quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

GERAÇÂO ESQUECIDA - II

África das manhãs morenas,
Dos risos nas areias molhadas,
Das noites suadas e serenas,
Fora dos tiros das emboscadas.

Beijei a tua boca em Porto Amélia,
Acariciei os teus seios em Quelimane,
Fiz amor contigo em Lourenço Marques
E chorei por quem ficava,
Do outro lado do mar,
A contar os dias da chegada.

África tão longe
E tão longa,
Corpos ao léu
Em camas de céu,
Amor às claras,
Fremente de vida,
Carne despida
De falsos pudores.

África das anharas,
Dos caminhos da coragem,
Das horas a sonhar
O regresso da viagem;
Negra risonha ao amanhecer,
Mulata dolente ao anoitecer,
Branca namorada de um Maio a nascer.
Terra de fogo, de sangue e de gritos,
Inúteis mortos e feridos,
O sol a ver
Um homem a morrer:

Adeus até ao meu regresso,
Sou este que me despeço.
Fui corpo e, agora, sou alma.
Uma bala me levou.
Finalmente tenho a calma
Que a guerra me roubou.

Recados de condenados,
Bocas espumas de sangue,
Corpos destroçados
Que viveram um instante.
Nacala, Nampula, Molocué, Quelimane,
Namacurra, Mocuba, Chire, Pebane,
Porto Amélia, Mocímboa, Beira,
Mueda, lá em cima, e Macomia perto.
Madrugadas sem eira nem beira,
Olhos de sono, mas sempre desperto.

Que é feito das cruzes enegrecidas,
Símbolos de uma geração sacrificada?
Estão todas desfeitas, esquecidas
A bem da Nação libertada?

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

As Caldas do Moledo: Um lugar cheio de sentimentos

Regresso sempre às minhas origens, á minha terra, às Caldas do Moledo, quando tenho necessidade de me reencontrar com a minha vida.

Para lá chegar, conheço bem caminhos no mapa dos meus afectos e sentimentos mais íntimos.
Apetece-me voltar, algumas vezes, para respirar aquele ar puro e me encher da paz e serenidade que só aquela paisagem única, povoada de segredos e mistérios, me consegue dar.
Sempre que ali regresso procuro alguém que nunca dali conseguiu sair, o poeta nascido nas Caldas do Moledo, Antão de Morais Gomes que atingiu a Eternidade, o outro mundo, a escrever um pequeno livro de sonetos, esquecido no passar do tempo, a que chamou de "Antão era pastor..." como se procurasse uma parte de mim, que ali ficou na minha infância.

Desta última vez, encontrei-me no meio de rio Douro antigo, um rio que só existe nos mergulhos da minha infância e das aventuras de rapazes que no inicio do verão tinham por hábito colher as primeiras cerejas da Penajóia, aproveitando as ausências e a falta de vigilância dos seus donos.

Coisas de rapazes, mal feitas mas que não chegaram a causar danos e prejuízos maiores a ninguém. Desse tempo, aprendi mais uma verdade simples que registei no meu caderno de apontamentos : "se alguma coisa aprendi com o tempo, foi a respeitar e cuidar de quem mais gosto, mesmo que às vezes me pareça insuficiente".

Para mim, cada regresso que faço às Caldas do Moledo, é como voltar a  um lugar onde  fui  feliz.
Para mim, o meu Moledo não é só um lugar, são todos os sentimentos que ali aprendi e nunca esqueci.
- José Alfredo Almeida, Peso da Régua, Janeiro de 2011. Clique nas imagens para ampliar.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

A Vila da Régua em 1916

Aqui está retratada uma vila da Régua de um passado recente - ano de 1916- que faz ter saudades...!

Nesse tempo, a vila era uma urbe importante e a grandiosa como escreveu Júlio Vilela, na revista ilustração Portuguesa, que destacava a boa qualidade de vida para os seus habitantes, ao referir que tinha: "um caminho de ferro com um movimento espantoso (... ) pode ufanar-se de possuir água canalizada; iluminação eléctrica esplêndida; um bom hospital; uma Associação de Bombeiros Voluntários que é modelar, um edifício camarário (...), um asilo para velhos e, prestes, a inaugurar o "Asilo José Vasques Osório", para a infância dos dois sexos, obra verdadeiramente grandiosa".
Passado quase um século a Régua perdeu quase tudo. Se há água e luz em abundância, já lhe falta um hospital e os comboios na velha estação perderam movimento e a importância de um transporte moderno e rápido. O edifico camarário foi reabilitado e está mais funcional aos seus munícipes. O Asilo José Vasques Osório, agora nas mãos da Santa Casa da Misericórdia, continua a ser uma generosa casa de solidariedade para crianças desprotegidas. E, finalmente, a Associação dos Bombeiros Voluntários... continua sempre modelar. Um exemplo de força invencível para a população reguense que serve com magníficos bombeiros. Com os 130 anos de existência, encontra-se a requalificar todo o interior do belo quartel, desenhado pela mãos do prestigiado Arquitecto Oliveira Ferreira, com obras de beneficiação de vulto e prepara-se para realizar, em finais de Outubro de 2011, com com toda a pompa e circunstância, o 41º Congresso Nacional dos Bombeiros Portugueses.
-  Colaboração de J. A. Almeida* para "Escritos do Douro" em Janeiro de 2011. Clique nas imagens acima para ampliar.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

A SENHORA DAS DORES

Caminho sem relógio, procurando as sombras, turvado pela mornaça e um cheiro de flora que me lembra o caril. As vivendas, com avisos de empresas de segurança e grades nas janelas, têm as persianas semi-cerradas por onde escapa o ressonar das sestas. Os carros, de marcas alemãs e suecas de não sei quantos turbos, também dormem embrulhados em lonas escurecidas de pó, pintalgadas por cagadelas de pássaros e folhas ressequidas. Vê-se que é uma zona chique onde o dinheiro não tem ideologia, de tanto nem se conta, ou, então, de pouco se disfarça em muito. Ao lado, na Estrada da Mata que leva a Vila Real de Santo António, o parque de campismo diz-me que talvez haja quem viva com mais gosto, sem medo de assaltos, a cheirar o restolho, os pinheiros bravos e as sardinhas assadas. Percorro a longa avenida Vasco da Gama, de esplanadas vazias, onde destila um ou outro loiro ariano a atestar o depósito com enormes canecas de cerveja que só de olhar metem impressão. No vasto areal continuam os fanáticos do bronze grudados às areias a derreterem os cremes e a celulite. O chão escalda como piche, desvio-me para a zona pedonal, evito o largo das carroças à espera do fim do dia para os passeios turísticos, entoando chocalhos e empestando o ar com as necessidades cavalares. Um grupo de peruanos (ou bolivianos?) montam, já, a aparelhagem para o espectáculo nocturno de música andina; algumas bocas lambuzam-se de gelados num ritual de lábios e de línguas que envergonha os atrevidos quanto mais os pudicos. Mostruários de jornais e revistas do jet-set, raquetes e bolas, camisetas berrantes e óculos de sol, fios dentais e calções de banho, isqueiros e pilhas, cremes e preservativos, colchões de plástico e remos do mesmo, cadeirinhas e guarda-sóis, toalhas e almofadas, chinelos para meter entre o polegar e o indicador e sandálias para as unhas pintadas, bóias e flutuadores infantis - tudo o que cabe num armazém de chinas. Os restaurantes, pegados uns aos outros, atravancados de preçários, esplanadas de cadeiras e reclamos de visas e american express, não dão uma folga para as pessoas passarem.

Deixo o Monte Gordo cosmopolita, dos prédios altos como pinocos, ilhas verticais de camas-sofás, e meto-me pelas ruelas estreitas da povoação antiga, pertença da genitura piscatória, com casinhas renteadas aos passeios. É a zona dos cafés-tipo-tasca ao custo do Norte, dos pratinhos de tremoços e amendoins a acompanhar imperiais, do frango de churrasco, do bezugo nas brasas, dos idosos desfiando o tempo em cadeiras de lona às riscas, das crianças gincanando por entre os carros estacionados, das mulheres de crepes vitalícias.

Entro na pequenina Igreja semelhante a um adereço de presépio, de suave frescura, simples como tudo o que, em nome de Deus, devia ser. Custa-me a adaptar os olhos à penumbra. Vejo uma Senhora de Fátima num nicho à direita do Altar. Todas as Senhoras de Fátima são assim: rosto plácido, olhar terno, boca sem ofensas, mãos delicadas segurando um terço com as contas dos pecados do mundo. À esquerda, um Senhor dos Passos, transportando uma cruz, tem um rosto de sofrimento mas os olhos sem rancor. Um arranjo floral, mistura de gladíolos vermelhos e gerberas amarelas, está aos pés de uma Imagem ornamentada com um cónico manto roxo até aos pés. Aproximo-me para melhor A ver e paro, surpreso, com a presença de uma velhinha, cabelos todos branquinhos, vestido negro, um ciciar de Padre Nossos tão leve que nem a notara, sentada a um canto junto à porta da sacristia. Fiquei especado, sem me mexer, transportado aos vultos da minha infância. Esboçou um sorriso e disse-me: «É a Senhora das Dores... É linda não é?...» Sorri-lhe, também, agradecido, e respondi com os olhos afogueados: «É linda como a Senhora que me fez lembrar a minha Avó!...» A velhinha, então, num farfalho de saias, levantou-se, abriu-me os braços, beijou-me, e acrescentou: «Deus Nosso Senhor o acompanhe!»

Quando abri a porta, à saída, por entre o ranger das dobradiças, ouvi (ou foi um eco da memória?):  «Deus Nosso Senhor te acompanhe, Meu Filho!» Era a voz da minha Avó que vinha das profundezas da terra, ou das alturas do céu, e se manifestava à rutilância do sol.
- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.