quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Tragédia na Ponte da Régua

Eram perto das 18.45 da 1º de Maio de 1964. Mais uma tarde primaveril acabava num horizonte cercado de montes de vinhas verdejantes e as aguas serenas de um rio pasmado na beleza das suas margens. De repente, um estrondoso ruído iria marcar de dor e sofrimento a sossegada vila da Régua.

Cumprindo com exactidão o horário, uma camioneta de passageiros da EAVT fazia o percurso habitual e rotinado, entre a cidade de Lamego e a Vila do Peso da Régua. Atravessava a ponte nova, já nos últimos tabuleiros – ponte destinada a uma linha ferroviária que nunca veio a ser construída. Avistava-se, já muito pertinho, o velho casario do Corgo, o imponente cais de mercadorias da estação do caminho-de-ferro, os táxis e camionetas de carreira a aguardarem passageiros, no Largo da Estação, onde também esta iria fazer a última paragem de giro.
Ao chegar prestes do fim da ponte, a camioneta cruza com um carro, um pequeno Austin Mini. Colidem lateralmente. A camioneta descontrola-se e guina para a esquerda. Sobe o passeio, derruba o gradeamento de ferro e precipita-se numa queda de 30 metros. A camioneta cai sobre lajes e pedregulhos que ladeiam a margem do rio, próximo do local onde as crianças costumavam brincar e tomar banho, conhecido como “Cais da Junqueira”. Desfaz-se em ferros retorcidos e vidros partidos. Gera-se o pânico nos passageiros. Surpreendentemente, um passageiro, o Sr. Matos Ferreira, sai ileso e a primeira coisa que faz é voltar a trás, à procura de um botão caído do seu casaco no meio daqueles destroços.
Pouco tempo depois, chegavam os primeiros bombeiros, o José Manuel Clemente e o pai, que ficam horrorizados com o cenário encontrado. São estes dois homens que prestam os primeiros socorros às vitimas feridas, ajudando-as a sair do interior da camioneta. De imediato, pedem reforços para responder com dignidade à gravidade da situação. Chegam os médicos e enfermeiros que trabalham na Régua e em Lamego, entre os quais é de salientar a presença do Dr. João de Araújo Correia. Começaram a ser retirados os corpos sem vida, o condutor e o cobrador da camioneta. Entre as manchas de sangue, aparecia calçado feminino, pastas de estudantes, uma colecção de pontos de matemática, chapéus de homem, um tubo de pasta dentífrica e as folhas de um ponto de matemática, com o nome do dono, Camilo Bernardes Pereira. Os feridos continuavam a ser retiradas do meio dos ferros retorcidos. Mais uma jovem sem vida, Maria Henriqueta, filha do vice-presidente da câmara, Roque Cruz.

Entretanto, os feridos são transportados nas ambulâncias dos bombeiros para a urgência do Hospital D. Luís I. Pouco tempo depois, corre a notícia de que acabava de falecer mais uma criança. Durante a madrugada, outra menina não resiste aos ferimentos. No dia seguinte, uma outra desiste de viver.
Acabam de perder a vida, neste trágico acidente, cinco adolescentes, na primavera da vida, e dois homens adultos. A Régua vive momentos de grande pesar, deixando-se enlutar pela tragédia das três famílias atingidas.
Para memória futura, João de Araújo Correia, chamado ao local para prestar assistência aos feridos, na sua qualidade de médico, não deixou de evocar a dor e o sofrimento dos sinistrados, dos familiares, dos amigos, de toda a população nem deixou de criticar a falta de civismo dos condutores, em geral, pouco dispostos a cumprirem o código, e lamentou que a tragédia acontecesse numa ponte nova, mas sem condições mínimas de segurança para circulação de veículos nos dois sentidos. Quem o ouviu, nesse tempo? Ninguém..! Fizeram ouvidos de mercador, foi como se nada ali tivesse acontecido. Passados muitos anos, naquela ponte, tudo permanece igual, mas com riscos cada vez maiores. Tudo isso faz parte de uma séria reflexão que ele próprio expôs na crónica “Duas Pontes”, publicada no jornal “Comércio do Porto”, de que aqui se transcreve o essencial:
“Mais um desastre de viação e, desta vez, horroroso. Cinco meninas em flor, ainda estudantes, e dois homens válidos, dois trabalhadores, encontraram a morte dentro de um autocarro, despenhado do alto de uma ponte, na Régua, sobre a margem direita do rio Douro.

Mas, além dos mortos, os feridos... O hospital da Régua foi hospital de sangue no fim de uma batalha. Quem assistiu àquelas ansiedades, àqueles estertores, continua a sonhar amargo pesadelo. O dia 1º de Maio de 1964, dia de rosas, fica assinalado, na Régua, como dia de goivos e martírios.

De quem foi a culpa? A culpa, senhores, não foi de ninguém. A culpa deve atribuir-se ao fatalismo, crença absoluta do automobilista português no que tem de acontecer. Com semelhante credo, tanto lhe faz guiar mal como bem, tanto lhe faz obedecer como desobedecer ao exame de condução. O código só tem valor antes do exame. Feito o exame, é letra morta.

Fanático do fatalismo, o motorista português é suicida sem desgosto e assassino sem rancor. E, se assim se pode dizer, um inocente. Maneira de o desviar de si próprio, fazer-lhe crer no livre arbítrio ou no determinismo, seria castigá-lo, de modo que lhe doesse, quando prevarica. Mas, a lei portuguesa e o tribunal português são benignos com o motorista desastrado. No fim das audiências, ouve-se dizer: pobre de quem morre.

Sobre a má filosofia, o vinho, a pressa, a inveja, o delírio - fazem da estrada portuguesa um cemitério. Não o seria se a lei fosse mais dura, e o tribunal menos indulgente.

Pobre estrada portuguesa! Em vez de caminho florido, é um calvário, uma fábrica de lutos. Na Régua, há hoje exemplos da maior “dor humana". Dois casais felizes perderam, cada um, duas filhas. São, como diria Camilo, sepulcros vivos de duas filhas mortas.
Quem acode à nossa estrada? Quem acode à família portuguesa? O caso da Régua é um grito que implora eco na consciência nacional. Tanta morte em estrada tão pequenina! Os desastres, em Portugal, são o dobro e o tresdobro dos inevitáveis.

O caso da Régua, à parte o erro ou erros de condução, é atribuível a outra espécie de incúria. Se, na ponte malfadada, estreita e desprotegida, com duas guardas que são dois ornatos, fossem proibidos cruzamentos e ultrapassagens, o desastre não teria ocorrido. Mas, nem do lado de Lamego, nem do lado da Régua, há sinal proibitivo. Nem sequer se reforça, num letreiro, o mandamento que obriga a moderar a marcha numa ponte. Não há nada! O que ali se faz, de vez em quando, é espantoso. Vai, pela sua mão, um motorista pacato. De repente, sem tir-te nem guar-te, passa-lhe à esquerda uma sombra. É um automóvel que vai para o outro mundo e quer levar consigo outros automóveis. Mais adiante, o motorista pacato avista uma nuvem. É outro automóvel, que vem ao seu encontro para o matar e fazer do seu carrinho um bolo. Pobre motorista pacato!

Na Régua, há duas pontes. Há a ponte nova, onde se deu o desastre, e a ponte velha, inutilizada por avaria do tabuleiro, mas, com pilares tão rijos, que pede tabuleiro novo. Se lho dessem, teria a Régua duas pontes, bastantes para o seu tráfego. Seriam duas pontes sem desastres, porque o trânsito se faria em sentido único. Ia-se da Régua a Lamego pela ponte velha e regressava-se à Régua pela ponte nova”.
Diz-se que o tempo tudo apaga, mas não parece ser verdade, quando se recordam os acontecimentos da tragédia na ponte da Régua, que não está esquecida por ninguém. Lembram-se dela os familiares das vítimas, onde a dor permanece viva, os feridos que sobreviveram da queda, acreditando que foi um milagre que lhes aconteceu nesse dia.

Os bombeiros também não esquecem o dia da tragédia. Aqueles que ajudaram na operação de salvamento e no transporte dos feridos e os que acompanharam o funeral das duas irmãs da família Roque Cruz, transportadas no velho pronto socorro Buick pela ruas da Régua, entre o hospital e o largo da Igreja Matriz, no Peso, onde se celebraram as últimas cerimónias religiosas.
Esta era a única missão que os bombeiros gostavam de não ter cumprido. Como aconteceu nas últimas viagens, ficou uma dor e luto profundo no coração daqueles homens que pelo caminho interminável da vida, choraram a morte daquelas crianças do acidente trágico, em cima da ponte nova da Régua.

Os nossos bombeiros prefeririam não ter participado nesta missão de dor que enlutou a população da sua vila natal, pelo facto de um acontecimento abrupto ter cortado o fio da vida a algumas jovens da sua comunidade e terem de ser eles a conduzir os restos mortais à última morada. Mas dar acolhimento a tal preferência seria traírem a razão da sua existência na Régua. A dor custa a suportar a todo o ser humano. É nessas ocasiões que as pessoas em sofrimento mais precisam da presença, do apoio e do auxílio dos amigos. Os bombeiros, igualmente em sofrimento, marcaram a sua presença amiga, oferecendo o seu auxílio até ao fim, até ao fel amargo da dor dos familiares destroçados. No meio das lágrimas que choraram mantiveram alta a nobreza que sempre os tem caracterizado.
- Peso da Régua, Dezembro de 2010. Colaboração de J A Almeida* para Escritos do Douro 2010. Clique nas imagens acima para ampliar.
  • *José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também crónicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária, fatos do passado da bela cidade de Peso da Régua de onde é natural e de figuras marcantes do Douro.
Jornal "O Arrais", Sexta-Feira, 1 de Dezembro de 2010
Arquivo dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua
Tragédia na Ponte da Régua - 1º de Maio de 1964.
(Dê duplo click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)
Tragédia na Ponte da Régua - 1º de Maio de 1964

    terça-feira, 30 de novembro de 2010

    A MÃE DE TODOS

    Alice deixou um dia a aldeia entre as montanhas durienses para servir na casa de um Senhor Doutor do Porto, levando consigo a ilusão de um sonho. Ainda foi à terra, duas ou três vezes, mostrar a roupa da cidade e os brincos que a patroa lhe oferecera. Hoje, porém, talvez já nem saiba como se toma o comboio. Enterrada a Mãe, que o Pai nem conhecera, vendida a leirita de uns almudes, fez um risco no calendário da sua recordação. Gastava as tardes domingueiras no jardim diante da casa onde fazia a comida e as camas, aspirava a alcatifa e sacudia as carpetes, limpava as pratas e entretinha adolescentes rabugentos, até achar o companheiro da sua sina. Afeiçoou-se por um mecânico e foi viver para uma casita mal alevantada dos subúrbios.

    Começou cedo a criação; enquanto as marés sobem e descem, viu-se com uma ranchada de filhos. Dava umas horas como mulher-a-dias com a sogra na guarda da canalha. Passava muito tempo no hospital, nas consultas de pediatria, e dava-se, por isso, com enfermeiras e médicos com o à vontade consentido de tantas idas e vindas numa preocupação aflitiva por quem levava ao colo e pelos que deixava sob o olhar da segunda Mãe. Já nem precisava de papel ou de espera, todos lhe toleravam a prioridade, que a uma Mãe procriadora não é só o respeito a mandar, mas, também, uma admiração condoída. Vinha do fim da cidade onde a auto-estrada se estende numa fita preta que se perde, ao longe, com os carros disparados a afundarem-se nas lombas.

    O rosto de Alice mostrava canseira, envelhecido antes da razão; as pregas nos olhos e nos cantos da boca traduziam embaraços e noites mal dormidas. Quase que não tinha peitos, chupados pelas bocas da inocência sem culpa de terem nascido a eito. Contudo, por cima desse espelho de privações, um sorriso bonito, muito bonito, tornava-a simpática e afável; era um daqueles sorrisos de quem logo se gosta por não enfatizar as desgraças. Acarinhava os filhos sem pieguices ou obsessões. Sempre «lavadinhos e arranjadinhos», não se escusava de, em pleno átrio, desnudar um seio mirrado para o meter na boca de um mais apressado pela hora do sustento.

    Joaquim sujava-se na oficina e em biscates de fim-de-semana para sustentar a prole. Não era gastador nem seroava nos Cafés. Viciado, só no tabaco e no futebol, mas, até nestes, se moderava: fumava Definitivos e o seu clube militava numa distrital sem nome nos jornais de segunda feira. Ia sempre como um fuso para casa, sem o fastio dos casamentos arrastados. Quando a mulher se demorava, esperava sempre que a porta se abrisse. Os vizinhos da ilha não lhe ouviam um ralho ou uma descompostura e, como «casal que não se insulta não se ama», julgavam que apenas se toleravam.

    Um dia, porém, as horas passavam e a Alice não chegava. Sabia-a numa consulta com «o mais novinho, de seis mesinhos». Combinou com a Mãe a continuação da vigília e meteu-se a caminho. Encontrou a Mulher na paragem do autocarro, diante do hospital, com dois bebés, um em cada braço.

    - Então o autocarro não vem, é?... Estás à espera do 99 como o Samora?!... – troçou.

    - Quantos já passaram!... – retorquiu a Alice.

    - Espera – espantou-se -, de quem é esse bebé?!

    - Foi uma senhora que me encontrou à saída e pediu-me para lhe ficar com ele.

    Disse que era só tempo de ir ali, não sei onde, fazer umas compras, já lá vão mais de duas horas e não aparece. Estou preocupada...

    - Oh! Mulher... Ela não volta mais! Não vês que o abandonou?!... Deixa lá!... Quem cria nove também cria dez! Vamos embora!

    E lá foram, cada um com o seu filho, no autocarro apinhado, a caminho da casita mal erguida nos confins da cidade para continuarem a servir o futuro do mundo.
    - De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
    • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

    quarta-feira, 24 de novembro de 2010

    Comemoração do 130º aniversário dos BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS DO PESO DA RÉGUA

    (Clique na imagem para ampliar)
    :: ::
    O convite de 28 de Novembro de 1880
    Quando se celebram as cerimónias do 130.º aniversário da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários recorda-se o convite manuscrito pelo punho do Comandante Manuel Maria de Magalhães dirigido aos Sócios Activos para comparecerem aos festejos da inauguração da Associação Humanitária "Bombeiros Voluntários do Pezo da Regoa" que teria  lugar, pelas 10.00 horas da manhã, na casa da extinta Associação Comercial, sita na Rua da Boavista - hoje a actual Rua Serpa Pinto - para dali saírem fardados em formatura, dirigindo-se à Igreja Matriz, onde assistiriam a uma missa que "há-de celebrar-se para comemorar o acto da inauguração e a benção das bombas".

    O resto do programa festivo do 28 de Novembro de 1880 havia de ser apresentado aos mesmos sócios durante a reunião. Só é pena não o conhecermos para aqui o recordarmos como um dia em que a sociedade civil reguense de mão dadas com o poder autárquico, souberam criar uma "instituição tão civilizadora, humanitária e útil"  para a protecção e socorro das pessoas do concelho da Régua, como bem salientou numa intervenção pública o ilustre presidente da Câmara, Dr. Joaquim Claudico de Morais, nesse longínquo tempo.

    Conhecido é o convite festivo do 130.º aniversário da Associação que se comemora no próximo dia 28 de Novembro de 2010 e que se dirige a  todos os sócios. Do programa elaborado, a Direcção e o Comando da Associação dos Bombeiros da Régua pedem aos sócios que participem em todos os actos e, em especial, na celebração da Missa a realizar-se na Igreja Matriz, pelas 10.30 horas, em memória de todos os bombeiros e directores que serviram devotadamente a nobre causa do voluntariado.

    Será, assim, uma boa maneira de lembrarmos o histórico convite do Comandante Manuel Maria de Magalhães e, o que ele e os restantes 27 sócios fundadores, nos legaram para futuro como grande  exemplo de generosidade.
    - J. A. Almeida, Peso da Régua, 24 de Novembro de 2010.
    (clique na imagem para ampliar)

    CONVITE
    A Direcção e o Comando da Associação Humanitária dos Bombeiros
    Voluntários do Peso da Régua têm a honra de convidar V. Ex.ª a
    participar nas comemorações oficiais do 130.º aniversário, de acordo
    com programa abaixo (27 e 28 de Novembro de 2010):
    (Dê duplo click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)
    Comemorações do 130º Aniversário dos BVPeso da Régua - Convite

    O meu barquinho

    (Clique na imagem para ampliar. Imagem composta em PhotoScape com fotografia original do Dr. Camilo de Araújo Correia e desenho de um barco rabelo de autoria de Fernando Guichard.)

    Por Camilo de Araújo Correia
    De tanto lhe namorar o barco, da cada vez que o via, o meu amigo acabou por me dizer: - Se gostas tanto desse barco, podes levá-lo! Ele, afinal, é mais teu do que meu, desde que lhe puseste a vista, em cima...

    Um barco rabelo maravilhoso, com a silhueta que tantas vezes ainda pude ver recortada nas águas e nas margens do Douro, quando fugia da escola para me extasiar com o tráfego do rio, no cais do Régua. As mãos que o construíram não quiseram faltar-lhe com a mínima verdade dos rabelos grandes. Todas as tábuas do casco harmoniosamente imbricadas, segredo da resistência do barco que é preciso, respeitar. Espadela e mastro nem mais nem menos compridos que a distância que vai da ponta da proa à ponta da popa. Os ventos e os rápidos, ou pontos, foram ensinando que teria de ser assim. A apegada também exige dimensões e colocação exactas. Lá no alto o arrais tem de movimentar-se no espaço cinético do rabelo, se quiser vencer as fúrias do vento e do rio.

    O meu barquinho vinha carregado de pipas e não lhe faltava qualquer apetrecho de navegação e subsistência. Cordame de andar à sirga, remos, varas, caixa do pão e do sal e, à proa, um pote com as tigelas alinhadas para a distribuição do caldo.

    Talvez se possa dizer que não há rabelo sem senão. O meu também o tinha - a vela. Não passava de um trapo, sem forma e sem vida, pendente da cruz do mastro. Tão morta que me parecia o sudário de quantos arrais morreram a subir e a descer o rio. Se Joane, o doido da Barca do Inferno, a tivesse visto, não deixaria de dizer na sua linguagem vicentina:

    - Caga na vela!

    Aquela vela foi, durante muitos anos, o desgosto do meu cantinho etnográfico. Da croça à podoa, da trouxa ao cesto vindimo, do copo de prova ao canado, do argau à tomboladeira do pote às tigelas da aguilhada ao carro de bois, do almude à angoreta, da enxada ao chapéu de palha, do… ao bordão de um mendigo que viveu da caridade das quintas, tudo autêntico, tudo perfeito menos o diabo da vela!

    O desgosto acabou, há dias. O meu velho amigo Artur Joaquim (Calceteiro), que andou no rio até lhe escapar por uma unha negra, alegra a sua reforma construindo barcos rabelos à porta de casa. Miniaturas encantadoras do barco que o ia matando lhe saem, agora, da memória e do coração.

    Levei-lhe o meu rabelo como quem leva um aleijadinho a urna romaria de fé. Veio curado curado. O meu barquinho tem agora uma vela moldada pelo vento, cheia de sol e de rio.

    Peso da Régua, Julho de 1986

    Com a arte de mestre Artur Joaquim julguei tratado o último rabelo aleijadinho. Muito me enganei. Se voltasse a este mundo, não lhe faltaria clientela.

    Com o desenvolvimento do turismo fluvial, molham agora a barriga nas águas do rio Douro uns rabelos (?) verdadeiramente monstruosos. No espaço que dantes era das pipas, há agora um grande salão, com janelas e cortinas. A apegada parece a torre de comando de um transatlântico. E, ridículo dos ridículos, a espadela parece o rabo cortado de um cão de luxo.

    Moliceiro é moliceiro, fragata é fragata, carocho é carocho, saveiro é saveiro… rabelo é rabelo.

    O rabelo morreu como um velho a contar os séculos no seu rosário de medos e glórias. É hoje um honroso e comovente símbolo da primeira Eternidade do nosso rio. Não merece que façamos dele uma deprimente fantochada.
    - Colaboração de J. A. Almeida para "Escritos do Douro" em Novembro de 2010.
    (Clique na imagem para ampliar - imagem recolhida na internet livre.)