quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

OS FRONTEIRÓMETROS - 2


No primeiro dia em que assumiu o comando do pelotão, João, dentro da farda de trabalho verde azeitona, sentiu o sangue a bulir e uma tremura nas pernas. Olhou aqueles rostos que lhe lembraram os seus antigos companheiros da Primária, jurou que nunca os enganaria, mas, para sua defesa, não seria fraco nem os deixaria fazer o que lhes apetecesse; sabia já que o paternalismo humilha mais do que a frontalidade. As ordens de comando e as continências encheram-no de vaidade, um orgulho contido. Recordou o seu Aspirante de Mafra, o Matos, meio careca, peito inchado, andar de Academia Militar, que parecia ter um prazer sádico sempre que, por tudo e por nada, castigava um Cadete com vinte flexões. Só lhe copiaria o que aceitara.

Calhou-lhe o segundo pelotão da terceira Companhia. Os restantes ficavam para o Ãngelo, o Ornelas, o Fonte e o Baptista. Comandava-os o Capitão Pedrosa, um minhoto bonacheiro, que se relacionava com os seus milicianos sabendo a diferença entre o voluntário e o obrigado, mas, sem esquecer regulamentos. Quando, numa reunião de gabinete, ele lhe disse «olhe que os seus homens têm o cabelo comprido além das
normas», não esteve com meias medidas. Na manhã seguinte convenceu todos a irem à máquina zero. Tiraram depois uma fotografia e mandou revelar as suficientes para dar uma a cada um. A partir daí o pelotão do João passou a chamar-se os carecas.

A Instrução, entre a teoria e a prática, era-lhe fácil e agradável. O que o haviam forçado a fazer no velho Convento-Quartel, de uma dureza que achara de um exagero dispensável, dava-lhe, agora, segurança e à vontade. Levado talvez por essa experiência – ou desculpando-se intimamente com ela - e reconhecendo nisso alguma perversão, em certos momentos forçava os limites como se experimentasse a aceitação das próprias e alheias capacidades; era a fruição da vicissitude contrária. Entre treinos de ordem unida, à disputa a ver quem marchava melhor; sessões de ginástica no campo de obstáculos com rastejares, saltos e subidas a tudo que existia e cross semanal até à Curalha; sessões de tiro e desmontares e montares de culatras e limpezas de armas; encenações de assaltos, emboscadas, cercos e nomadizações pelas serras circundantes, de dia, e variadas ocasiões de noite, a vida consumia-se na ilusão de que tudo se aprendia para uso nos matos africanos.

Ao toque de ordem, corpos lavados e civis, o grupo transpunha os portões e desandava para a cidade, o carro a abarrotar, cabendo sempre mais um, gasolina a meias. Parecia o recreio ambulante de um bando de colegiais. Ora no Aurora, ora no Sport, comia-se um bolo e bebia-se um pingo, a enganar as horas para o jantar, metiam-se com as raparigas, percorriam as ruas como pássaros fugidos da gaiola, ou iam ao Açude espreitar a fronteira, uma tosca cancela no meio da estrada. Depois do jantar, se o serão televisivo espanhol não os pregasse aos sofás, voltavam para, a pretexto de um café, cimentarem os conhecimentos femininos que as suas fardas despertavam.

Uma noite de muito calor, foram ao Alto da Forca, onde, em séculos passados, dizia a lenda e a história, se condenavam os insubmissos da ocupação Romana. Constara-lhes que lá haveria uma quermesse a que se juntou a curiosidade do lugar, ou talvez fosse apenas uma daquelas idéias que surgem por não haver outras... Puxaram a capota para trás, a brisa a acariciá-los, excitados pela originalidade. Percorreram as barracas, apostaram sem resultado nas panelas, e ficaram, depois, encostados ao carro, a música dos alto-falantes a cobrir-lhes as palavras, as luzes da cidade cintilando como reflexos das estrelas.

Quando se dispunham a descer, o Bandeira pediu para dar «uma voltinha até lá abaixo». O Ângelo e o Antão foram para o assento traseiro, enquanto ele, de fora, a acabar um cigarro, lhe indicava como funcionava a chave de ignição, as mudanças, essas coisas. Uns segundos depois, num assombro de quem não acredita no que vê, o Opel Olimpia ganha velocidade inusitada para o terreno sulcado, o Bandeira, lívido, a gritar «João!, esta merda não trava!», ele a berrar-lhe que devia estar a carregar na embraiagem, correndo monte abaixo agarrado à porta, quase arrastado (o Antão e o Ângelo já tinham, entretanto, saltado para o chão, como se o fizessem de um Unimog em andamento), o carro sempre a deslizar, «puxa o travão de mão, caralho!», «onde
é?!», «à tua direita! Não vês? Olha aí! Puxa essa merda para cima!», o carro sem comando, ele enfiando a mão para virar o volante para a esquerda a fim de cortar o sentido do declive, esbaforido, em pânico, a pedir-lhe para parar com aquilo, até que, sem explicação, o automóvel, após uns solavancos, como se fosse abaixo, quedou-se mansamente. O Ângelo e o Antão, lá em cima, um pouco distantes, riam às gargalhadas, o Bandeira, com uma palidez que nem a noite escondia, saiu e sentou-se num montículo e o João lançava carvalhadas agarrado ao volante. Estiveram assim uns instantes, sem fala, anestesiados pelo estupor. João deu ao dimarré, deixou descair um pouco e experimentou o pedal do travão. «Com que então esta merda não trava? Rais te parta, nabo do caralho! Podíamo-nos ter fodido todos lá em baixo!» Fecharam a cobertura, tal quem esconde uma vergonha, e regressaram ao Batalhão.

Costumavam, antes de se deitarem, juntar a farda e as botas da Instrução nas cadeiras ao fundo das camas, para de manhã, sempre apressados, ser mais rápido enfiá-las. O quarto, com janelas para a Parada, era amplo, mas, com poucos cómodos de arrumação. Quiçá os tivesse, eles é que não sabiam aproveitá-lo... Aquilo era sempre uma desarrumação: botas para um lado, calças e quicos para outro, às vezes tudo espalhado pelo chão, já não se sabendo a quem pertenciam as coisas, só as escovas dos dentes tinham certeza de posses. Nessa noite, ainda a imagem do carro a ir por ali abaixo, mal refeitos do susto, a tarefa estava complicada. Ao grito do Bandeira «onde estão as putas das minhas botas? », o João, procurando, também, as suas debaixo das camas todas, respondeu «estão no Alto da Forca!». Resmungo para aqui, alvoroço para acolá, demorado o acerto de par daquelas e das roupas, João berrou «esta merda não é
um quarto, mas um abarracamento!». Desde aí, por galhofeira e unânime concordância, o quarto passou a ser o abarracamento 12.

Em alguns fins de tarde gastavam o tempo, antes do jantar, a jogar futebol. Faziam-no no mini-campo de terra batida, escavado entre taludes arborizados, desfazendo-se em suores por uma bola de catechu. Eram partidas renhidas com muita canelada pelo meio e off-sides inventados para anular golos inconvenientes. Numa dessas discussões de é falta não é falta, João pareceu ver, no alto do morro, o Luís, um Aspirante da Academia que conhecera em Mafra em circunstâncias de cumplicidade e que não esquecera. Fixou o vulto, foi-se aproximando, ele acenou-lhe, e, já sem dúvidas, correu a abraçá-lo. Não havia dúvidas, no Batalhão de Caçadores 10 só tinha alegrias: criava e recebia amigos!

A meio do seu curso apareceram pela Escola de Infantaria, para tirocinarem, alguns jovens Oficiais do Quadro, acabadinhos de sair de uma fornada da Academia Militar. Olhando-os, assemelhavam-se a visionários duma juventude que acreditava num desígnio patriótico, voluntários entusiastas de uma crença forjada nos princípios da honra e da disciplina. Militares por opção, não haviam perdido, contudo, a fraternal generosidade da condição humana. Uns, forçando mais o rigor militarista que o ensino académico lhes incutira, outros, mais libertos para a tolerância que o carácter lhes pedia. O Luís era um destes. Tinha um rosto comparte que não precisava de fingir dureza para se fazer aceitar. Talvez essa a razão para a empatia que os uniu. Não eram habituais as confianças entre os Cadetes e a Oficialidade, mesmo que recente. Obrigavam as distâncias não só as inflexíveis teorias regulamentares, mas, também, o exercício de uma rotina sistemática em que se incorporava, quase instintivamente, um sentimento reactivo de defesa à confraternização com as graduações inferiores; assim o impunha a lógica militar, indiscutível nos seus fundamentos, como se de outro modo não subsistisse. Já o conhecia de muitas noites, ao recolher, se lhe apresentar com a dispensa na mão. Um fim de tarde cruzaram-se no terreiro em frente do Convento, ele fardado, o Luís à civil. Fez-lhe continência e, para sua surpresa, ouve-o: «Isso é lá dentro. Amanhã já vamos ser iguais. De onde és?» Foram os dois para a Ericeira, desfiar as suas origens vizinhas, gostos e passados, combinando futuras viagens conjuntas de fim de semana. Desde então, sempre que o via, entre muros, num daqueles medonhos corredores ou à porta de armas quando em serviço, João fazia questão, perante quem os visse, em ostentar-lhe a sua obediência militarista, formulando-lhe continências escrupulosas, trocando olhares e sorrisos coniventes.

Era esse Luís que agora reencontrava sempre igual, sempre como iguais. Com ele o grupo ganhava um novo e inseparável aliado, um companheiro inseparável.

O Boaventura, que aguardava há bastante tempo a mobilização para uma colónia, era, de entre todos do grupo, o de maior antiguidade e, como Tenente do Quadro, comandava a Companhia da Formação. Uma noite chamou-os e disse-lhes:

- Amanhã chegam meia dúzia de Aspirantezecos novos e vamos praxá-los!
- Vai ser bonito... – deu-lhe para dizer o Antão.
- Ai, vai, vai... Pedem-se sugestões...
- Mandamo-los fazer umas flexões e uns abdominais a seguir ao jantar... - alvitrou o Fonte.
- É pouco.
- Espera! - jubilou o Bandeira -, damo-lhes uma sessão de aplicação militar.
- Não me importo de ser eu a dá-la – ofereceu-se o Ornelas.
- E se fosse um quarto de sentinela? – alvitrou o João. – Falávamos com o Silveira que vai estar amanhã de Oficial de Dia e avisávamos o Sargento da Guarda.

O Altino e o Ângelo só se riam, antevendo as cenas.

- Bom, já estou a ver que não vamos a lado nenhum! Vou decidir eu como comandante desta merda e acabou-se! Preparo-lhes uma ordem de patrulha nocturna à Casa Amarela, precedida de meia hora de obstáculos, e tu – virando-se para o Ornelas – é que vais, então, com os maçaricos.

No dia seguinte, depois de jantar, procedeu-se rotineiramente. Uns tomavam café ou liam os jornais, outros viam televisão ou tomavam conta da mesa do bilhar, outros, ainda, jogavam aos dados, aparentando naturalidade, incumbindo-se de enquadrar no ambiente os, algo inibidos, recém-chegados. O Ornelas tinha ido vestir a farda de feijão verde e o Boaventura avisar o Silveira e o Piquete da Guarda do que se preparara, assim como fardar-se a rigor.

- Atenção meus Senhores! – bradou ele, voz forte, cara dura, mal entrou na sala. – Os nossos Aspirantes acabados de chegar, fazem o favor de se juntarem neste lado – apontando o espaço entre o balcão do bar e a mesa de bilhar. – Há alguém cujo nome comece por A?
- Meu Tenente, eu chamo-me Alves, não sei se...
- Já vi que não... A partir de agora o nosso Aspirante Alves passa a ser o responsável por vocês. Quantos é que são? Um... dois... três... seis! Consigo sete! Muito bem! O que é que se passa, ou antes, o que é que se vai passar? – O Fonte e o Altino mais precoces na incapacidade de suster o riso saíram. – Os nossos Aspirantes – prosseguiu o Boaventura - acabam de ingressar numa Unidade de elite... É costume, sempre que aqui se apresentam Aspirantes Milicianos ou do Quadro, testá-los na sua resistência e sofrimento para ver até que ponto têm, ou não, capacidade para pertencerem e dignificarem a história deste Batalhão, cuja divisa é fronteiros de Chaves sempre excelentes e valorosos. Além de que isto não é para copos de leite ou azeiteiros! – Fez uma pausa a observá-los. - Assim, como o podem atestar os Aspirantes mais antigos que, também, já passaram pelo mesmo (era mentira...), a prova de resistência consta de duas partes: uma interna e outra externa. A primeira é uma sessão, breve mas exigente, de aplicação militar e a segunda, mais demorada, um patrulhamento a um dos alvos mais perigosos das inóspitas redondezas. Têm dez minutos para irem aos vossos quartos vestir as fardas de instrução e apresentarem-se lá fora no átrio. – Os sete puzeram-se a olhar, incrédulos, uns para os outros. – Está a contar o tempo! O último a chegar paga vinte flexões! – berrou, ríspido, já eles, em corrida, subiam as escadas.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

OS FRONTEIRÓMETROS - 1

Quando, na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, lhe entregaram um impresso para indicar três Quartéis onde gostaria de ser colocado, depois de terminado o Curso de Oficiais Milicianos, o soldado cadete João coçou a cabeça e pediu para entregar aquele no dia seguinte. De noite, na caserna, depois da instrução nocturna, enquanto o sono não se apresentava, magicou no caso. Tinham de ser terras onde houvesse Destacamentos de Infantaria. Porto foi logo a sua prioridade. De lá tinha sido arrancado, o curso de Economia no início, e gostaria de regressar à velha cidade granítica, mesmo que por escasso tempo, pois, sabia-o, mais tarde ou mais cedo, abalaria, num barco qualquer, para uma frente da guerra colonial. Era uma circunstância sentimental, uma maneira de regressar aos velhos lugares, embora com uma farda. A segunda hipótese levou-o a Vila Real, onde, em tempos, no 13, o seu Pai cumprira a obrigatória servidão militar. Seria interessante pelo simbolismo e, como ficava a escassos quilómetros de casa, podia, até, ir e vir todos dias, excepto aqueles em que a Ordem de Serviço o colocasse na escala. Mais difícil foi acertar com a terceira opção. Excluída Lamego, não coadunável pela sua especificidade, além de não estar fadado para Ranger ou travessias de rappel, sobrou-lhe Chaves. Nesta cidade raiana, na década de sessenta, quadra em que esta narração decorre, localizava-se o Batalhão de Caçadores Especiais 10, com o epíteto de fronteiros de Chaves, sempre excelentes e valorosos, unidade com fama de dura e rigor militarista, tanto na corporação castrense como nas margens da sociedade civil que, de algum modo, lá tiveram ou tinham familiares. João, também, não o ignorava, mas devia completar o quadro das três preferências, sempre confiante que, se não lhe satisfizessem a primeira, a segunda, ao menos, não lha recusariam. Com essa esperança fez as malas e partiu para casa, mal lhe deram a bicha de Aspirante, a aguardar futura ordem de marcha. Pouquíssimos dias depois, com um indisfarçável sorriso e sem espanto – que, das coisas militares, ele já de nada se admirava - , o carteiro entregou-lhe uma carta onde vinha a convocatória do Exército para se apresentar em Chaves.

Numa reluzente manhã domingueira de Julho do ano de sessenta e seis, ao fundo de uma frondosa Avenida, em meia-lua espaçosa, viu o seu novo destino, admirando-se por, logo à primeira vista, dele ter gostado. Saiu do automóvel emprestado pelo Pai, correspondendo, ufano, à apresentação de armas do sentinela, e solicitou esclarecimentos ao Sargento da Guarda. Se pelo brilho do dia, pelo descanso da incógnita acabada, ou a frescura do edifício, foi satisfeito que estacionou o carro no parque, fez as apresentações ao Oficial de Dia, arranjou quarto, pousou a mala e percorreu, sozinho, as divisões da sua nova casa. O Quartel, reverberando ao sol, fazia-lhe esquecer a soturnidade conventual da Escola Mafrense, que, em depósito de meio ano, sempre lhe lembrara penitências de castrados fradescos, cumprindo, envoltos na escuridão, martirológios irracionais. Agora tinha, apesar da sua condição de milícia forçado, o calor e a brancura de um espaço que o aprazava. Mal ele sabia, infante ingénuo e generoso, que dentro daqueles muros, com um punhado de iguais, cozeria, no seu mais feliz período militar, o alimento puro e belo da amizade perdurável.

Em posição altaneira à cidade, como se velasse pelas suas gentes, costas defendidas pela Serra Amarela que se estendia, numa esquerda longínqua, para se grudar à cordilheira Castelhana, o Batalhão tinha uma ampla Porta de Armas, acedendo-se ao Comando e respectiva Messe de Oficiais através de uma escadaria bordejada por canteiros de verdura ou por dois curvilíneos arruamentos empedrados subindo ligeiramente. Atrás daquele, uma enorme Parada, impecavelmente limpa, com as casernas laterais, e, no cimo de uma pequena elevação cimentada, o Refeitório das Praças com a Messe de Sargentos ao lado. Depois do almoço, João desfardou-se e resolveu dar uma volta pela velha urbe onde Trajano deixara história. A apresentação ao Comandante da Unidade, dos Aspirantes esperados, seria feita na manhã seguinte, assim como a atribuição das tarefas futuras. Desceu a pé a Avenida que subira de manhã; passou no largo, onde, todos os anos, se amontoavam os feirantes da festa dos Santos; desaguou no jardim do Tabolado, em frente ao Liceu, e entrou no Aurora. Sentou-se, pediu um café, mirou e remirou o ambiente. Numa mesa do canto, escutado por uma tertúlia de catecúmenos, viu Nadir Afonso, que conhecia dos suplementos literários, de barbas grisalhas, provavelmente em vilegiatura flaviense. Reparando, descuidadamente, num jornal abandonado em cima do balcão, levantou-se, pegou-o, perguntou «Posso?», ressentou-se e, afastando a chávena, abriu-o sobre a pequena mesa redonda: era o Notícias do Tâmega. Sobre ele se debruçou, fingindo compenetrada inculca, mas reparando sempre em quem saía ou entrava. Deixou-se estar um bom bocado, pernas cruzadas, queimando cigarros. Eram bonitas as raparigas de Chaves... Depois, desceu a Rua de Santo António, virou à direita para as Termas, visitou a zona dos balneários cheia de aquistas que se amornavam nos bancos a fazer horas para a ração da água, retrocedeu para a Ponte Romana, sob a qual um Tâmega estival corria serenamente para a lonjura do mar, e reiniciou o trajecto ao contrário junto do posto da PVT. Os domingos não são bons dias para se perceber uma cidade, ausentes as rotinas, as surpresas e o nervosismo do quotidiano utilitário, mas pareceu-lhe – confirmado pelos meses seguintes - que Chaves era uma cidadezinha aconchegada, de conhecidas vizinhanças, limitada pelas faldas dos serros circundantes, onde, contudo, fervilhava um próspero comércio e um tolerado intercâmbio fronteiriço, um sopro suave e morno de fraternidade embrulhado num orgulho regionalista.

Quando regressou ao Quartel, deu, num abraço de risos e brados, com o Bandeira, seu antigo companheiro do Brotero, agora reencontrado em outra sorte. Pela noitinha, quanto viam a RTVE na sala da Messe, juntaram-se-lhes, vindos do Porto, entre outros, o Altino e o Ângelo que, feitas as apresentações, vá-se lá saber por que resultado afectivo, logo combinaram ficar no mesmo quarto de quatro camas e que tinha o número doze. João sentia necessidade de partilha, como se procurasse almas gémeas em que confiar. Boa parte da noite passou-se no desenrolar das experiências mútuas, numa pressa de conhecimento que selasse um pacto.
Continua...

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Para sempre... nas Caldas do Moledo

Na última vez que  passei pelas Caldas do Moledo percebi que nunca ousei partir deste lugar único.

Para sempre, fiquei a morar nele num tempo que não existe e não me pertence mais. Foi ficando neste meu lugar, junto às antigas margens do velho rio Douro, que só só existem do que ficou do meu passado. Como o tempo, um rio novo rio tudo mudou e submergiu o mundo em volta da imagem que ficou guardada no postal. Aquele velho balneário termal que foi lugar de muitos banhistas à procura de curas para os padecimentos do corpo e minhas inocentes brincadeiras, ficou também para sempre no fundo das água, sem que ninguém tenha ousado mudar-lhe aquele seu destino. Como também não mudamos nada do nosso, deixamo-nos submergir nas correntes da vida e sem vontade de ousar partir para novos destinos e de  fazer do que resta da vida um sonho feliz.

Fomos ficando aqui para sempre, submersos ao fluir vida e a uma paisagem única e inesquecível. Hoje sei que se tiver de sair deste lugar  tenho de entrar pela escuridão da noite adentro para procurar o lugar certo em que perdi o futuro.

Dizem por aí, que  tu sabes... que te foi contado em segredo, numa noite de chuvas e trovoadas, na  casa de  uma velha cartomante que o descobriu  num baralho de cartas.

Não sei se é verdade e se acredite no que dizem as cartas sobre os destinos da vida e os nossos futuros. Mas, quando faço um balanço do que vivi recordo para mim o que disse um escritor acertadamente: «Sou a criança que queria manter a ilusão e, ao mesmo tempo, o velho ciente de que tudo tem preço, tudo tem fim», como se pode ler na página 225 do seu romance "A Amante Holandesa". Como se fosse um personagem da vida, também eu fui ficando... neste meu lugar, junto às antigas margem do rio Douro que só existe em memórias, velhos postais que resistiram ao tempo e no que eu arquivei do meu passado.

Olha, apetece-me consultar a tua cartomante. Talvez só ela saiba mesmo se ainda por aí existe algum FUTURO...!
- José Alfredo Almeida, Peso da Régua, Fevereiro de 2011. Clique na imagem acima para ampliar.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

O Nosso Dr. Zagalo

 Por João de Araújo Correia
  
  Sempre supus que todos os Zagalos fossem de Ovar ou procedentes de Ovar. Com esta suposição, metida no toutiço, perguntei ao Dr. António Maria do Couto Zagalo, médico lamecense, falecido em 22 de Dezembro de 1975, se os Zagalos de Lamego tinham que ver com os de Ovar.

- Sim, senhor... Descendem do Dr. António Pereira Zagalo, que veio de Ovar exercer clínica em Lamego.

Fiquei satisfeito com esta informação. O meu informador, neto paterno do Dr. Bernardino Zagalo, bateu certo. Não fantasiou a hierarquia...

Vim a apurar, com mais precisão, que o Dr. Bernardino Mesquita do Couto Zagalo, natural de Lamego e reguense adoptivo, era neto paterno de António Pereira Zagalo, nascido em Ovar em 1789, doutorado em Coimbra em 1818 e falecido em Lamego no dia 21 de Janeiro de 1863. À parte o exercício clínico, dedicou-se às Musas com tanta felicidade, que lhe deram voga.

É crível que o neto, o nosso Dr. Zagalo, tenha herdado do avô a vocação literária. Bernardino Zagalo obedeceu a esta vocação como contista, cronista, romancista e autor de uma peça de teatro intitulada O Heitorzinho. Ser escritor na Régua, sem emulação literária, própria dos grandes centros, foi meter em África uma lança de papel.
Tornemos a Ovar e aos Zagalos de Ovar. Sabe-se que Júlio Dinis, nascido no Porto a 14 de Novembro de 1839, teve em Ovar uma tia paterna, D. Rosa Zagalo Gomes Coelho. Irmã de seu pai, usou o apelido Zagalo, ao passo que o irmão, pai de Júlio Dinis, o não usou. Seria também Zagalo ou não seria Zagalo?

Não é demasiada fantasia imaginar que o nosso Dr. Zagalo, nascido em Lamego, a 27 de Agosto de 1851, teve seu parentesco, de sangue ou por afinidade, com o inocente Júlio Dinis. Ele, que não foi nada inocente...Foi uma escie de sátiro. Mas, se lhe giraram no sangue, demasiado rubro, alguns pálidos glóbulos dionisianos, terão estes influído na sua vis literária? Sa­be-se lá...

O que toda a gente sabe, ou deve saber, é que o Dr. Zagalo foi um apaixonado amigo da sua terra adoptiva. Amou-a como sonhador e sacrificou-se por ela como homem enérgico. Deu-lhe muita canseira a criação e manutenção daquilo a que chamou Parada Agcola.

A Régua deve-lhe homenagem.

Mas, talvez nem saiba que o Dr. Zagalo faleceu aqui, no Largo dos Aviadores, a 7 de Maio de 1923, e que foi sepultado no cemitério de Cambres.
Natural de Lamego, reguense adoptivo, foi sepultado no lindo cemitério de Portelo de Cambres. Porquê? Teria ali jazigo? Seria: dali natural sua primeira mulher, D. Hortênsia Teixeira Leomil? É o que falta apurar.

Notas:
1- Esta crónica encontra-se publicada no jornal O Arrais (1979), assinada com o pseudónimo de Joaquim Pires.
2- A fotografia do Dr. Bernardino Zagalo está publicada na revista Ilustração Portuguesa, de 1916. Os dois livros do Dr. Bernardino Zagalo, cujas capas aqui se mostram, pertencem a uma biblioteca particular. 
Colaboração de J. A. Almeida para "Escritos do Douro" em Fevereiro de 2011. Clique nas imagens acima para ampliar.