domingo, 12 de setembro de 2010

As anedotas do bombeiro Justino

Chama-se Justino Lopes Nogueira e alistou-se no Corpo de Bombeiros da Régua, em 2 Maio de 1897, onde por promoção chegou ao posto de 1ª patrão, equivalente ao actual chefe. Pertenceu às primeiras formações de bombeiros da Associação, mas pouco se sabe da sua vida, a não ser que foi louvado, pelo menos uma vez. Deste seu mérito e distinção, importante na carreira de um voluntário, não se regista mais nenhuma informação. De resto, no curriculum deste homem, nascido em Santa Marta de Penaguião, consta que teve uma carreira política, no final da primeira república, ocupando o cargo de regedor e, mais tarde, o de administrador do seu concelho.

Dele só se conhece uma única fotografia que foi divulgada por um jornal da Régua, em 1930, juntamente com a de outros grandes e prestigiados bombeiros do seu tempo, dos quais foram destacados, pelo seu brio e coragem, os grandes “patrões” António Guedes Castelo Branco, Augusto Rocha, Álvaro Rodrigues da Silva, António Pinto Coutinho e Armando Vicente Ferreira da Cunha.
Dos primórdios da associação, do tempo da monarquia e da primeira república, o “patrão” Justino foi um dos bombeiros que se tornou mais conhecido e famoso. É certo que não se distinguiu pelos seus actos de valentia e de coragem. Mas como bombeiro trabalhador, competente e generoso, consegui atingir os lugares de chefia na corporação, o que revela cuidado na sua formação profissional. Deveria ser lembrado pelos seus méritos e valores de humanidade. Injustamente não são esses mencionados quando se fala e escreve do Justino, se bem que o recordem sempre com uma pontinha de ironia e de ternura.

As suas asneiras no uso incorrecto da gramática provocaram muitas situações de humor inesquecíveis, quando o Justino se queria fazer mais letrado. Algumas das suas tiradas, que não diminuem a sua figura e a dignidade, ficaram conhecidas como as anedotas do Justino.
O Chefe António Guedes que o conheceu e como ele foi bombeiro, numa das suas memórias dizia que ele era “um autêntico sósia, uma cópia tirada do célebre Calino, que nos fazia rir a bandeiras despregadas pelos maus-tratos que dava à gramática”. Não admira, que afirmasse que “com as suas parvoíces que proferia compilava-se, à vontade, um completo e volumoso dicionário de calão…”

Mas, os seus ingénuos erros de gramática nunca passaram de pequenos defeitos na boca de um homem que não deve ter nascido num berço de ouro nem teve, no fim da monarquia, a possibilidade de frequentar uma escola pública que lhe desse uma educação à altura – o ensino surge com a primeira república - para os cargos públicos que ele exerceu.
Quem também o recordou em várias crónicas foi o escritor João de Araújo Correia. Naquela que intitulou “As anedotas do Justino”, publicada no jornal “O Arrais”, traçou-lhe um breve retrato e conta alguns dos seus extraordinários disparates:

“Bem faz o António Guedes, recordando a Régua do seu tempo. Oxalá o pulso lhe não arrefeça tão cedo para continuar a recordá-la com invejável fluência e graça. Oxalá…

Aqui há tempos, lembrou António Guedes a extraordinária figura do bombeiro Justino. Digo extraordinária, porque não houve quem lhe chegasse aos nós em cretinismo.

Boa figura física tinha o nosso homem. Sólido, com as suas carnes sobre o enxuto, garganta bem timbrada… Mas, não abria a boca sem dizer asneira.

- Comi hoje perdiz com molho de pilão. Soube-me pela vida…

Se disse pilão, quis dizer vilão. Toda a gente sabe que o molho de vilão casa bem com a perdiz.

-Fui à feira. Não estava lá grande coisa. Se não fossem os suíços…

Quis dizer suínos. Mas, coitado disse, suíços.

-Deu-lhe de presente uma apendicite.

Não lhe chegou a língua para dizer pendentif – adorno feminino pendente ao pescoço – por aí pingente.

-Sempre simpatizei com o seu panorama…

Cumprimentou assim um político da época. Mas, em vez de dizer programa, disse panorama.

Pouco tempo depois, emendou a mão, chamando programa ao panorama. Que lindo programa!

O Cinema, naquele tempo, oscilava, tremia… Tremia como criança. Oscilava… Mas, o pobre Justino, que tinha no ouvido, como pulga, o verbo oscilar, deitou cá para fora aperfeiçoado em urcilar.

À gipsófila, que então se pronunciava gipsòflia, planta de flores miudinhas, chamava ele, de modo grandioso… pisgatòfilha!

Não sairíamos daqui hoje se quiséssemos completar o rol de tanta asneira. Completem-no os velhos, que porventura se lembrem do Justino.

Falta apenas dizer, neste lugar que teve carreira politica, no cargo de regedor, por sua honra, que o atestado supra é pobre.

Homem assim não podia ser só regedor. No declínio da primeira república, subiu de posto. Foi administrador do concelho de Santa Marta de Penaguião. Falta saber se também foi ministro.”
Quando o escritor na sua deliciosa prosa, evoca as suas melhores anedotas, quer que imaginemos o bombeiro Justino não como um simples ser humano, mas como um bom herói…!
As suas anedotas ainda nos deixam esboçar sorrisos de enternecimento. Não temos dúvidas que bom e generoso Justino, lá pelas bandas da Eternidade, se não andar atarefado de regedor e administrador nem ocupado nas missões altruísticas, deve estar a fazer sorrir com as suas anedotas os seus velhos camaradas, os bombeiros mais sisudos.
- Colaboração de José Alfredo Almeida*, Peso da Régua, Setembro de 2010. Clique nas imagens acima para ampliar.

As Anedotas do bombeiro Justino no "Arrais":
Poderá ampliar para "tela inteira" (full screen) utilizando as "ferramentas" disponíveis no "box" acima.
(Link - http://embedit.in/xBit4CLd6a - Arquivo em formato "pdf".)
  • *José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também crónicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária, fatos do passado da bela cidade de Peso da Régua de onde é natural e de figuras marcantes do Douro.

    quarta-feira, 8 de setembro de 2010

    O ARREPENDIDO

    (Clique na imagem para ampliar)

    Era uma vez um homem nascido de uma barriga de fome. A parteira da aldeia dera-lhe a primeira palmada e lavara-o num alguidar de barro. Cresceu descalço, de calções rachados no cu, comeu as azedas dos caminhos, fez saltar as pinhas na lareira, dormiu entre mantas de vindima, brincou no quelho com as galinhas, limpou o ranho às folhas das videiras, comeu cachos verdes escondido nas sombras de Agosto, aprendeu a tabuada e a escrever o nome com as mãos estendidas para a palmatória, jogou o monte e o sete e meio no adro da Igreja e chegou a tocar o sino para as missas de domingo.

    Nos socalcos, conheceu a enxada da cava, o ferro dos saibramentos, o peso dos pulverizadores, a moderação da espampa e o carrego dos cestos nas fainas de Outubro. Nos terreiros de poeira, ou de lama, namorou com os olhos e com os lábios, dançou nos leilões, embebedou-se ao desafio, mostrou a navalha de ponta e mola, gabou-se de valentias diante de lobisomens nos Quatro Caminhos e das conquistas no Socorro e nos Remédios.

    Os ralhos da Mãe e os rezingares constantes do Pai faziam-no olhar para o fundo do vale, onde a estrada, ébria de curvas, lhe sorria a evasão. Farto de brigas, da meia sardinha e um naco de pão ralão, da água-pé da cava, do pulverizador do sulfato e dos cestos atestados de uvas, abalou.

    Ainda o sol não arreganhara os dentes a uma lua mal talhada, sem mala ou embrulho, meteu-se a caminho, acalentando os passos da fuga. Na vila ribeirinha ripou os tostões do bolso e tomou o comboio que o levaria à cidade grande. Ruminou sonhos de fato novo, raparigas para apalpar e possuir em becos escuros, filmes de mamas ao  léu, Cafés de gente fina, futebol em Estádios maiores do que a sua terra, ruas compridas cheias de gente.

    O Revisor pediu-lhe o bilhete com uma voz de alicate. O rio, à sua esquerda, acompanhava-o, mas não era o mesmo que ele conhecia. O seu era manso e dava-lhe peixes para fritar; na sua borda, havia uma barraca onde, nas noites de Verão, adormecia com o seu deslizar como uma brisa de arvoredo. Mesmo nos Invernos em que ele galgava vinhas e transformava as ruas em canais, gostava de ouvir a água ali mesmo à beirinha, no cimo das rampas, sentir-lhe o cheiro a barro, aquele jogo de sobe e desce numa intimidade de risco e de estranheza. Quando ele regressava ao seu lugar, abandonando lama e entulho, partia-se-lhe o coração, desiludido com uma coisa tão linda ser capaz de deixar tanta tristeza. O rio que agora via não tinha fragas à mostra, era espesso e escuro, espremido por gargantas montanhosas e margens de lodos ondulantes; só os laranjais e o casario que trepavam até ao céu o alegravam.

    Chegado à cidade, um bruá, sem origem e sem dono, esmurrou-o de espanto. Encostou-se ao varandim exterior, defronte das portas da Estação, entreteve-se a ver as saídas e as entradas, virou-se ao contrário para se rir com tantos carros a quererem passar ao mesmo tempo, como as poedeiras da Mãe à bulha por um grão, e aventurou-se, precavido, desconfiado de uma cilada.

    A cidade do sonho era a confusão das gentes, que, de embrulhos nas mãos, corriam como se os tivessem roubado e fugissem, esbaforidas, de uma perseguição; gesticulavam, berravam, empurravam, cuspiam no chão e para o ar, gritavam de punhos erguidos ao mando de alto-falantes que esganiçavam palavras que ele nem percebia; pisavam os jardins, deitavam papeis para os pés e para os cantos. A cidade da lenda era um asilo de aleijados e cegos estendidos nos passeios, grupos de velhos encostados nas esquinas a falarem de futebol e de política ou sentados na solidão de bancos de praças despidas de árvores feitos lagartos ao sol; corpos jovens com caras gastas à espreita de carteiras distraídas; mulheres, de chumaços nos peitos, nas ruas das quinquilharias, a vomitarem palavrões de sexo estragado; rostos enfiados em máscaras a falarem sozinhos, rindo sozinhos, gesticulando sozinhos; loucos, de barbas desprezadas, a darem vivas a Reis de que nunca ouvira falar; velhas andrajosas, de cabelos encodeados, sapatos rotos e bocas sem dentes, sem um riso, sem uma mão de carícia, sem uma boca de ternura; crianças endurecidas por olhos de revolta e de escárnio, de dor e de desprezo, esticando os braços em busca de uma esmola como quem pede desculpa.

    Não precisou de se afastar muito. Bastou-lhe subir e descer duas ou três ruas, dar a uma praça com uma estátua de um cavalo de perna alçada e um homem (devia ser alguém importante) em cima a segurar a rédea, para compreender que se enganara na ilusão. Olhou para o alto: o céu pintava-se de ferro velho. Não respirava como na sua aldeia, não ouvia um choro de criança a ecoar nos montes, sentia-se preso, e lá estava a torre da Estação com o relógio a marcar o tempo. Meteu as mãos nos bolsos, contou o dinheiro, comprou um bilhete de regresso, foi a uma taberna, logo ali ao lado, comer uma posta de peixe frito, bebeu uma taça de branco e voltou aos socalcos da sua terra.
    - Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
    • Também pode ler M. Nogueira Borges no Blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua.

      sexta-feira, 3 de setembro de 2010

      O Baile das Vindimas

      Longe vão os tempos em que a ilustre Comissão Organizadora do Baile das Vindimas de 1961 deixava mostrar os seus rostos. Na sua maioria, dela faziam parte admiráveis senhoras, como se pode ver na fotografia, Raquel Ruas Rato, Margarida Quinas Guerra, Maria José Janeiro, Maria Arlette Pavão Bandeira, Maria Natália Viana Pinto, Teresa Martinho, Mercedes Quinas Guerra, Maria Odete Vasques Osório, Maria Fernanda Guichard, Maria Carolina Sampaio Vilela, Maria Nélia Penhor Janeiros Chaves que estavam acompanhadas pelos senhores Alberto Gonçalves Martinho, José Ernesto dos Santos, José Guedes Leite, Alfredo Baptista e Manuel Alves de Sousa – que contribuíam para o sucesso de um dos mais emblemáticos eventos sociais da região duriense, o mítico Baile das Vindimas, realizado vários anos, com o apoio dos bombeiros da Régua.

      Quem teve o privilégio de assistir e de participar num baile das vindimas sabe que não era, como aqueles que se faziam um pouco por todo o lado, nas instalações dos bombeiros, um mais um dos bailes dos bombeiros, sempre frequentados por gente simples e de trabalho, que não tinham mais sítios para se divertirem. O baile das vindimas era um verdadeiro espectáculo de “glamour”, brilho, beleza, graciosidade que reunia pessoas distintas e com classe. Como dizia um jornal da época, “juntando senhoras das mais consideradas do meio, todas elas vistosas, elegantes e muitas de verdadeiro recorte parisiense”. Sem dúvida que atenção ia para a elegância do vestir das senhoras, de finas toilettes e vestidos compridos e cintilantes e os cavalheiros de fato e casaco, de laço ou de gravata, ávidos de exibirem os segredos da dança. Quando começava a tocar um tango, um bolero ou uma valsa, os cavalheiros com aquela postura de boa educação, abraçavam pela cintura as senhoras, para mais uma dança, enquanto esse encanto não se perdia e ficava a saudade de um momento único e inesquecível.
      Dançava-se ao ritmo de orquestras e conjuntos musicais. Ao princípio, actuava a prata da casa, como os “Reguenses” e o Conjunto de José Armindo, mas depois vieram as mais famosas no país, a apreciada Shegundo Galarza e outras consideradas pela qualidade da música, como a Tony Hernandez, Pedro Osório, José Nóvoa, Tártaros e o irreverente Conjunto Aftas. Não chegou a cantar o Julio Iglesias, que foi contactado para estar num dos bailes, mas o seu “cachet” perto de duzentos contos, considerado muito dinheiro, fez hesitar os primeiros organizadores e aquele acabou por não vir actuar, se bem que, mais tarde, se tenham arrependido.

      Em Setembro de 1956, realizava-se o primeiro baile das vindimas no Quartel dos Bombeiros. Na imprensa nacional, o espectáculo foi anunciado como o “Grande e Anual Acontecimento do Douro”. Nos anos seguintes, o baile continuou a realizar-se no Quartel dos bombeiros, pelo menos, até ao ano de 1970. Mais tarde, alguns aconteceram na Casa do Douro, no seu esplendoroso salão nobre, onde realizaram, em 1982, o último grande baile de gala. Em 2009, uma organização ligada ao turismo fez uma tentativa de ressurgir o baile, mais uma vez, na Casa do Douro. Quem foi convidado para baile, que teve a presença de outras estrelas da sociedade, garante que não se podia comparar com os de antigamente…!
      Foi um grupo de irrequietos jovens, na casa dos vinte e poucos anos, que se lembraram de realizar um baile das vindimas, na Régua. No final dos anos 50, os filmes em cartaz no Cine-Teatro Avenida, eram o passatempo preferido do Fernando Magalhães, Elvira Pinto da Fonseca, a Bita, José Pinto da Fonseca, Tobé Sarmento, Fernando Carvalho, António Luís Correia, Armindo Lopes, Pôncio Monteiro (filho) e José Ernesto dos Santos e, fora desse ambiente, pouco ou nada de interessante mais tinham para se divertirem, depois de acabadas as Festas do Socorro.

      Numa conversa, no Café Nacional, onde se encontravam nas longas tardes de tédio, para ler o jornal e ver quem passeava pela movimentada Rua dos Camilos, surgiu-lhes a magnífica ideia de organizarem um baile de gala, como faziam alguns clubes sociais do norte. As vindimas costumavam trazer ao Douro muitas famílias, uns para férias e muitos outros para o trabalho nas quintas. Mas não havia eventos sociais e culturais que fizessem despertar a pacata vila. A realização de um baile dançante, abrilhantado com boa orquestra musical, podia entusiasmar as pessoas que permaneciam ou vinham visitar as belezas e encantos do Douro.
      Nenhum desses jovens fazia parte da associação dos bombeiros, pelo que alvitram Casa do Douro, como lugar mais indicado para o baile se fazer, aliás haveria uma melhor opção. A instituição representativa dos lavradores durienses, sediada num soberbo edifício de arquitectura imponente, típica do estilo e gostos do nosso Estado Novo, tinha disponível um salão de dimensão e de esmerado requinte. Depois, seria natural, que ela aproveitasse o evento para fazer a promoção turística da região duriense e do negócio do vinho do Porto. Só que os directores, por certo, alheados à realidade e ao fluir das ideias do tempo, não anteviram qualquer interesse, o que deixou os jovens surpreendidos com a indiferença e a impassividade, mas não desanimados no seu inabalável propósito.
      Os jovens determinados esforçaram-se por encontrar uma alternativa. Dirigiram um novo pedido, desta vez, à direcção dos bombeiros para que emprestassem uma sala do novo Quartel, situado na então Av. Sebastião Ramires, onde haviam sido realizadas indispensáveis obras de acabamentos. Naquele tempo, o edifício estava dotado com salas espaçosas que se podiam adaptar para salão de danças. Avaliado e examinado numa reunião de direcção, o pedido e o programa do baile, ninguém exibiu reservas nem barreiras à vontade firme desses jovens. Da parte dos bombeiros, pensando que também obteriam ganhos, houve um empenho para deixar realizar o baile nas suas instalações.

      Nesse ano, como o salão nobre se encontrava inacabado, aguardando benfeitorias, o baile das vindimas teve de fazer-se no rés-do-chão do Quartel dos Bombeiros, que foi, antecipadamente, desocupado das suas viaturas e ambulâncias e transformado numa pista de dança, ornamentada e iluminada. Os receios e as incertezas só desapareceram quando, surpreendentemente, perto de 400 pessoas compraram o seu bilhete, com um preço para os cavalheiros, de 70 escudos e para as senhoras, de 50 escudos, encheram o recinto, dançaram e se divertiram até altas horas da madrugada. Alcançava, assim, sucesso o primeiro baile de vindimas um estrondoso sucesso, que continuou por mais anos.

      Estávamos em 1956 e, a partir desse ano, a direcção dos bombeiros passava a assumir a organização do baile das vindimas. Para facilitar o trabalho, decidiram constituir uma comissão organizadora que se encarregasse de manter um programa de qualidade. Estavam incluídas sempre muitas senhoras sobejamente conhecidas e de mérito pessoal e profissional, que garantiam o brilhantismo desejado e o êxito nas receitas e os lucros a favor dos bombeiros. Isto fez provocar mudanças de pessoas na sua organização. Assim, a direcção dos bombeiros descobria uma forma simpática de conseguir mais fundos, sempre necessários para superar dificuldades económicas e fomentar mais obras. Um outro objectivo do baile das vindimas, previsto pelos organizadores, seria a promoção turística da região, para “enaltecer a beleza da Região do Douro e fazer propaganda do seu maior embaixador o Vinho do Porto”.

      O baile das vindimas passou a ser um símbolo. Entusiasmou muita gente da sociedade reguense e não só, algumas pessoas deslocavam-se de Resende, Alijó, Vila Real, Tabuaço, Lamego e até do Porto e Lisboa. A sua fama tornou-o num acontecimento social de prestígio, de nível elevado e de bom gosto, atraente para quem visitava o Douro, e obrigatório para os que gostavam de deslumbrar-se num ambiente fino e requintado.
      Se ele continua a ser evocado e elogiado, deve-se em grande parte aos que o sonharam e tudo fizeram para que fosse mais um emblemático cartaz das vindimas do Douro. Não podem ser olvidados os seus pioneiros organizadores, hoje alguns com a idade de avós simpáticos e respeitáveis, como o Magalhães, o Nano e o Pôncio, nem os directores dos bombeiros dessa época - em especial, o Sr. Alfredo Baptista - que merecem ser louvados pela ousadia e o contributo para uma maior divulgação do baile das vindimas. Se os bombeiros não facilitassem o seu Quartel, o baile das vindimas seria contado só como uma história de grandes amigos, imaginada nas mesas de um velho café, por maior que fosse a iniciativa dos seus criadores.
      Pela importância social que alcançou no passado, os bombeiros da Régua têm a obrigação natural de fazer ressurgir o brilho perdido do baile das vindimas, no seu genuíno modelo, sem a intenção de fazer reviver os bons velhos tempos, mas para não deixar cair uma tradição que, sem abandonar a preservação dos valores humanistas e solidários, pode voltar a atrair mais pessoas a este paraíso peculiar que é o Douro, no tempo das vindimas.
      - Colaboração de José Alfredo Almeida*, Peso da Régua, Setembro de 2010. Clique nas imagens acima para ampliar.
      O Baile das Vindimas no "Arrais" - 1
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      O Baile das Vindimas no "Arrais" - 2

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      • *José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também crónicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária, fatos do passado da bela cidade de Peso da Régua de onde é natural e de figuras marcantes do Douro.

            quarta-feira, 1 de setembro de 2010

            A NAIFA

            (Clique na imagem para ampliar)

            «Tá ver? Tá ver? É o que lhe digo, um home num pode deixar de ser seguro! Hoje, de manhê, tive mesmo p´ra trazer a naifa. Disse cá p´ra mim: “ bem, num debe ser preciso, esta malta é porreira “, afinal, é o que se vê. Abaliei bem mal! Olhem-me qu´isto! Já onte, quando saíram do lagar e começaram a mandar vir, diga-se de passage, sem razão nenhuma, deu-me logo cá uma zoeira no toutiço que nem imagina a minha impressão! Só me deu bontade de abandonar a prensa e botar logo a gadunha a um! São alebantados lá os gajos! Tá bonito isto! Anda-te aí um que não é nada bem encarado, na minha palavra de honra! Onte, atão, era o que mais palrava, “que não, que não“, e não entraram mesmo no lagar! O tipo é o chefe deles, é mesmo reguila, e armou-te aí um banzé dos diabos! E eu cheio de bô fé a dizer que esta malta é porreira! Sim, senhor,bonito serviço!

            Num importa o quê? Isso é o que lhe parece! Atão acha bem uma desfeita destas? Tem que haver respeito, isto inda num é o Brasil, ora esta! Eles pensam que vêm p´ra cá abusar ó quê? Que abusem na terra deles, homessa! Anda a gente a rogá-los, a dar-lhes dinheiro a ganhar, e depois fazem isto! Olhem-me qu´esta num tá mal, não senhor... Se me dá na bolha, inda bou a casa buscar o instrumanto! Tou a ver que sim! Inda bou buscar o alfange p´ra dar uns riscos àquele terrorista! Vocemessê num faz ideia da
            impressão que o gajo me mete!

            Como? Num entendi o que o senhor disse? Não, já o merquei há uns tampos. Aquilo, carago!, tem p´raí o comprimanto da mão daquele rolador! Só visto! Autântico! Tem aquele comprimanto à segurança! P´ra que preciso eu disso? Tá boa a chiba, tá! A cada passo é preciso. Há sampre quem nos queira mal, uma zanga, uma espera, sei lá, uma hora de aflição. Onde calha se encontra um patife. À moda do outro, um home num gosta de ir p´ró xadrez, mas em vez de as levar num há-de dar? Conversa... mas isso é indiscutíbel! Com calma? Com calma, leba-as um home e cala! É o que lhe digo! Eu tamém já lebei... Uma vez foi aqui no estômago, salvo seja aqui neste sítio, que nem lhe conto. Inda tenho a marca dos pontos e nunca mais me esquece! Lebei à volta de cinco pontos. Diz a minha qu´inté me saíram as tripas! Ela é que diz isso, eu num bi nada... Mas eu mandei-lhe, tamém, três rasgos que o puz às portas da morte! Andava eu a podar, nessa ocasião, numa Quinta duns ingleses, era uma coisa grande, até queriam pôr torneiras p´ra regar aquilo, veja bem; eu binha todos os dias a casa, nesse tampo a minha escrita tava sempre em dia, entende-me o que quero dizer?, bom, eu binha todos os dias a casa e, uma noite, encontro aquela alma no caminho. Desgraçado! Trazia uma borracheira que só bisto! Deu-me p´ró entreter. Às páginas tantas, começa-te lá cum relambório! Inda aguantei, mas depois num pude mais, inté a minha Mãe ofendeu, o grande cabrão! Como o senhor sabe, isso nenhum filho, que o seja de bom sangue, finge que num oube. Mandei-lhe umas lostras nas bantas e umas troviscadas no lombo cum pau que eu trazia sampre comigo, quando, sem eu contar, ripa-te de uma naifa e zás!, enterra-ma aqui mesmo, salvo seja. O que me valeu? A navalha da enxertia! Num lhe digo nada! Amandei-lhe umas cortadelas que nem queijo! Deixei-o lá a gemer, ali nos Quatro Caminhos, e soube, depois, passada uma boa tamporada, que se tinha mudado p´ra Lisboa e que andava lá a chegar massa nas obras. Eu lá me arrastei até casa, inventei que me tinha cortado cuma foice e quem me deu os pontos foi o Dr. Silvério, um santo home, num desfazando, e que Deus tenha em bom lugar. Claro que ele desconfiou logo, que era bô médico, e disse-me: “Pilroto, p´ra próxima chamo a Guarda!“ . Aquilo morreu, já foi há muito ano e inté nunca mais tive nada, mas nunca mais me fiei. Tanho andado sampre firme, nas devidas condições, que o mundo num tem só putos de Pais e putos de Mães, mas, tamém, filhos de outros Mães que num sabemos donde vêm e para onde vão, percebe-me o senhor o que quero afiançar?

            Olhe, que horas são? Pela nova ou pela velha? Minha Nossa Senhora! Já bou oubir um reportório desgraçado da patroa, que aquilo quando a comida esfria ela aquece quinté parece que a casa bai abaixo! Tem um génio estuporado! E ai de quem lhe responda, bai tudo raso, parece um ciclone! Daquilo é que tanho medo! É cá uma naifa que o senhor nem bai ao fundamanto! Amanhê, às seis velhas, tanho aí um lagar p´ra incubar. Santas noites e desculpe-me esta franqueza.»
            - Texto de M. Nogueira Borges extraído da publicação "Lagar da Memória".