quinta-feira, 24 de março de 2011

Uma Sineta de Palavras - 2

 A presença dos bombeiros na vida e obra  de João de Araújo Correia

“A associação é digna do meu zelo e até do meu sacrifício”
João de Araújo Correia


Sem abusar da sua confidência, julgo que não alterarei o rigor da sua dedicatória, se acrescentar que o livro “Pátria Pequena” não foi só escrito e como uma homenagem, à “vila e o concelho do Peso da Régua”. Em grande parte esse seu livro, foi – é e será -  também,  um preito aos bombeiros da Régua, em especial aos bombeiros da velha guarda,  a todos os bombeiros do seu tempo,  como a única gente que teima em representar, neste nosso meio, um papel tão nobre, que a distingue da apatia comum”. Da mesma forma, deve ser entendido como o reconhecimento de uma Associação Humanitária que criou raízes no seu meio social e, por assim dizer, se tornou uma força invencível, obstinada em cumprir os ideais legados pelos seus heróicos fundadores.


Certamente que contar a história dos bombeiros da Régua não foi uma tarefa pensada ou imaginada pelo escritor, no sentido de que desejasse narrar os factos e os acontecimentos com uma ordem cronológica, como se fosse mestre de história. Mas, os temas tratados nas crónicas são uma grande parte da história dos bombeiros. Se nelas há muito das sua memórias também está também retratada a sua relação de amizade com os velhos bombeiros os directores. O escritor de memória em memória, de retrato em retrato e de acontecimento para acontecimento faz enobrecer a grandeza de homens bons e enaltece os seus ideais humanitários.


João de Araújo Correia, nas crónicas que dedica aos bombeiros consegue reconstruir uma parte do passado, obscuro e desconhecido, com génio, humanismo e até ternura por figuras humanas que já se tornaram imortais, em momentos que testemunhou, directa ou indirectamente, da existência uma instituição modelar, no que ela tem de sonho e de paixão, abnegação e heroísmo, grandioso e nobre, mas também de sofrimentos, desânimos, e tragédias que fizeram perder a própria vida a homens, que cumpriram ao extremo o lema do voluntariado: “Vida por Vida”.


Desde o projecto organizado por Manuel Maria de Magalhães, o líder escolhido para comandar o movimento associativo, os bombeiros aparecem referenciados nas inúmeras crónicas que o escritor publicou quer em livros quer em jornais, até ao fim da sua vida, encontrando-se as últimas no jornal O Arrais. Sempre com uma indisfarçável paixão, descreveu os bombeiros da sua terra como uma força invencível, uma força ao serviço de causas com uma dimensão moral e ética, que sempre apoiou.


Com os bombeiros, João de Araújo Correia manteve também uma ligação de sócio contribuinte. Era assim que o dizia na sua correspondência que encontramos arquivada nos bombeiros. Curiosamente, contribuinte era a classificação dos associados, definida nos primeiros estatutos, os que pagavam uma quota fixa em dinheiro para ajudar. Esta classe de associados, onde já se incluiu a D. Antónia Adelaide Ferreira, a famosa Ferreirinha, que se inscreveu como a sócia numero um, foram sempre muito importantes pelos seus contributos generosos nos momentos de maiores dificuldades económicas.


Como já se disse, João de Araújo Correia foi um dos colaboradores literários nas páginas do boletim “Vida por Vida”, folha informativa da Associação. Teve como primeiro director o seu filho Camilo de Araújo Correia que, durante um mandato de dois anos, exerceu as funções de Presidente da Direcção da Associação. Mas o escritor, sempre que lhe foi pedida a sua colaboração literária, respondeu de forma positiva. Escreveu textos e memórias relacionados com os bombeiros para os dois boletins comemorativos que a Associação editou, em 1955 e 1980, datas em que, respectivamente, comemorou as “Bodas de Diamante” e o seu primeiro centenário.


Perante os sacrifícios dos bombeiros, o escritor dizia numa carta que enviou  num dos aniversários da Associação que “a associação é digna do meu zelo e até do meu sacrifício”.


Quando nasceu João de Araújo Correia, em 1 de Janeiro de 1899, a Associação dos Bombeiros da Régua tinha perto de dez anos de existência. Das mais antigas do país, encontrava-se numa fase em que havia muita boa vontade e determinação dos seus homens e um sentido de manter, apesar de todos os sacrifícios, um corpo de bombeiros voluntários capazes de cumprirem uma tarefa de protecção civil, então da responsabilidade da Autarquia.


Na história dos bombeiros rezavam a proeza e feitos, agraciados com medalhas e reconhecimentos públicos pelos relevantes serviços prestados às populações da Régua e dos concelhos vizinhos, onde não havia nenhuma corporação, como seja em Santa Marta de Penaguião, Armamar e Mesão Frio.


Em 1882 foi atribuído aos bombeiros da Régua, o título de “Real” , que estes passaram a usar na bandeira desenhada pelo Comandante José Afonso de Oliveira Soares.


Havia também falecido, em finais de 1892, de doença, na sua residência na Rua Serpa Pinto, com a idade de 47 anos, o principal fundador e o primeiro comandante Manuel Maria de Magalhães, o decidido impulsionador da criação dos bombeiros da Régua. Presidiu a uma Comissão Instaladora que depressa redigiu os estatutos da benemérita Associação e o regulamento para o bombeiro, com colaboração do advogado e então Presidente de Câmara, Dr. Joaquim Claudino de Morais, o qual prometeu a ajuda pessoal e da autarquia.


Na crónica “Bons e Maus Exemplos”, publicada no jornal “O Arrais”, em 1980, -  assinada com o pseudónimo Joaquim Pires -  o escritor evoca um  pormenor da vida pessoal do primeiro comandante, natural de Bragança, mas que viveu e trabalhou na Régua, onde exerceu no Tribunal Judicial, então localizado no rés-do-chão do edifício da Câmara Municipal, as funções de escrivão de direito.


“Contavam os antigos reguenses que o Rei D. Luís, dando o título de Real à associação dos nossos bombeiros, em 1882, se relacionou, amistosamente, com o fundador e primeiro comandante da corporação Manuel Maria de Magalhães.
Contavam também que D. Luís se carteava com ele. Apesar de rei, não se desdenhava corresponder-se com um escrivão. Creio que foi escrivão o Comandante Manuel Maria de Magalhães”.   


O escritor não conheceu pessoalmente o primeiro comandante dos bombeiros da Régua, mas na crónica “Bombeiros da Velha Guarda” (in Pátria Pequena, 1965) confessa a sua admiração pelos primeiros bombeiros alistados, com os quais se relacionou e conviveu, não para lhes bendizer feitos heróicos, mas para retratar os seus exemplos de altruísmo.


“Fim de Novembro, fazem anos os Bombeiros da Régua. Contam oitenta e cinco, mas parece que nasceram ontem. Nem uma ruga, nem um cabelo branco, nem um desalento…Garbosos até no capacete, fazem do seu garbo agilidade, frescura e força. Que milagre!
Confraternizam, em cada aniversário, os Bombeiros da Régua. Depois das cerimónias piedosas e do desfile nas ruas, sentam-se à mesa e comem. Comem bem e gracejam…Mas talvez que nenhum se lembre, nem bombeiros nem contribuintes, de sócios e bombeiros antigos, que também se sentaram, em ágape semelhante para comer e gracejar.
Quem vai contando anos, dos que já fazem mossa, não dos bombeiris, que rejuvenescem, lembra-se da velha bomba e de quem a movia e sustentava.
Lembra-se de Afonso Soares, com a sua barba branca; do poeta Camilo Guedes, de gravata à La Vallière; do José Avelino, que comia um boi por uma perna; do José Ruço, que pertencia ao grupo auxiliar; do Joaquim Maria Leite, o Riço, que pertencia ao corpo activo com alma de criança e alma de bombeiro. Mas, de quantos se não lembra ainda? Justino Lopes Nogueira, o Justino, daria um livro de inocentes recordações alegres.
O quartel dos Bombeiros, situado ali em baixo, na Chafarica, largo dos Aviadores, como hoje se diz, era o clube da terra. Havia outro, mas, aristocrático, presidido pelo monóculo do Dr. Costa Pinto. Clube, ponto de reunião sem preconceitos, era o quartel dos bombeiros. Ali se jogava e conversava à vontade. Ali se davam gargalhadas que faziam estremecer o quartel. Guarda-lhe o eco algum ouvido então adolescente…”.


O escritor lembrou um bombeiro voluntário, o divertido Justino Lopes Nogueira, natural de Santa Marta de Penaguião, que foi conhecido por falar com erros gramaticais. Não se distinguiu não pelas suas proezas heróicas, mas antes pelos seus burlescos e impagáveis comentários.


Em “As anedotas do Justino”, crónica publicada no jornal “O Arrais”, em 1980, traçou um breve retrato deste humilde 1º patrão – hoje equivalente ao posto de Chefe -  dos bombeiros, à mistura com palavras de ironia e muita  ternura pela sua  humilde figura.


“Bem faz o António Guedes, recordando a Régua do seu tempo. Oxalá o pulso lhe não arrefeça tão cedo para continuar a recordá-la com invejável fluência e graça. Oxalá…
Aqui há tempos, lembrou António Guedes a extraordinária figura do bombeiro Justino. Digo extraordinária, porque não houve quem lhe chegasse aos nós em cretinismo.
Boa figura física tinha o nosso homem. Sólido, com as suas carnes sobre o enxuto, garganta bem timbrada… Mas, não abria a boca sem dizer asneira.


- Comi hoje perdiz com molho de pilão. Soube-me pela vida…
Se disse pilão, quis dizer vilão. Toda a gente sabe que o molho de vilão casa bem com a perdiz.


-Fui à feira. Não estava lá grande coisa. Se não fossem os suíços…
Quis dizer suínos. Mas, coitado disse, suíços.


-Deu-lhe de presente uma apendicite.
Não lhe chegou a língua para dizer pendentif – adorno feminino pendente ao pescoço – por aí pingente.


-Sempre simpatizei com o seu panorama…
Cumprimentou assim um político da época. Mas, em vez de dizer programa, disse panorama. Pouco tempo depois, emendou a mão, chamando programa ao panorama. Que lindo programa!


O Cinema, naquele tempo, oscilava, tremia… Tremia como criança.   Oscilava… Mas, o pobre Justino, que tinha no ouvido, como pulga, o verbo oscilar, deitou cá para fora aperfeiçoado em urcilar.


À gipsófila, que então se pronunciava gipsòflia, planta de flores miudinhas, chamava ele, de modo grandioso… pisgatòfilha!


Não sairíamos daqui hoje se quiséssemos completar o rol de tanta asneira.   Completem-no os velhos, que porventura se lembrem do Justino.
Falta apenas dizer, neste lugar que teve carreira politica, no cargo de regedor, por sua honra, que o atestado supra é pobre.
Homem assim não podia ser só regedor. No declínio da primeira república, subiu de posto. Foi administrador do concelho de Santa Marta de Penaguião. Falta saber se também foi ministro.”


Quem o escritor lembrou de forma comovente na crónica  “Figuras de Barro - Os Bombeiros” (in Manta de Farrapos-1957) foi  o primeiro Capelão dos bombeiros da Régua,  a figura bonacheirona  do Padre Manuel Lacerda de Oliveira Borges e o dia triste do seu funeral, quando  ia  a caminho do cemitério do Peso.


“Perdi a ocasião de ver os bombeiros formados quando morreu o Padre Manuel Lacerda. Passou à minha porta o acompanhamento, a caminho do Cruzeiro, mas não o vi. Se passou de manhã, estaria eu ainda na cama ou andaria para o quintal, onde era vivo e morto nas horas forras das primeiras letras - tinha eu sete anos.
Quem me descreveu o enterro foi minha irmã mais velha, imediata de minha mãe na minha iniciação em espectáculos novos. Disse-me como tinha sido, mas só o fixei, de mo dizer muitas vezes, que o Borrajo levava a bandeira e ia a chorar.
O Padre Manuel Lacerda foi, de todos, o mais benquisto dos reguenses. Morreu de repente, enlutando num pronto a Régua toda. Lembro-me de o ver conversar com meu pai. Que fisionomia! Era uma espécie de coração visto por fora para melhor se adorar. Meu pai, que não era homem de muitas lágrimas, nunca o recordou, pela vida fora, com os olhos absolutamente secos.
Não se pode dizer que o Padre Manuel Lacerda, como padre, tenha sido talhado pelo figurino que os cânones exigem. Mas, como homem, foi um santo homem, um homem alegre, que não podia ver pessoas mal dispostas nem arrenegadas umas com as outras. Onde soubesse que havia desavindos, fazia uma festa, promovia um banquete, fosse lá o que fosse, para os congregar.    Deixou, na Régua, essa tradição benigna.
O Padre Manuel Lacerda foi capelão dos bombeiros. Por isso o acompanharam, de bandeira enlutada, no último passeio. O Borrajo, porta-estandarte, ia a chorar…”


Embora João de Araújo Correia não o tenha confessado, o seu pai António da Silva Correia, solicitador encartado, republicano convicto, nascido nas Caldas do Moledo, foi um dos bombeiros da velha guarda. Tinha pertencido, por algum tempo, ao corpo de bombeiro, mas o seu porte físico não era compatível com a acção exigida a um bombeiro.


Como seu pai deixou guardou a farda de bombeiro e seus adereços no baú das recordações, foi aí que o escritor encontrou a inspiração para o recordar, comovidamente, em “Figuras de Barro - Os bombeiros” (In Manta de Farrapos - 1957),  publicado, originalmente,  no boletim “Vida por Vida”.


“Meu pai tinha sido bombeiro voluntário. Mas, dotado por aí de lenta agilidade, sempre meticulosamente pausado, é crível que as obrigações de bombeiro, subir e descer escadas, de agulheta em punho, em cima de um telhado, fossem incompatíveis com o seu eu, isto é, com o seu físico e o seu moral. Sei que pouco tempo foi bombeiro. Desertou do apito, mas continuou ou fez-se contribuinte. Foi-o até à hora da morte.
Da actividade bombeiril do meu pai, ficou em minha casa, durante algum tempo, uma recordação. Foram os botões, as charlateiras e umas insígnias do uniforme. O que brinquei, com estas maravilhas amarelas, meio oxidadas, só eu sei… O que não sei é como se perderam. Sei que foram, uma após outra, imitando o soldadinho de chumbo do conto prodigioso.
Mas, se o soldadinho de chumbo regressou, para fazer das suas, elas coitadinhas, não regressaram. Vivem apenas na minha memória, isto é, no passado, que se faz presente quando eu o chamo.
Sempre que brincasse com os botões, as charlateiras da farda do meu pai, dizia entre mim: o papá foi bombeiro. Dizia-o como se o tivesse visto fardado, em dia de grande gala, numa formatura resplandecente. Dizia-o por intuição das charlateiras, insígnias e botões meio oxidados, mas ainda áureos bastantes para suscitarem orgulho no cérebro infantil. Se tivesse visto o papá numa parada, com o capacete a arder, numa fogueira de sol, com certeza que a minha vaidade se teria tornado insuportável.
Um homem de luvas brancas, com machado de prata às ordens e a cabeça adornada com um elmo de ouro, não é um homem. É um semi-deus”.
Continua...

- Colaboração de J. A. Almeida - Régua para "Escritos do Douro".
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quarta-feira, 23 de março de 2011

Recortes: Régua, antes... Régua, depois...

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Real Companhia Velha - Atual Museu do Douro

Uma Sineta de Palavras

 A presença dos bombeiros na vida e obra  de João de Araújo Correia

“A associação é digna do meu zelo e até do meu sacrifício”
João de Araújo Correia


Quem teve o prazer de ler algumas das crónicas do escritor João de Araújo Correia sabe bem que o Douro, desde o humilde jornaleiro ao abastado proprietário, o seu rio dos barcos rabelos, os seus socalcos de vinhedos, onde se produz o vinho do Porto, foi o seu universo real e literário.

A vila da Régua -  como era ainda designada – e o concelho,  como lugar onde nasceu,  criou, viveu,  trabalhou e morreu, que chamou  de  “Pátria Pequena”,  serviram-lhe de inspiração e  pano de  fundo para escrever  uma grande parte das suas crónicas.

Da íngreme rua de Medreiros - a actual Maximiano de Lemos - onde teve a residência familiar  e um  frequentado consultório médico, João de Araújo Correia,  nas horas de repouso,  estendia o  olhar para a  montanha que lhe  ficava  em frente ao terraço, plena de luz  sobre  o casario de cal branca e os vinhedos fartos pela encostas de Loureiro, Fontelas e o Vale de Jugueiros, em Godim.

Em volta deste cenário gravitavam figuras sagradas do imaginário popular, como ele dizia, as “almas sem penas” do Santo Heitorzinho de Loureiro, do viticultor rico António Borges e do Dr. Mesquita, médico andarilho, enquanto o rio Douro se espraiava na curva da margem do Salgueiral. Se o olhar se deleitava com esta sua paisagem, muitas vezes lhe inspirava os seus pensamentos de cidadão atento e crítico, apontando os erros graves aos que estragavam este equilíbrio natural da sua terra.

Com frequência, o escritor e o cidadão apontavam o desagrado ao poder camarário pelos erros e as fealdades urbanísticas de uma terra que crescia atabalhoadamente, sem nenhum respeito pela preservação ambiental, a falta de asseio e limpeza das ruas e de qualidade de vida numa vila em que não havia uma escola do ensino público secundário, uma biblioteca para os espíritos mais inquietos, um hospital para as urgências médicas, nem sequer um jardim para as crianças brincarem e os mais velhos se refrescarem nas quentes tardes de verão da Régua.

Era assim, a vila Régua, por volta de 1913. A urbe que conheceu como criança durante o tempo em que frequentou a escola primária do mestre Zezinho e fez depois estudos secundários, até rumar para o Porto para, na Escola Médica, estudar medicina.

Alguns anos depois, em 1928, formado em médico, regressou para exercer clínica e fazer-se, por devoção, escritor. A Régua pouco ou nada tinha mudado. Estava quase igual como a tinha deixado, sem alterações de monta no seu espaço geográfico urbano, o que se via pelas mesmas casas e as mesmas ruas.

A maior diferença que notou estava na sua rua, a Rua de Medreiros - hoje Rua Dr. Maximiano de Lemos. Já não encontrou os moradores mais lustres, como o Sr. Silva, contínuo da câmara, o Dr. Zagalo, talentoso advogado boémio, a D. Pantalona, a Joaquina Pinheira, a Mariquinhas Taranta, cozinheira conhecida de Sol da Rua, o Zé Ruço e sua consorte Senhora Ritinha e o maluquinho Tanta-Rua, pregoeiro das festas e dos enterros, todos sumidos e de partida para o outro mundo.

Se o jovem médico encontrou algo diferente na vila do Peso da Régua, foram os bombeiros e a associação humanitária. Aí encontrou uma casa modelar no exemplo do altruísmo e coragem dos seus bombeiros.

Pelo contrário, nos bombeiros encontrou algo mais que um serviço de voluntariado. Os bombeiros eram uma força viva e dinâmica. Desde o seu princípio desejavam fazer mais que a protecção da vida e dos bens das pessoas. No seu edifício sede, no quartel guardavam os seus equipamentos para os incêndios, mas também havia lugar para as reuniões, o convívio social, a leitura e os jogos para quer fosse sócio ou tão só amigo dos bombeiros.

Essa movimentação cívica e cultural em volta dos bombeiros talvez tenha sido o bastante para, nos seus escritos, os aplaudir como cidadãos diferentes, pelos valores éticos e de cidadania activa. Esta era a verdadeira razão que os distinguia numa terra pacata, parada no tempo, sem que ninguém ousasse mudar este desinteressante estado de coisas.

A partir de certa altura, a Associação dos Bombeiros passou a ser motivo da sua atenção como mais ninguém o fez até aos nossos dias. Na verdade, poucos escritores haverá que se tenham lembrado de escrever sobre os bombeiros, de lhes conhecer os nomes, os seus sinais de fogo e tanto os elogiar. Aos bombeiros da sua terra, alguns dos quais conheceu, respeita-lhes os seus valores e mostra a admiração e gratidão pelo trabalho realizado em prole do semelhante, seja a apagar fogos ou a transportar doentes nas velhas e cansadas ambulâncias, a vangloriar o nível e a qualidade das suas iniciativas culturais.

São tantas e tantas as páginas de João de Araújo Correia em louvor dos bombeiros da sua terra, que poderíamos formar uma pequena antologia dedicada exclusivamente ao tema. Só quem conhece da história dos bombeiros da Régua – o que acreditamos ser assunto desconhecido a muitas pessoas -  está  habilitado a  perceber que as suas palavras não foram meramente laudatórias. Elas espelham a grandeza de uma instituição que, nascida da vontade popular, tem mantido há mais de cem anos  um trabalho permanente ao serviço da sociedade reguense.

Por outro lado, o escritor considerava os bombeiros, a instituição como tal, como um bom exemplo de uma sociedade civil que, ao contrário do ambiente geral, estava activa e dinâmica.

Na sua opinião, na vila da Régua tudo morria ao nascer, faltava o mais elementar para a vida de um cidadão, não ganhava sequer raízes. Identificando-se com os valores fraternais dos bombeiros, inerentes à sua dedicação ao voluntariado, não surpreende ninguém o seu humanismo, a cidadania e, sobretudo, respeito que nutria pelos mais fracos e humildes, aqueles que punham os seus talentos ao serviço da comunidade e do bem. É sabido que o escritor admirava os homens simples, generosos, altruístas e abnegados, no cumprimento de missões humanitárias.
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Inaugurada – para usar a palavra dos sócios fundadores - em 28 de Novembro de 1880, num difícil período da monarquia, a Associação dos Bombeiros Voluntários da Régua nasceu da vontade de um grupo de 27 homens generosos  que organizaram uma companhia de bombeiros voluntários para combater os incêndios nas casas e, sobretudo, nos armazéns de vinhos e aguardentes, situados na principais ruas da vila.

Quando ainda não se falava de uma protecção civil municipal, aqueles homens, com os seus quereres e inconformismos, lutas e êxitos, tudo fizeram para garantir o bem estar à sociedade reguense em situações de risco, como os incêndios, os acidentes e as temíveis cheias do rio.

O escritor João de Araújo Correia não encontrou, por acaso, os bombeiros. Teve a sorte de encontrar na sua infância, alguém da família que, para o entreter nas suas irrequietas brincadeiras, lhe deu os adornos de uma velha farda que tinha pertencido e sido usada pelo seu pai, António da Silva Correia (1869-1947), que tinha sido um sócio activo -  um bombeiro voluntário como hoje se diz -  nos primórdios da corporação, quando era comandada por Manuel Maria de Magalhães.

O seu pai, republicano por convicção, foi bombeiro, mas por pouco tempo. Como ele nos segreda numa crónica, faltava-lhe o jeito e a destreza física, o que o terá levado a desistir cedo do voluntariado, continuando, contudo, a mostrar os seus sinais de solidariedade e fraternidade.

Pode ter nascido aí esta afeição que ganhou aos bombeiros que o levou a construir no seu imaginário infantil uma auréola que nunca esqueceu. Mais tarde, numa fase adulta da sua vida, os bombeiros passavam a ter um estatuto de seres humanos fantásticos nas suas criações literárias, a quem chegou a comparar com “Semi-Deuses”.

A paixão desvelada com que os envolveu nos seus escritos não ficou pela admiração que guardou de criança e que guardou fielmente na sua memória. Acompanhando o seu pai, teve a oportunidade de frequentar no primeiro quartel dos bombeiros, situado ao fundo do Largo da Chafarica – hoje conhecido por Largo dos Aviadores -,  numa velha casa, uma modesta biblioteca. Aí os bombeiros guardavam as bombas e pouco material de combate aos incêndios e, no 2º andar, funcionava a parte social e recreativa, um clube frequentado por todos estratos socam e de diferentes credos políticos. Era um lugar franqueado aos sócios, beneméritos e amigos da instituição que se reuniam para conversar, jogar dominó, quino e as cartas, desfrutar a o prazer da leitura dos jornais nacionais e de algumas novidades literárias, que se encontravam num vistosa estante de madeira, se assim se pode chamar, uma pequena biblioteca pública.

Mais tarde, já médico de nome feito, e, consagrado como homem de letras, pelas suas obras “Sem Método” e “Contos Bárbaros”, haveria de publicar nas páginas do boletim “Vida por Vida”, órgão oficial dos bombeiros, entre 1956 e 1974, as suas crónicas que depois seriam coligidas no livro “Pátria Pequena” e ainda de subscrever alguns estudos e apontamentos linguísticos, inseridos no livro “Enfermaria do Idioma”.

E, sobre este boletim, na crónica “Diário da Régua” (in Pátria Pequena, 1958) fez uma breve alusão à sua existência como uma fonte de informação local, mas privativa dos bombeiros.

“Pode-se dizer que a Régua, há cerca de cinquenta anos, teve um diário. Hoje, com mais habitantes, mais edifícios, mais automóveis, publica um semanário. Não importa para o efeito, o nosso boletim, que sai mês a mês, nem sequer passou de boletim…É folhinha privativa de uma Associação de Bombeiros.”

As origens do seu livro “Enfermaria do Idioma” estão contadas numa crónica inserta nas páginas do “Vida por Vida”, onde deu conta do seguinte:

“A Enfermaria do Idioma inaugurou-se aí no Porto, na falecida Revista do Norte, no já recuado ano de 1955, ano em que nasceu, viveu e morre aquela tentativa de publicação literária estreme. Pode dizer-se que morreu ainda como anjinho, porque durou apenas doze meses.
(…)
A Enfermaria do Idioma não morreu com a Revista do Norte. Salvei-a… Peguei-lhe ao colo e trouxe-a para o Douro, para o boletim dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua. Aí viveu até ao mês de Agosto de 67. Não sei se ressuscitará.”

Já quanto às origens do livro “Pátria Pequena”, que tiveram lugar no mesmo boletim de informação dos bombeiros destinado a sócios, no prólogo desse volume, o escritor dava conta aos leitores do seguinte:

“As notas que constituem este livro foram publicadas, quase todas, sem o meu nome, no Boletim Vida por Vida.
Mas, que é isso do boletim Vida por Vida? Responderei a esta pergunta, que o menos curioso dos leitores me faça, dizendo que o boletim Vida por Vida foi órgão da quase secular Associação dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua.
Publicou-se entre 1956 e 1974.Depois, deu-lhe o tranglomanglo. Morreu em flor. Não chegou a dar fruto.
(…)
Compare-se com uma luzinha inocente o boletim Vida por Vida. Veio o tranglomanglo, com boca de raio e pernas de rã, e abufou-lhe. Deu o ar - como se diz, entre comadres, quando se fala de sopro ruim, inimigo do bem e da claridade.
As notas que lancei ao Vida por Vida foram variações de temas gratos à minha índole.”  
Continua...

- Colaboração de J. A. Almeida - Régua para "Escritos do Douro".
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