximos, esquadrinhando-lhes as feições; os caixeiros dos concelhos confinantes que, na cidade grande, sonhavam com quinhões de comerciantes sem descendência, gastavam a brevidade do trajecto a lerem o Comércio; as vendedeiras de Contumil, roucas por uma manhã, às portas do Bolhão, a apregoarem as hortaliças e os frangos pica-na-areia, barafustavam por um espaço para as cestas com verdura e penas coladas.
Continua...

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

sábado, 13 de novembro de 2010

Recortes - RÉGUA, antes... RÉGUA, depois...

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Os Bombeiros e a Legião Portuguesa

Durante o Estado Novo, a Defesa Civil do Território (DCT), foi a estrutura responsável pela protecção civil nacional até ao 25 de Abril de 1974, que tinha como missão principal de “assegurar o regular funcionamento, em tempo de guerra ou de grave emergência, das actividades do país”.

No decorrer da Segunda Guerra Mundial, em Abril de 1942, perante a possibilidade de uma invasão alemã, o governo de Salazar decidiu criar uma organização de Defesa Civil do Território (DCT), na dependência do Ministério da Defesa Nacional. A sua coordenação era atribuída à Legião Portuguesa. A partir do fim da Segunda Guerra Mundial e com a entrada de Portugal na OTAN, passou a ministrar cursos básicos de socorrismo e a preparar a população para a defesa civil, no caso de eventuais ataques nucleares.

A DCT era uma organização que possuía alguns veículos, equipamentos e pessoal treinado, sobretudo militares, mas que nunca teve como objectivo se substituir aos corpos de bombeiros, a única estrutura de protecção civil, organizada para intervir em qualquer situação de catástrofe natural ou tecnológica. Contudo, para realizar essa campanha de divulgação da defesa civil das populações pelo país, a Legião Portuguesa precisou da mobilização dos corpos de bombeiros.

A partir dos anos 50, os bombeiros da Régua mantiveram contactos permanentes com a DCT-LP, nomeadamente em acções de formação, apesar de serem pouco conhecidos e revelados os seus contornos, o que tem deixado na penumbra muitos factos e situações interessantes da vida e da história da Associação. Se bem que os documentos existam em arquivo, até à presente data, não foram divulgados e referenciados os pormenores mais significativos, nem as pessoas que estavam alistadas, simultaneamente, na Legião Portuguesa e no corpo de bombeiros, para se evitarem interpretações erróneas de comportamentos cívicos de cidadãos exemplares e de não se fazer apressadas conotações à política ditatorial do Estado Novo.

O relacionamento da Legião Portuguesa com os corpos de bombeiros não foi muito pacífica por razões de vária ordem, apesar de não existirem estudos divulgados que possam sustentar esta afirmação. Apenas se sabe que um sector dos bombeiros não gostou que as questões da protecção civil e socorro - objectivo da defesa civil - fossem dirigidas por uma organização de carácter paramilitar, com fins de propaganda politica, que controlava a vida privada dos cidadãos, como era a Legião Portuguesa. Com os seus ideais de “defesa do património da nação contra os inimigos da Pátria e da Ordem”, a Legião Portuguesa manteve uma tensão no relacionamento com os corpos de bombeiros. Alguns conflitos devem-se às condutas dos chefes da milícia, onde marcavam presença os caciques locais, mais preocupado em manter o poder à força do que em zelar pelos interesses gerais da comunidade. No destacamento da Régua, eram frequentes os desmandos de um legionário, conhecido pela alcunha de “Chefe Quina” – pessoal menor da estrutura local - que gostava de afirmar autoridade, sem ter respeito pelas pessoas.
Quem abordou essa questão foi Frederico Pereira Jardim, presidente da Assembleia-geral dos Bombeiros Lisbonenses. Este dirigente publicou no jornal “Vida por Vida”, de Agosto de 1956, um artigo de opinião para defender a isenção e o carácter apolítico da DCT, nestes termos: “O facto de estarem esses serviços superiormente entregues à Legião Portuguesa tem, de algum modo, diminuído o interesse de várias Corporações ou dos seus componentes nos Cursos Básicos da DCT ou pelo espírito de colaboração na Organização. Uns por maldade, outros por ignorância não deixam de fazer uma campanha contrária, pretendendo insinuar que o ingresso nos serviços da DCT implica automaticamente nas actividades políticas ou de milícia da Legião Portuguesa. Isto demonstra, portanto, que na DCT não há o menor intuito de seguir qualquer politica”. Convencido que havia vantagens na adesão, incentivava os bombeiros a colaborarem com servilismo: “Por outro lado, devem todas as Corporações de Bombeiros Voluntários atentar nas vantagens de colaborarem, dedicada e intensamente, nos trabalhos da DCT para, em justa retribuição fazerem jus aos benefícios, importantíssimos, que podem vir a receber”.
Não desconhecendo os condicionalismos políticos da época, os responsáveis da Liga dos Bombeiros Portugueses, no seu Boletim de 1954, garantiam a colaboração dos bombeiros à DCT e ao Governo da Nação “que podem contar, incondicionalmente, com a bravura e dedicação de 13.000 bombeiros voluntários portugueses”. Nesse Boletim, o tenente A. Norte da Silva, do comando da DCT, escrevia “algumas sugestões”, a aconselhar que “as Corporações de Voluntários criem “Cadetes, jovens de 15 anos que vão andando pelos quartéis e que, poucos anos depois, são competentes e valorosos Bombeiros É preciso que as Corporações de Voluntários, à semelhança do que se fez noutros países, criem o seu Serviço Auxiliar Feminino, constituído por senhoras que prestem valiosos serviços nos telefones, nas radiocomunicações, enfermagem, socorros, auxílio social e serviços de apoio aos seus bombeiros”.

Seguindo a orientação da Confederação, os bombeiros da Régua não só colaboraram com a D.C.T.-L.P. como se mostraram disponíveis para lhes ceder uma dependência do seu quartel, para instalarem a sede dos serviços concelhios da organização. Em troca pediam que a Legião Portuguesa os fornecesse de material logístico e de treino, como as máscaras anti-gaz, fatos de amianto, macas, bolsas com material de enfermagem e uma barraca de hospital. Como não possuíam ainda nenhum tipo de máscaras anti-gaz, pensavam que iam resolver esta carência. Mas, os bombeiros eram avisados de que “quanto à sua utilidade, é de fazer notar que a máscara utilizada pelos nossos serviços, se destina a actuação em tempo de guerra, pelo que se indica, no mapa seguinte, qual o seu comportamento, em face dos gazes e fumos acidentais, mais prováveis em tempo de paz”.

Em 5 de Julho de 1954, o comando dos bombeiros da Régua promovia uma acção com a DCT, ao realizar um “Curso Básico de Defesa Civil”, destinado aos bombeiros e representantes da sociedade civil. O Comandante Lourenço Medeiros cumpria uma recomendação emanada do Conselho Nacional do Serviço de Incêndios. Numa carta circular, o Inspector do Norte, Coronel Serafim Morais Júnior comunicava que “havendo conveniência em difundir, tanto quanto possível, conhecimentos úteis sobre D.C.T, que interessando, de um modo geral, a toda a população, não podem deixar de interessar, em especial aos Corpos de Bombeiros, que, na DCT têm o seu papel definido, dentro das funções que normalmente lhe competem (sem perderem, porém, a subordinação aos regulamentos a que estão sujeitos, e ao C.N.S.I., através das Inspecções de Zona) ”. O curso estava definido com as seguintes disciplinas: a guerra atómica, biológica e química, os projécteis explosivos e a luta contra o fogo. Cada uma dela podia ser estudada num Manual de Defesa Civil, editado pela Legião Portuguesa. As matérias foram leccionadas pelo Comandante Lourenço Medeiros, os graduados Claudino Clemente, Gastão Mirandela, António Guedes Castelo Branco, os directores Alfredo Baptista, o médico Rui Machado e o jovem Carlos Cardoso.

Em 1960, o Comando Distrital de Vila Real da Legião Portuguesa promovia a realização de um “Curso de Primeiros Socorros”, destinada aos bombeiros da Régua. Pela que está documentado na Ordem de Serviço nº 18 de 31 de Julho de 1960, emanada do Quartel daquela instituição, onde constam os nomes dos bombeiros inscritos e a sua classificação, verifica-se que houve uma boa adesão. Os cidadãos que se alistaram como “Agentes” na DCT e alguns que já eram “Legionários” - pessoas conhecidas na sociedade reguense – que também faziam parte do corpo de bombeiros, foram obrigados a frequentar o curso.
Nessa época, o Comandante Cardoso admitia que a formação de defesa civil orientada pela Legião Portuguesa não era novidade. Estava a ser ministrada pelas corporações onde havia médicos, pelo que os bombeiros possuíam uma preparação eficiente no capítulo do socorro. O jovem comandante sabia do que falava, mas não acreditava que tais acções, apesar da sua importância, adiantassem para mudar a qualidade da instrução dos seus bombeiros.

Assim, desta maneira, a Legião Portuguesa ramificou os tentáculos do seu poder pelos corpos de bombeiros. Em alguns deles, colocava as pessoas da sua confiança à frente do comando e dos órgãos sociais, para que cumprissem, sem críticas e sem reivindicações, as orientações do regime político, respeitando os lemas nacionalistas de Salazar, como este: “Todos não somos demais para continuar Portugal”, por muitos mais anos, até ao dia 25 de Abril de 1974, data em surgia um autêntico Serviço Nacional de Protecção Civil.
- Peso da Régua, Novembro de 2010. Colaboração de J A Almeida* para Escritos do Douro 2010. Clique nas imagens acima para ampliar.

  • *José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também crónicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária, fatos do passado da bela cidade de Peso da Régua de onde é natural e de figuras marcantes do Douro.
Jornal "O Arrais", Sexta-Feira, 12 de Novembro de 2010
Arquivo dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua
Os Bombeiros e a Legião Portuguesa - 1ª Parte.
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Os Bombeiros e a Legião Portuguesa - 1ª Parte

Jornal "O Arrais", Sexta-Feira, 19 de Novembro de 2010
Arquivo dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua
Os Bombeiros e a Legião Portuguesa -  2ª Parte.
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Os Bombeiros e a Legião Portuguesa - 2ª Parte