segunda-feira, 20 de setembro de 2010

A PROCISSÃO

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Gumiares é uma aldeola de pouco mais de um cento de casas, acabadas e ricas, umas, construídas à medida das posses e remediadas, outras. Tem um caminho a meio, separando vinhedos escassos de pomares abundantes. Entra-se por ele, esmagando o serrim de uma carpintaria alimentada pelos pinheiros do monte de Santa Bárbara com a sua capelinha, em vigilância protectora, a encimá-lo.

Naquele final de uma manhã de Agosto, sob um calor abafado de trovão a molengar os corpos, a banda de música actuava no adro, os emigrantes encostavam-se aos carros com as letras dos países do seu suor e as chaminés fumegavam no fazer dos almoços melhorados.

Silvestre, mordiscando a expectativa, dirigiu-se, com o irmão, à casa do primo Gabito que os recebeu no cimo das escadas.

- Sejam bem aparecidos! – esfuziou, enquanto descia com as cautelas dos seus setenta e cinco anos de reumatismo avivado em cada Inverno frio e húmido como eram os de Gumiares. - Então só vieram vocês? Mas eu contava com todos, valha-me Deus! – acrescentou pesaroso.

Cumprimentaram-se sem fingimentos. A Rosália – devia ter metade da idade do Gabito – surgiu fresca, a enxugar as mãos no avental, em jeito de matrona precoce.

Gabito, ao fim de meia dúzia de anos de viuvez, fizera as partilhas com os filhos e amancebara-se, num gesto de escândalo rural, com a sua antiga criada. Rosália possuía uns olhos verdes de fogosidade contida num rosto com traços de ligação controversa; o modo de ser de uma gazela desconfiada numa selva de leões, mas intervalos de desinibição previdente em riso de fêmea não realizada.

- Vamos esperar pela procissão e depois almoçamos – disse Gabito, boca escancarada de satisfação. - Agora está tudo na missa, mas acaba num instante – rematou seco.

Subiram para a sala de jantar. Numa mesa enorme, rodeada por cadeiras aveludadas de espaldar alto, os pratos, bem alinhados, luziam com os talheres; numa mais pequena espalhavam-se doces variados. À direita, ladeada por sofás de couro castanho debruados a madeira do mesmo tom, resplandecia uma cristaleira com serviços caros; em frente, sobre uma espécie de armário, regougava uma televisão. Para a rua davam duas janelas e uma varanda de sardinheiras. Debruçado nesta, Silvestre explorou as vistas: o monte de Santa Bárbara, revestido pelo verde dos pinheiros, roçava as nuvens; logo abaixo, na ondulação da descida, talvez um acre de terra com um punhado de cepas dispersas, de cultivo poupado, aguardando a vindima numa espera desalentada; dos vergeis de macieiras, alinhados a esquadro, evolava-se um perfume farto e adocicado; para a sua esquerda, num recanto de sabugueiros desquitado do conjunto, um melro cantou.

- Então o primo não foi à missa? – perguntou Silvestre.

- Não nos damos lá muito bem, eu e o Padre - respondeu, com um tom de aborrecimento na voz. – Fez uma pausa. - Sabe como é, coisas da terra, desta gente que não tem nada que fazer – completou com algum sarcasmo.

- E que tem isso a ver? Uma coisa é a devoção, outra...

- Tem razão, mas, sabe, não gosto de o encarar...

Gabito fora atrevido. Em Gumiares nunca se vira uma coisa assim. Um homem com sete décadas nas pernas, mais para lá do que para cá, netos crescido, juntar-se a uma Rosália qualquer, com menos – ou um pouco mais, que interessava? – de metade da sua idade!? O povo falara. No seu entendimento, aquilo era, por um lado, maluqueira de velho e, por outro, ganância de rapariga nova a sonhar com contos de reis, lagar e tulhas cheias. «O maluco do velho», como o chamavam na aldeia, contudo, segurara-se. Os dois filhos mais velhos, arrumados cada um em sua casa, pomares e cepas independentes, encolheram os ombros. A divisão de bens, todavia, não calara o Silva. Mais instruído, com frequência liceal e gosto pela leitura, quiçá mais amorável e delicado, não o satisfazia tanto o materialismo das coisas como a honra de uma maneira. Ia mais longe e mais fundo, ao sentimento da vida que se faz de respeito e gratidão. Após discussões azedas, por bastas ocasiões a ameaçar uso de mãos ou o que estivesse mais a jeito, apelidava os irmãos de traidores, incapazes de respeitar o nome e a memória maternas. Ciente de que a alma da Mãe se reincarnara no seu rebate, mandou, numa tarde de Maio, e com a liberdade que a sua condição de solteiro permitia, uma rajada de desprezo a todos eles e abalou para o Brasil onde um tio paulista lhe prometera guarida. Levava a recordação dela e, no bolso, as notas da venda da sua parte a um ricaço de Chãos. O irmão mais velho, bem o pressionara para lha vender, mas berrara-lhe que antes queria deixar tudo a monte a ceder um palmo a «hipócritas como tu!».

O Silva subira na consideração de Gumiares, as gentes falavam dele com carinho, e o Padre Messias usava o seu exemplo na cristandade das suas prédicas.

Para Gabito, e restante família, o caso não os espantou. Desde os tempos dos estudos, em Lamego, que o Silva era dado a contrastes e arrebatamentos. Não suportava o que ele chamava imoralidades; o mais pequeno pormenor ético ou desconsideração consanguínea, deixava-o no limiar da exaltação. Repentino e apático, alegre e macambúzio, apaixonado e indiferente, irritado diante de um gasto e calmo perante uma poupança, podia-se afirmar, sem muito exagero, que foi com alívio que os irmãos o viram partir no carro de praça do Flecha. Só Gabito enxugou as lágrimas. Deu-lhe ganas de correr atrás dele, pôr-se diante do carro, gritar-lhe que abandonava tudo, até a Rosália se fizesse muita questão nisso, para que ele ficasse. Percebeu, num repente, que nada vale mais do que a presença de um filho, mesmo de um filho incómodo, mesmo um daqueles filhos a quem os Pais querem mais quanto mais mal lhes fazem. O Silva era o mais novo dos três, nascido já fora dos cálculos procriadores, o protegido da sua falecida, o menino que ela amparava porque – como dizia – «quanto mais sensível mais fraco». Nessa noite, nem o corpo quente da amante lhe fez esquecer a poeira que o Mercedes de aluguer levantou.

Gabito notou à sua volta o crescer de uma barreira de frieza que só o seu dinheiro conseguia rasgar. Tal magoava-o em dobro, porque àquela juntava a impostura com que o tratavam, mas a que se foi habituando. Até o Padre Messias deixara, sequer, de o olhar, a sua casa riscada no mapa dos desvelos paroquiais. A tudo resistia com maior ou menor custo, num faz-de-conta de normalidade. Só o silêncio do seu Silva lhe cortava o coração. Retirava-se, então, para o recém-adquirido pomar do Cosme, e ali chorava como um Pai, convulsivamente, abafando os soluços no barulho do motor de rega. Pusera-o a estudar num bom Colégio quando disse que queria tirar o Liceu, pensou que iria ser o Doutor da família em contraste com o João e o Fortunato que andavam de cá para lá no negócio da maçã. Se não continuou foi porque não quis. Enquanto a sua Mulher foi viva cumpriu sempre com os seus deveres, criara os filhos num exemplo de trabalho, fizera casa, prosperara com a inveja a pisar-lhe os calcanhares, nunca faltara com o necessário e, por vezes, resvalava nos dispêndios só para acirrar as emulações da aldeia. Juntara-se à Rosália porque não queria morrer sozinho num Lar com os filhos a visitá-lo para verem se ainda estava vivo e a lembrança da Mulher a aumentar-lhe o abandono. Mais do que uma amante de momentos raros ou um estímulo para disfarçar a preocupação prostática, era uma muleta a que se agarrava para cumprir hábitos de comida feita, roupa lavada, companhia de insónias, uma cabeça que não se esqueceria de lhe dar os comprimidos que o Médico receitasse, uma tratadeira para a incógnita de um fim de vida.

Um dia, malucando em tudo isto, o carteiro entregou-lhe uma carta de riscas amarelas. O coração quase lhe parou. Com a vista enevoada leu as primeiras letras do Silva. Que desculpasse, mas, ele, apesar da desconsideração que fizera à Mãe, não se esquecia do Pai; que estava bem, já dono de uma padaria nos arredores de S. Paulo, com algumas saudades, é certo, mas sem pensar em regressar.

- O Silva tem dado notícias, primo? – perguntou Silvestre.

- Lá está... Continua bem na vida, convidou-me para o ir visitar, só eu, claro... – reticenciou.

Um foguete estoirou, interrompendo a fala. Outros se seguiram num ribombo que escandalizou a pasmaceira. O caminho, de súbito, perdeu o sossego. Mulheres ligeiras, com camisas brancas e saias azuis, passando sob a varanda do Gabito, cumprimentavam como quem não quer faltar ao respeito pelos estranhos; outras, cochichando baixinho, coziam-se às sombras das macieiras e aceleravam o passo como beatas queirozianas de um qualquer Padre Amaro.

O sol estava no auge. A missa acabara e o foguetório estremecia a terra. A passarada fugia em revoadas e os cães ladravam. Não tardaria a procissão.

Foi no regresso de uma madrugada de Junho. De Porto Amélia a Chãos, parara em Nacala, Beira, Lourenço Marques, Durban, Cape Town, Moçamedes, Lobito, Luanda, São Tomé e Funchal. Em Lisboa, Silvestre chegava ao fim de uma longa viagem. Lá longe, uma saudade sofrida espraiava-se pelas picadas e pelas tembas; uma lembrança de estoiros e gritos, raiva e sangue, corpos vigorosos e farrapos-lençóis; o Pires, Furriel alentejano, com risos interrompidos numa curva da Serra Mapé e uma braço do Barbosa numa mina de Muidumbe; os ecos das noites cacimbadas ou das tardes causticantes, de acampamento em acampamento. O regresso a Chãos, povoado decrépito mas rico - porque fora ali que ele vagira untado com o sangue da Mãe -, devolveu-lhe a dignidade cortada por um ditador raivoso que o mandara num barco transporte de carne para canhão; reencontrava os abraços da família e dos amigos, gente que suava nos campos, alguns já passados por África, outros à espera de vez, ignorando se o velho Calígula era eterno ou morreria como todos os mortais. Também os foguetes acordaram a aldeia naquela madrugada sem horas. Silvestre regressava vivo e moreno do sol moçambicano, mais velho e mais perspicaz que a ausência criara defesas, um rosto seco mas uma alma sempre – mas sempre – solidária. Partira um dia de Chaves com uma angústia do tamanho da Serra Amarela a tapar-lhe a garganta. Silvestre estava de volta e o estrondo dos foguetes lembrou-lhe a aleluia da sua ressurreição.

- Primo, daqui a pouco temos a procissão – atirou Gabito, sem saber que o estava acordando do limbo da memória.

Silvestre sorriu atencioso e não disse nada.

O cortejo, após uns nervosos preparativos no adro, espraiou-se, colorido, no caminho: à cabeça, o estandarte da irmandade de Gumiares seguro por um homem sem idade que é sempre assim a dos velhos, muito velhos, quando, ainda por cima, uma opa negra os envolve; depois, entre aquele e o Sagrado Coração de Jesus, dois anjinhos espantados, de vestes caras e inocências brancas, com as Mães perto para lhes remediarem qualquer descaída das asas; um Cristo curvado, de barbas e coroa de espinhos, arrastava uma tosca cruz de madeira; seguia-o Nossa Senhora das Dores, distraída a mirar os ocupantes da varanda do Gabito, que, apesar de tudo, tolerante na sua crença baptismal, sorria; um S. João espartano, de costelas salientes, cordeiro enrolado ao pescoço, compenetrava-se do seu papel; Nossa Senhora de Fátima, alta e bonita, num rosto trigueiro, ligeiramente comprido, caminhava serena e alheia do que à sua volta se passava; a uma curta distância seguia Santa Bárbara, de menino ao colo, em andor azul e vermelho repleto de marcos e francos; o Padre Messias, envolto na alva de linho, segurava a Custódia sob o pálio que os mordomos, escorrendo suor, levavam, inquietos, a mexerem-se para disfarçarem o incómodo; a Banda, logo atrás, pautava a cadência com o homem do bombo transfigurado num possesso enrubescido; por fim, homens, de chapéus nas mãos, e mulheres, de lenços brancos rendados nas cabeças, cantavam o Avé-Maria, enquanto os que se postavam nas bermas ajoelhavam à passagem do sobrecéu.

Quando a procissão acabou de passar, Gabito, como liberto de uma obrigação, fez um sorriso a unir as orelhas, virou-se para a Rosália e disse-lhe: «Pode vir o anho!»
- Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no Blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Recortes - O Douro da Crise e da Fome - 7

Da "Ilustração Portugueza" - 1906, este texto assinado pelo escritor reguense Vieira da Costa.
Fala de um Douro que hoje se volta a temer....  
Clique na imagem para ampliar - Colaboração de José Alfredo Almeida, Peso da Régua, Setembro de 2010 para "Escritos do Douro".

Recortes - O Douro da Crise e da Fome - 6

Da "Ilustração Portugueza" - 1906, este texto assinado pelo escritor reguense Vieira da Costa.
Fala de um Douro que hoje se volta a temer....  
Clique na imagem para ampliar - Colaboração de José Alfredo Almeida, Peso da Régua, Setembro de 2010 para "Escritos do Douro".

Recortes - O Douro da Crise e da Fome - 5

Da "Ilustração Portugueza" - 1906, este texto assinado pelo escritor reguense Vieira da Costa.
Fala de um Douro que hoje se volta a temer....  
Clique na imagem para ampliar - Colaboração de José Alfredo Almeida, Peso da Régua, Setembro de 2010 para "Escritos do Douro".