quarta-feira, 16 de março de 2011

AS BOLINHAS

A praia está, ainda, praticamente deserta. É uma manhã limpa com um sol já acariciante e uma saborosa envolvência de maresia. Aqui também há classes: de um lado, a área concessionada; do outro, a zona dos chapéus de sol. Na primeira, estão montadas as sombrinhas com as cadeiras reclináveis alugadas por bom dinheiro; na segunda, o preço é o carrego que cada um está disposto a transportar. Escolho, nesta, um espaço que não tenha de alterar pela preia-mar, espeto o guarda-sol, espalho as toalhas a delimitar território, liberto-me dos chinelos e da camisa. Vou até à orla, viro-lhe as costas, de frente para os prédios gigantes que se erguem como insultos de ganância, e comprazo-me com a babugem da ligeira ondulação a lamber-me os pés. As construções tipo legos, de traça usurária e sem decoro, são depósitos de corpos que aqui fazem a vingança quinzenal dos nevoeiros e das nortadas; alguém lhe chamaria arquitectura dos trezentos para dar lucros de boutique de shopping.

Lentamente, o areal vai-se enchendo. Uns, arrastando sobejos de sono, estendem-se, imediatamente, como sardões mal despertados; outros, esbaforidos pelo peso das tralhas, limpam o suor e, antes de se acomodarem, distribuem tabefes pela rezinguice infantil. Há de tudo: burlescos com óculos de esquiador, tias das revistas com panons transparentes e cosméticas burundangas, maternidades deliciosas que a tudo acodem sem um azedume, cabelos brancos que ainda não desistiram de usufruir a vida e transmiti-la à descendência, leitores de escrita light e de jornais desportivos, utilizadores de telemóveis com ares de executivos imprescindíveis ou de empresários sempre a facturar, gordas sem vergonha de libertarem as coxas e opostas de linhas geométricas limpando as areias como se fossem formigas.

Num súbito, a vizinhança da minha toalha inquieta-se: soerguem, uns, os cachaços do areal, despertam, outros, para uma montra apelativa, sorriem, elas, num jeito de brejeirice a dissolver o desdém, lançam, os mais entradotes, olhares nostálgicos. A aparição justificava o sobressalto. Há mulheres tão espectaculares que chegam a ser uma ofensa à inteligência: alta, sem exageros basquetebolísticos, cabelos longos, cor de libra Vitória, espalhados e deslizantes pelos ombros como sedalina, óculos de voleibol de praia numas faces trigueiras decoradas por duas argolas ciganas, busto voluntarioso de mamilos agulheados e defendidos por uma t-shirt justa que descia até a meio das coxas torneadas a fazer de mini-saia generosa, fita vermelha no tornozelo esquerdo que lhe dava uma ar jamaicano de prospecto turístico. O seu acompanhante, de paciência na cara e peso nas mãos, arvorava uma docilidade canina, ornamentado com um bordão no peito e um relógio todo o terreno. Enquanto ela ajeitava, a tiracolo, uma carteira tipo saco de flores tropicais, ele transportava um guarda-sol, duas cadeiras e uma bolsa de lona que lhe deve ter restado da guerra colonial. A beldade esticou uma enorme toalha rosa estampada com palmeiras, sentou-se, atirou, num desafio, a cabeça para trás, retirou os óculos (os olhos cintilaram esverdeados), passou os indicadores metódicos pelas sobrancelhas, tirou a t-shirt, e os seios, como molas, estremeceram de liberdade, numa provocação ao redondel, até se deterem firmes como dois ponteagudos marmelos. «Quem me dera ser bebé!», disse uma voz, «Cala-te, palhaço!», respondeu outra. O homem, depois de arranjado o poiso, pegou no tubo do creme e, num silêncio ruminante, começou a untá-la. Ela não falava, só lhe indicava com as mãos os locais onde queria o creme: mais nos ombros e nas costas. A cara, os mamilos, os braços e as pernas foi trabalho dela, em pormenor demorado. Terminado este, ergueu-se e foi até junto da ondulação lavar as mãos na areia. O seu andar era sensual como o corpo, com tudo no sítio, sem um acrescento ou uma diminuição, um fio dental a relevar umas nádegas afoitas e seguras, a respirar sexo por todos os poros. Tinha, todavia, um aspecto de súcuba, olhar esguelhado, que acompanhava sempre com um maneio da cabeça e das mãos a fingir que tirava as madeixas dos olhos. Fumava desalmadamente, soprando, pelo canto da boca, o fumo para cima, num trejeito de rufia de esquina, retirando as areias das pernas como se catasse piolhos. Estendida, de cigarro entre os dedos, puxou o guarda-sol para lhe aumentar a sombra e retirá-la ao acompanhante que continuou impávido diante das notícias da Bola.

Ao longe, por entre o amontoado humano, nascem os pregões dos vendedores ambulantes. Trazem, em cada braço, caixas de pasteis que propalam consoante a força das suas gargantas e o seu engenho publicitário. Uns, são incisivos: «Bolinhas!»; outros, mais enfeitados: «Boliiiiiinhaaaas!»; ainda outros, mais secos: «Boli!»; e os que soletram: «Há bolinhas com creme e sem creme! Há pasteis de amêndoa!» Os rapazes, ao chamamento, pousam os caixotes e distribuem bolinhas a torto e a direito a cem escudos cada uma. O calor vai apertando. As pessoas renovam unturas, passam os jornais a pente fino, também há quem leia Cem Anos de Solidão, estudantes preparam a segunda chamada, senhoras relaxam a fazer renda, discutem-se os milhões das transferências futebolísticas, arrematam-se as últimas amêijoas junto dos barcos dos pescadores.

Um Cabo de Mar e um Polícia, num roldão de apitos e vozes alteradas, investem pela praia num despropósito que confunde toda a habitualidade. Os banhistas espantam-se, pegam nas toalhas e interrogam-se, olham para o mar a ver se alguém está em dificuldade, o que será e não será, até se perceber, depois, que perseguem um vendedor em qualquer ilegalidade. Um dos cívicos, passo ligeiro, lança: «Àquele já lhe vou tirar as bolinhas!» Uma senhora, que fazia malha há uma eternidade e queria os netos sempre à sua volta, levantou-se da sua cadeirinha picada por um alfinete, deixou cair os óculos, e exclamou anelante: «Ó Senhor Guarda! O Senhor tem coragem de tirar as bolinhas ao rapazinho?!» O Senhor Guarda olhou-a, riu-se bondoso e prosseguiu o seu caminho, deixando um magote de risos encolhidos. A Avozinha fulminou-os, atrapalhou um sorriso atenuante, sentou-se, retomou a malha e afivelou a cara da boa fé injustiçada, enquanto a aparição, de mamas ao léu, levantava a juba e desenhava um trejeito malhadiço a lembrar uma preguiça sardónica.
- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui.
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em Adobe Photoshop e PhotoScape e poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

domingo, 13 de março de 2011

O meu gato

O meu gato sabe mais do que eu sobre a felicidade.
Percebi, ao ler um entendido, que a felicidade de um gato não se faz por adição - a adição de novas experiências, de  novos lugares, de novos objetos ou até de  novos amores.
Ao contrário de mim, o meu gato vive cada momento de uma forma completa e total.
Nós vivemos sempre carregados de passado ou de futuro, do que fomos ou seremos mas sempre com a certeza que a morte nos espera.
Nós vivemos quase que sempre fora do presente... Por isso, não temos tempo para ser felizes. 

Quem sabe, diz que a felicidade dos gatos faz-se por repetição. Eles repetem o que lhes é mais significativo.
Acreditem, que eu passo horas a olhar para os dias felizes do meu gato. Se calhar, já aprendi com ele mais do que nos meus livros de direito e de filosofia.
Agora, sei porque gostava de uma gata de amiga que há anos conheci. Gastava todas as manhãs de sol luminoso, a passear sossegadamente pelo  muro de pedra de um quintal abandonado, como se aquele fosse o lugar onde tudo lhe podia acontecer.
Afinal, o lado feliz da vida estava ali: não era preciso mais nada para, aquela gata (loira), ser feliz.
Moral da história: Um dia gostava de ser como o meu gato.
- José Alfredo Almeida, Março de 2011. 

sexta-feira, 11 de março de 2011

LAGAR DA MEMÓRIA de M. Nogueira Borges - CONVITE para 12 de Março

As páginas que se seguem são recolhas de alguns anos de vida guardadas no Lagar da (minha) Memória. Nasceram, como as uvas da PÁTRIA DURIENSE, de cepas de várias castas, idades e lugares. Umas têm o benefício da Região Demarcada, outras, os transcursos citadinos e africanos. Nenhuma delas rejeito: nem a doçura amadurecida, nem o amargo fora de época. (in “Apresentação”).

É a vida do Douro, as vidas à volta das vinhas e dos campos, dos fraguedos e dos socalcos, um cheiro a lagar ubérrimo e escravizante que salpicam o leitor ainda fiel às águas de uma pátria sempre rude para aqueles que não a foram abandonando. Tal como o autor.

 LAGAR DA MEMÓRIA de M. Nogueira Borges
CONVITE

A Mosaico de Palavras Editora tem a honra de convidar V. Exª e Família a assistir à apresentação da obra LAGAR DA MEMÓRIA, de M. NOGUEIRA BORGES, que irá decorrer no próximo dia 12 de Março (Sábado), pelas 15 h, na Casa-Museu Teixeira Lopes, 32, Vila Nova de Gaia (perto da Câmara Municipal de Gaia). Apresenta a obra o Dr. Armando Figueiredo.
(Clique nas imagens para ampliar)
Alguns trechos do "Lagar da Memória" transcritos no Escritos do Douro.


Pedidos/compra poderão ser feitos desde já diretamente à editora MOSAICO DE PALAVRAS, via net (http://mosaico-de-palavras.pt/product.php?id_product=101) ou através de Elvira Santos - geral@mosaicodepalavras.com com pagamento por transferência bancaria, ou ainda por meio de envio à cobrança.
Preço - 15,00€.
MOSAICO DE PALAVRAS EDITORA, LDA
RUA COMENDADOR ANTÓNIO AUGUSTO SILVA, 127 - R/C, 4435-191 RIO TINTO -PORTUGAL.
Telefone fixo - 224801761; Telefone móvel – 963678534

Escrever nas águas do meu rio

(Clique na imagem para ampliar)

QUASE

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe d'asa...
Se ao menos eu permanecesse àquem...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dôr! - quási vivido...

Quási o amor, quási o triunfo e a chama,
Quási o princípio e o fim - quási a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
- Ai a dôr de ser-quási, dor sem fim... -
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos d'alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ansias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num impeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol - e fôra brasa,
Um pouco mais de azul - e fôra além.
Para atingir, faltou-me um golpe de aza...
Se ao menos eu permanecesse àquem...

Sobre uma fotografia de Miguel Guedes, o rio Douro, pasmado com a beleza da paisagem, tem ao fundo a Régua adormecida no calor de uma melancólica tarde de verão. Com a Régua perto do olhar e no pensamento, este poema “Quase” de Mário de Sá-Carneiro, in “Dispersão”.
Na nossa vida, as vezes, falta o tal golpe de asa… para chegar a este infinito Azul.
- José Alfredo Almeida, Março de 2011 para Escritos do Douro.