sexta-feira, 3 de junho de 2011

Saudades da Natureza

João de Araújo Correia

Tenho saudades da natureza, que ainda conheci quando cheguei a este mundo. Pela maneira como a vão ferindo, penso que morrerá antes de mim. Levo essa pena para o outro mundo.

Agora, que é Primavera e demais poesias ma anunciavam. Mas, não sei para onde foram as andorinhas. As pessoas limpas substituíram-nas por andorinhas de caco, tão silenciosas, tão quietinhas e tão asseadinhas, que não incomodam ninguém. Debaixo dos alpendres, colam-se à parede, como enfeite fixo, para todo o ano. Aí ficam, dando as quem as vê o mais subtil exemplo de maneirismo bem procedido, satisfeito de si próprio e de tudo quanto existe, Dão um bonito exemplo.

Os pedreiros, primos das andorinhas, bons artistas, que andam pelas torres e pelas pontes a trabalhar, lançando-lhes imaginários fios, para não caírem, também se foram. Para onde? Talvez para França ou Alemanha, onde o trabalho de cada pedreiro é pago a peso de oiro.

No meu rincão, à parte o cheiro da vinha, tão delicado, também as ribanceiras, os valos e cômoros anunciavam, com miríades de flores, a Primavera. Os cardos, a macela, o rosmano e a alcachofra desafiavam, da sua humildade, a altivez do espinheiro. Hoje, não desafiam ninguém nem desafiam nada. Parece que provaram, antes de florir, a dose de herbicida espalhado na vinha para evitar a cava. Quando chegar o São João, quem quiser saltar a uma fogueira não poderá fazê-la com uma erva aromáticas. Terás de se remediar com o gás Cidla.

Vem aí o Verão. Quem é muito novo pode ser muito bonito e até usar cabelo de mulher, mas, não sabe o que foram, à beira rio, as noites de Verão. Eram noites de Walt Disney. Eram sinfonias de ralos e rãs à beira-rio. Seriam uma guisalhada de mil machos alegres numa viagem sem fim. Mas, toldando a concha duriense, de montanha a montanha, não incomodavam o ouvido. Parece que o acalentava como canção natural. Hoje, tão fantástica emudeceu para deixar roncar os automóveis, os bêbados e os altifalantes. Cultiva-se o ruído, cuidando que é progresso.

Em sítios selváticos, pelo passavam pelo céu esquadrilhas de mochos reais. Nunca mais se viram nesses lugares bravios, porque a selva cedeu à mão civilizada, que não pode ver matas. Vendeu-as todas para apurar dinheiro.

As pegas e os tordos, que vinham a seu tempo visitar o Douro, para comer azeitona e o mais que pudessem, demandam agora, como turistas enfastiados, outras regiões. Se ainda existem, irão à procura de frutos que não saibam a insecticidas. Que os encontrem é o voto de quem perdoa às pegas o vício da ladroíce e outras manhas como perdoará aos tordos, por amor à finura e à disciplina, a abusiva maquia de moleiros na safra da azeitona.

Em cada quintal, empoleirado num lodo ou num loureiro, cantava às tardes um melro. Deixou de cantar ou é milagre que cante, à míngua de poleiro e até à míngua de cantor. Tão raro é agora o melro negro como o fragoeiro.

Passarinhos miúdos podiam encher, em menos de um amém, a bolsa do naturalista. Este desgraçado, se hoje a quiser encher, terá de papar muita légua. Pintassilgos e pintarroxos, tentilhões e verdilhões, piscos e cotovias voaram para sempre. Só se vêem como ilustrações de calendário. Mas, não cantam.

O ar puro era puro. Os automóveis, que passavam por quem ia a pé, tinham tomado chá em pequenos. Eram incapazes de abrir o escape. Hoje, até na face dos polícias fazem o serviço. O ar, grosso e compacto, corta-se à faca para o peão abrir caminho. Mas, não se livra de levar nos pulmões o contrapeso.

Se mergulharem no rio, só encontraremos alguma boga e algum barbisco. Sável, enguia e lampreia desertaram. No tempo da desova ou do passeio, rio acima, eram uma delícia e a fartura de quase todos os durienses. Hoje, só se vêem próximo da foz. De Entre-os-Rios para riba, temem o diabo feito açude. Só a poder de muito pulso o poderão transpor. Se ninguém lhe acudir, diga-se adeus às famosas pescarias do Alto Douro. Diga-se adeus a S. João da Pesqueira.

Onde quer se condena uma árvore sem julgamento. Não há poeta nenhum que não se lembre de cedro, castanheiro ou plátano abatido por ser árvore. Não haverá regedor, em Portugal, sem delitos de arboricida na pasta administrativa. Os mais ingénuos contam como glórias os arvoredos sacrificados. 
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À última hora, há quem procure salvar a natureza com técnicas perfeitas. Se tal se conseguir, já aqui não está quem se desesperou.

- 9-5-70 - In livro “Pó Levantado”, edição da Imprensa do Douro, 1974, Peso da Régua. Colaboração do Dr. José Alfredo Almeida e edição de J. L. Gabão. Imagem acima do Dr. João de Araújo Correia recolhida da internet livre e editada para o blog "Escritos do Douro". Clique na imagem para ampliar.

Dia do Patrono das Escolas da Régua, João de Araújo Correia

Dia do Patrono das Escolas da Régua, o escritor João de Araújo Correia, que hoje dia 3 de Junho se está a comemorar na cidade do Peso Régua:
(Clique nas imagens para ampliar. Colaboração de J. A. Almeida e edição de J. L. Gabão)


quarta-feira, 1 de junho de 2011

TEMPO MOÇO

Deitados na caruma, de olhos fechados, sentíamos os voos das pegas–azuis, os estalos dos pinheiros e, ao longe, na ondulação dos montes, os zumbidos dos pulverizadores.

Não sei quantos anos tínhamos, talvez dezasseis, talvez dezoito ou talvez aquela idade em que não se sabe, ainda, contar os anos.

Da pequena cachoeira, a deslado de um renque de salgueiros (pareciam salgueiros...), vinham os ralhos das mulheres que lavavam a roupa, misturados com a gritaria da canalha entre barrigadas na água e correrias pelas margens.

Flutuavam aromas de Verão, o cheiro a terra e a flores silvestres entranhava-se nos corpos. Ficávamos, assim, colados ao restolho, cansados da subida, à espera que o comboio nos acordasse.

Quando o pouca-terra-pouca-terra da via reduzida atravessava a ponte, sentávamos-nos a ver aquilo: carruagens esverdeadas, andar bocejante, fumaradas de cigarro, brinquedo de cascata sanjoanina. Os nossos cabelos eram fios de sol e trocávamos olhares tão ternos como a lua contempla o mundo nas noites quentes de Agosto.

Corríamos os bardos à cata de ninhos de melros, e havia sempre, ao entardecer, um rouxinol que cantava para os lados da ramada que sombreava o poço.

Tudo era verdadeiro, a amizade existia mesmo e ninguém invejava ninguém.

Tínhamos a novidade do princípio que nunca se inicia nem acaba qual a sede num sonho.

Trepávamos ao pinoco de cimento, que comemorava o ponto mais elevado do monte, e dali abarcávamos uma vista delirante: medonhas penedias forradas por simétricas fieiras de verde tão a pique que parecia impossível um homem conseguir lá botar sulfato; estavam mesmo junto às nuvens, numa adoração telúrica que nem sabíamos se era herética ou sagrada, enquanto o comboiozinho, ao longe, pronunciava uma curva larga, em câmara lenta, pedindo que algum santo o empurrasse.

Ignorávamos o ódio que é feito daquele martírio de linguagem escolhida para a ofensa gratuita, expressa por olhos esbugalhados para perturbar a boa fé. As mãos das pessoas tinham calos e terra nas unhas, as barbas faziam-se aos domingos de manhã e o Padre madrugava com o sino da Capela a interromper os sonos.

Ecoavam os cânticos das aleluias, o toque dos santos, a adoração da hóstia e, depois, os homens iam, abençoados, de sacho ao ombro, desviar as águas para as hortas.

Líamos, às escondidas, o Crime do Padre Amaro ou Andam Faunos Pelos Bosques, enquanto as moçoilas, de caneco à cabeça assente em rodilhas, mostravam os vestidos de chitas floridas; as Mães, cansadas, catavam ganapos; os homens, nas tabernas, jogavam o monte ou o sete e meio, mastigando tabaco de onça e escarrando no chão térreo; os leilões de cravos, cestas de fruta e galos de crista vermelha fomentavam vaidades aldeãs em nome das festas de Santa Bárbara; os bailaricos de poeira, suor e olhares de soslaio alimentavam rivalidades ciumeiras.

Naquele tempo desconhecia-se a morte. Ela estava cercada por quatro paredes, no canto mais afastado da terra, e não gostávamos daqueles toques metalóides dos sinos da Igreja quando uma multidão vestida de negro se arrastava, estrada fora, como uma cobra do rio.

A morte era um eco difuso, pouco audível, que a noite, por vezes, avivava em receios de fantasmas. Depois, adormecia com a sensação de que me faltava alguém.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". A imagem ilustrativa acima foi recolhida da internet livre e editada. Clique na imagem com o "rato/mouse" para ampliar.
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua - Portugal.

sábado, 28 de maio de 2011

QUASE UM POEMA DE AMOR - Miguel Torga


Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor.
E é o que eu sei fazer com mais delicadeza!
A nossa natureza
Lusitana
Tem essa humana
Graça
Feiticeira
De tornar de cristal
A mais sentimental
E baça
Bebedeira.

Mas ou seja que vou envelhecendo
E ninguém me deseje apaixonado,
Ou que a antiga paixão
Me mantenha calado
O coração
Num íntimo pudor,
— Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor.

Miguel Torga, in 'Diário V'
- Clique nas imagens acima para ampliar. Colaboração (texto e imagens) de José Alfredo Almeida em Maio de 2011 para Escritos do Douro.