quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

O actor que foi bombeiro

Na Régua, são conhecidas duas casas de espectáculos.

A mais antiga é o Salão Recreativo Reguense, ao cimo da Rua da Vareiras (hoje Rua Custódio José Vieira). Está inactivo há muitos anos, mas o edifício preserva intacta a beleza arquitectónica do passado.

A outra é o abandonado Cine -Teatro Avenida, perto do Quartel dos Bombeiros, que se desfaz em ruínas, esperando, como no tempo em que havia filmes, um fim menos inglório.

Antes destas casas, em tempos recuados, existiu um Teatro que funcionou numa casa situada ao fundo da rampa João Macedo, hoje Rua 1.º de Dezembro.

Desse primeiro Teatro da Régua, não se fez ainda a sua história. O que se conhece está escrito no livro “História da Vila e do Concelho do Peso da Régua”, que nos deixou José Afonso de Oliveira Soares e nas crónicas do escritor João de Araújo Correia.

Do que eles escreveram sobre o primitivo Teatro, uma conclusão se pode tirar: era um teatrinho modesto, fundado por (actores) amadores, que não envergonhava a terra. Foi palco dalguns dos mais importantes actores profissionais.

Quando se abriram as suas portas, ao público, nada se sabe com certeza e rigor. Como não se sabe quantos anos esse Teatro manteve, com carácter de permanência, uma actividade recreativa e cultural.

O que está historiado é que esse Teatro foi atingido por uma das piores cheias do rio Douro, a tenebrosa cheia de 1860. As águas galgaram as margens, inundaram as ruas principais e chegaram às habitações da zona ribeirinha, onde se localizava o edifício. A força das águas destruiu-lhe os cenários, o palco e o telhado.
Conta Afonso Soares que o rio Douro, no dia 26 de Dezembro de 1860, “subindo muitos metros acima do nível ordinário, submergiu o teatro, do qual foi necessário amarrar o telhado para não ir na corrente como alguns outros”. Começou rigoroso o inverno de 1860, recorda Afonso Soares, para descrever a intensidade das águas que “fez engrossar o rio à altura de 24 metros aproximadamente acima do seu nível de estiagem”. Foi uma cheia que causou grande tragédia, provocou avultados prejuízos, nos bens e haveres, fazendo viver intensos dramas e múltiplas angústias.

Durante bastantes anos, a população da Régua ficou sem o seu Teatro. O edifício manteve-se fechado, a aguardar obras e a boa vontade de gente caridosa. Os reguenses deixam, assim, de assistir às representações das companhias que se deslocavam pelo país.

O Teatro só não desapareceu, definitivamente, porque dois beneméritos, António Pereira de Matos e o Padre Luís António Frias, decidiram reconstrui-lo para que uma companhia dramática espanhola, em tornée pelo país, pudesse representar para o público reguense, grande admirador de teatro.

A companhia espanhola era formada por artistas razoáveis, mas tinha dois actores a Joanita e o Adolfo Eulálio Pauman, que se distinguiam pela figura e boa interpretação que emprestavam aos papéis.

No seu livro, Afonso Soares revela admiração pelo actor Adolfo Eulálio Pauman. Além  dos elogios que lhe dedicou, fez-lhe o retrato para figurar numa página dedicada às casas de espectáculos.

Sobre o actor espanhol, o comandante Afonso Soares conta-nos como ele  soube conquistar o coração dos reguenses e que, após um mês de representações, não seguiu com a sua companhia, na tornée,  mas ficou a residir na Régua.

Chega a contar-nos que o actor foi bombeiro da Régua…!

Os arquivos dos bombeiros não guardam memórias desta tão ilustre personagem. Ninguém se lembra de haver registos da sua incorporação. Mas, o testemunho de Afonso Soares merece-nos credibilidade, já que o autor da História da Régua, nos primórdios da fundação da associação dos nossos bombeiros, tinha sido seu comandante (1892-1927). No exercício desse nobre cargo, é possível que o tenha admitido como sócio-activo, isto é, bombeiro e, por ser uma personalidade insigne, não deixou de o recordar.

Esta revelação de Afonso Soares é uma informação preciosa para a história dos bombeiros da Régua que, por descuido ou falta de atenção, ignorava que esta ilustre personagem tivesse sido bombeiro.

Do bombeiro Adolfo Eulálio Pauman não existem provas de que tivesse apagado fogos, nem que tivesse gestos de heroísmo. Seriam úteis esses pormenores, mas não acrescentariam nada ao exemplo de altruísmo e  generosidade que demonstrou ao alistar-se na corporação. Se no palco do primeiro Teatro da Régua foi um actor deveras aplaudido, no palco da vida brilhou como bombeiro dedicado em socorrer os reguenses.

O que sobre ele escreveu Afonso Soares chega para podermos imaginar um famoso actor que, ao som do sino da Capela do Cruzeiro - os primeiros sinais de incêndio -  se fardava de bombeiro, à volta das velhas bombas de incêndio, guardadas no pequeno Quartel, à data situado no Largo da Chafarica.
Assim, fica por contar mais uma bela e interessante história de vida…! A história do célebre actor espanhol que foi bombeiro voluntário da Régua. Dele só resta um retrato do seu rosto, da autoria do artista Afonso Soares, para o orgulho e a admiração das presentes e das vindouras gerações de bombeiros do Peso da Régua.
- Colaboração de J. A. Almeida* para "Escritos do Douro" em Janeiro de 2011. Clique nas imagens acima para ampliar.
  • *José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também crónicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária, fatos do passado da bela cidade de Peso da Régua.

As cheias do rio Douro na Régua em 1916

(Clique nas imagens para ampliar)

Recortes: Régua, antes... Régua, depois...

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terça-feira, 25 de janeiro de 2011

OS IGNORADOS

Falo-vos da África dos matos sem fim,
Dos ecos perdidos no capim,
Das picadas vermelhas mas livres,
Tão livres como a liberdade.
Em cada curva uma palmeira,
Em cada lugar uma saudade,
Em cada sorriso uma clareira
De brancura e de amizade.

Falo-vos das noites de encantamento,
Das queimadas para lá do pensamento,
Da lua a beijar a baía de Pemba,
Do batuque e das esteiras na temba
Onde o meu corpo se satisfazia
Em outro corpo que, depois, dizia:
« São cinco quinhentas, patrão! »
E eu, cá dentro, aqui onde bate o coração,
Nem sei o que sentia.
Só sei que, depois, voltava
Com mais quinhentas na mão,
Roído pelo tédio e a solidão.

Falo-vos dos poemas proibidos,
Alguns esquecidos,
Outros lembrados
E agora publicados.

Falo-vos dos loucos a berrarem no entardecer,
Das sentinelas a dispararem para a escuridão
Com o medo aos saltos, na indecisão
Da manhã que não se sabe se vai nascer.

Falo-vos dos rios em que lavei o rosto,
Matei a sede ao sol- posto,
Gritei que não queria a guerra,
Mas não desertaria da minha terra.

Falo-vos da África onde não voltarei
Para matar a fome das minhas recordações,
Abraçar os irmãos que deixei
E lamber as feridas de todas as desilusões.

Falo-vos da África dos nossos soldados,
Dos seus sorrisos e dos seus abraços,
Uns, já mortos, outros, vivos-despedaçados,
Mas, todos eles, ignorados.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima representa parte do Parque Tsavo no Quénia/África e foi recolhida no site "Viajologia-Época-Viajando com Haroldo Castro". Composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.