segunda-feira, 3 de maio de 2010

Cartas de longe: Lembrando o cidadão e o jornalista Jaime Ferraz Rodrigues Gabão

 ACHEGAS PARA A HISTÓRIA DURIENSE
Quase em simultãneo, e, já lá vão nove anos, morreram nesta cidade, dois excelentes e prestimosos colaboradores do "Notícias do Douro" : - JAIME FERRAZ GABÃO e Engº. Técnico Agrário, JOSÉ CASTANHEIRA PELOTAS.

O primeiro colaborador antiquíssimo, vinha já dos primórdios deste semanário, mas recomeçou com mais assíduidade na Direcção do nosso querido e saudoso Amigo, NOGUEIRA GOMES, então Provedor do velho hospital, sediado no Peso.

Nesse recuado tempo, o nosso JAIME FERRAZ, escrevia muito, sobretudo sobre o Sport Club da Régua, tendo posteriormente ocupado um lugar de destaque nos corpos directivos. Foi funcionário do Posto Vitivínicula da Régua, como então se designava, sob a égide de um competentíssimo Engº. Agrónomo: - TABORDA DE VASCONCELOS. Todavia na ânsia legitíma de dar melhores condições de vida a seu agregado familiar, com a anuência de outro Engº. Agrónomo, GUEDES DE PAIVA, rumou às terras de Moçambique (Porto Amélia, hoje Pemba), e, por lá se conservou alguns anos. Um dia encontramo-nos casualmente na Avenida dos Aliados, aqui no Porto, ele vinha em gozo de férias, mas o tema da nossa conversa foi inevitavelmente a Régua e as suas gentes, que tanto idolatrava.

Com o 25 de Abril, após a "descolonização exemplar", como ele gostava de referir este termo nos seus artigos, recomeçou a sua colaboração sempre oportuna, neste semanário, como aliás também o fazia de Moçambique, de quando em vez, sobretudo quando as saudades da Terra se faziam sentir...e talvez por este seu apego notável ao "Notícias do Douro", ocupou o "topo" da pirâmide: - Foi nomeado seu Director.

Nos últimos tempos da sua existência, de passagem pela Régua, estivemos no seu "escritório de sempre": - A oficina deste semanário na rua da Ferreirinha. Notei seu semblante muito carregado, mas sempre com a caneta e o bloco (as suas armas) prontas para disparar, e, assim dar começo a mais uma crónica jornalística, mas...suas mãos, já trémulas, não iam ao encontro do seu grande sonho de sempre: - A Notícia Aqui e Agora, para o semanário que ele devotadamente serviu ao longo de algumas décadas: O SEU NOTÍCIAS DO DOURO.

OBRIGADO, JAIME.
- Carlos Ruela - Porto/Setembro/2001

Meu à parte: - Pouco convívi ao longo do tempo com esta personalidade típica da Régua e da inesquecível Rádio Alto Douro que dá pelo nome de Carlos Ruela.

A vida traçou rumos diferentes para todos nós. Mas, em minha infância, antes de partir no navio "Pátria" (1957) para Moçambique (Porto Amélia) com meus Pais, onde estivesse e chegassem as ondas dessa Rádio, também chegava o entoar dinâmico, exclusivo do Carlos Ruela... Não tinha paralelo em dedicação nem concorrente que o suplantasse nessa época de tecnologia antiquada para os padrões de hoje (com as inovações tecnológicas atuais, é fácil ser locutor de rádio). Sua voz era a verdade sem edições e encenações, do amor à Rádio Alto Douro.

Porque aprendi a admirá-lo através de minha infância e de meu saudoso Pai, tomei a liberdade de transcrever para a home "Régua" este "Recordando" enviado por meu Irmão Júlio Gabão e que inícia espaço dedicado ao, acima de tudo, jornalista JAIME FERRAZ RODRIGUES GABÃO.

Obrigado CARLOS RUELA... Lamentávelmente a memória dos homens de agora é curta. Mas a nossa não !
- Jaime Luis Gabão - Março de 2002.

O Jaime

Com a chegada do Outono, das primeiras chuvas e de uma friagem a despertar as alergias, inicio o meu luto do Verão. Atenuo a saudade nos arquivos da minha memória e atraco ou aterro nos lugares do sol. Deixem-me aterrar, por hoje, no Moçambique inesquecível.

Era um fim de tarde de um Março de sessenta e oito. O velho DAKOTA da DETA, com óleo a espirrar nos parafusos das asas, vindo de Nampula, fazia a aproximação a Porto Amélia, cidadezinha plantada numa escarpa sobranceira ao Índico. Desenhou um arco para apreciar a baía e, desacelerando sobre o Paquitequete, apontou ao Aeroporto, designação pomposa para um casarão ao lado (e mais ou menos a meio) de uma fita vermelha de terra batida, qual picada de capim aparado. Descemos por um escadote que me lembrou aqueles que, antigamente, se encostavam aos carros de bois para levar os almudes até às pipas. A noite caía com um pôr do sol arrebatador sobre as águas de Wimbe. Em África os dias acordam cedo e esplendorosos como um grito de felicidade e adormecem envoltos numa plangência que angustia as almas mais empedernidas. Cem anos que eu durasse nunca - mas mesmo nunca - esqueceria aqueles anoiteceres com os chiricos e os barucos silenciados pelo concerto das cigarras e uma ferida de sangue inocente a despedir-se do mundo.

Eu viera à frente, feito explorador de logística, na companhia do Pires, furriel alentejano, esfuziante e solidário, sem futurar (mos) a sua morte numa curva da Serra do Mapé, nas terras de Macomia, deixando-me, estupidificado, com o seu fio de ouro no bolso que, numa trágica premonição, me confiara. O resto da tralha e do pessoal chegaria no Pátria(*), aproveitando a sua passagem por Nacala, em rota, desde Lisboa, carregado com mais um contingente.

Foi em Porto Amélia - esqueçamos más recordações - que conheci um dos grandes Amigos da minha vida: o JAIME. Para os leitores deste semanário, a quem devotou o melhor da sua colaboração, e dos reguenses em geral, a quem prestou variados préstimos: o JAIME FERRAZ GABÃO. Labutava nos escritórios de uma empresa algodoeira - a Sagal - e como correspondente, para toda a província de Cabo Delgado, do DIÁRIO (de Lourenço Marques). Com ele reencontrei as minhas (as nossas) raízes e mutuamente nos amparamos nas saudades delas. Saído da Capital Vinhateira em busca de uma vida mais desafogada... Pertencia aos cabouqueiros de África que se misturavam com as raças e as etnias numa confraternização de que só duvidavam os que nunca tiveram a oportunidade de serem felizes naquelas paragens. Não me admirava, assim, que, mesmo com a lembrança dos socalcos, ele desejasse morrer na terra onde readquiria a dignidade, acariciado pelas manhãs claras e as noites cacimbadas.

Passamos horas, nas cadeiras da pensão Miramar, ouvindo "estórias" das savanas, bebemos cerveja no Marítimo e café no Pólo Sul derramando o olhar para o pequeno cais à espera de um dia de "S. Vapor", vimos "E o Vento Tudo Levou" no cinema-barracão, subimos e descemos as escadinhas que ligavam a parte alta à Jerônimo Romero do comércio, abriu-me a porta e sentou-me à mesa de sua casa sem horas nem lugares marcados, relacionou-me na sociedade civil e facilitou-me as páginas do seu jornal sem uma censura ou "sugestão".

Mal sabia ele que haveria de acabar os seus dias na terra que o viu nascer, obrigado ao regresso por uma descolonização exemplar, com os olhos húmidos pelas lembranças dos corais da praia dos coqueiros e dos campos de algodão.

Quando vou ao Peso(**) visitá-lo, trago comigo o seu sorriso moçambicano.
- Por M. Nogueira Borges - In Arrais de Novembro de 2003

 (*) Pátria - Navio de passageiros português da antiga Companhia Colonial de Navegação e que fazia o transporte de cargas e passageiros entre o continente europeu (Lisboa) e a costa Africana (antigas colônias de Portugal).
(**) Peso - Parte alta da cidade de Peso da Régua. Ali se localiza o cemitério onde Jaime Ferraz Rodrigues Gabão está sepultado.

(Transferência de arquivos do sitio "Peso da Régua" que será desativado em breve) 

terça-feira, 27 de abril de 2010

O VIÚVO

(Clique na imagem para ampliar)

É tudo sempre igual.  Às sete acorda, sem coragem de se virar para o lado que era o da Mulher. Estica o braço, num gesto instintivo, a ver se ela ainda lá está, e um vazio magoado repete-lhe a ausência. Limpa as lágrimas à aba do lençol, liga o rádio-despertador para o barulho lhe atenuar o abandono, mas apaga-o logo, que lhe enojam as notícias do mundo. Quando sente, na rua, o trânsito a amainar, levanta-se e atavia-se por hábito. O espelho só lhe serve para não se cortar ao fazer a barba; todos os dias os cabelos embranquecem, os ombros descaem, os olhos encovam-se e as faces enrugam-se para lá do que justificaria a natureza. Aquece, no micro-ondas, o leite com um pingo de café de véspera, torra uma fatia de pão que barra com geleia (o Médico proibiu-lhe a manteiga por causa do colesterol ) e veste-se.

Mal sai do elevador, acende o cigarro que melhor lhe sabe no dia todo. Desce a Avenida calado, olhos espetados no chão, as pessoas incomodam-no, o rebuliço enerva-o, a vida fá-lo triste. Compra uma rosa vermelha na Florista, entra no cemitério, pede a cadeirinha de abrir e fechar na guarita do segurança, a quem dá uma gorjeta mensal, desce as escadas para o 2º. talhão e senta-se junto da campa da Mulher. As pessoas cumprimentam-no, já o conhecem, assim como a morte que o enlutou. Segura a cara entre as mãos, no modo de quem se concentra numa oração, e debruça-se para a fotografia debaixo da qual está escrito: Eterna saudade do teu marido. N. 12/10/40 – F. 07/01/02. Os lábios dizem o que ninguém ouve, os olhos choram o que todos entendem. Ali fica a manhã, qual obelisco de cré, alheado de tudo, mesmo da confusão cigana nos gavetões do fundo. Quando a sineta toca, ergue-se, devolve a cadeira e diz «até logo» num esforço falado.

Se ganha coragem, vai a casa fazer um arroz branco e grelhar um bife daqueles já embalados no supermercado. Aprendeu a cozinhar quando a Clotilde, magra e branca como a caliça, caiu na cama. Fez quilómetros entre a cozinha e o quarto em que, lentamente, definhava, a pedir-lhe instruções para o refogado, o estufado da carne ou do peixe, a quantidade de sal, o tempo de cozedura, levar-lhe a colher com uma amostra para «vê lá se está bom assim», teimar com ela para comer «nem que seja um bocadinho», esmagar a sopa para não lhe custar a engolir.

Aflige-o a casa vazia, chega a ter mesmo saudades daqueles dias sofridos em que a ajudava a levantar-se para a levar aos tratamentos. Corre, por vezes, ao quarto; parece-lhe ouvir a Clotilde naquele gemido que foi a maneira de o chamar nos três últimos anos de vida que o cancro demorou para a vencer. Chora, mas, já nem repara, tantas e repetidas são as lágrimas que só quando não as tem é que se espanta. Senta-se no sofá, tira o som da televisão e adormece por uns minutos. Desce à pastelaria do rés-do-chão, toma um café e repete o caminho e as rotinas da manhã. Alguns, perante os seus olhos vermelhos, acercam-se dele, tentam permutar consolos, estimulam-no a passear, distrair-se; esboça um trejeito de agradecimento que lhe sai como um suspiro refreado. Com a chegada da noite, os círios, nas lajes, sobressaem entre margaridas, cravos e flores do campo. Custódio, do cimo das escadas, vira-se, uma última vez, para o lugar onde a Mulher eterniza, acena-lhe, manda-lhe um beijo, curva-se para a sua solidão, devolve a cadeirinha ao segurança e passa o portão com a sineta a dar o último toque de aviso.

Deambula pelas redondezas a fazer horas de jantar. Vai, frequentemente, a um restaurante barato, na cave de um prédio subaproveitado, a que se chega descendo umas escadas gastas, e lhe lembra o Aeminium dos tempos de Coimbra. Aí fica, após o café, a fumar e a fazer que vê televisão. Quando as mesas se esvaziam e os empregados começam a abrir a boca, levanta-se para percorrer os escassos metros que o levam a casa. Aqui chegado, dá uma dose de friskies à gata que mia a queixar-se do isolamento e da falta dos pés da Clotilde na cama, nem repara se a mulher-a-dias lhe deixou o chão limpo e a roupa passada, mastiga, para lhe dar o sono, mais umas folhas do livro de cabeceira (anda a ler o Diário de Um Mago do Paulo Coelho) e quando pressente a mornice a inebriá-lo sintoniza, baixinho, o despertador na Antena 2, carrega na tecla de sleep e fecha a luz. Mas, ao contacto com os lençóis, entra numa espertina suada, um vazio que o magoa, um medo, até, de estar só. Imagina a Clotilde junto de si, lembra-se quando a afagava, a amava com uma ternura duplicada, como se sentisse o seu corpo a fugir-lhe, a repetir-lhe, vezes sem conto, que a queria por amor, pela emoção e o prazer de a ter nos seus braços. Pensa no filho que não tiveram. Sempre o desejaram e tentaram, mas, quando, esgotados todos os meios, a Medicina lhes sentenciou a impossibilidade natural de o terem, recusaram qualquer outro processo, incluindo a adopção. A Clotilde ainda viveu algum tempo de dúvida, ele é que não: filho tinha que ser mesmo do sangue e consoante «Deus mandava». Bem escutava os colegas no emprego, amigos e conhecidos a queixarem-se das exigências filiais, as extravagâncias e irresponsabilidades, as noitadas e vícios, o desapego familiar e a frieza perante os princípios em que foram criados, a obsessão de quererem tudo num facilitismo que arrepiava os que abdicavam de si por eles, a cultura do depósito-de-asilo, transferindo para Lares os velhos e as suas reformas de anos e anos de canseiras como quem faz um trespasse familiar. E “se Deus assim o quiz Ele lá sabe porquê. Talvez achasse que para sofrimento já bastava o que viria”.

Custódio, quando se reformou da Companhia de Seguros, sem descendência que lhe condicionasse as horas ou aumentasse as preocupações, convencera a Mulher a acompanhá-lo numa viagem de revisitação do passado. Sempre sonhara voltar à África da sua comissão militar. Finalmente, o Cardoso, amigo dos tempos da Faculdade, gerente de uma delegação bancária em Lourenço Marques (nunca se habituara a Maputo), que lhe escrevia várias vezes a convidá-los para irem até Moçambique, recebeu-os com alegria e demora. Foram por um mês, ficaram três.

Mal desceu as escadas do avião inebriou-se com aquele cheiro inconfundível de África, um odor agrográfico que lhe encheu as narinas e a alma. Voltou a saborear as praias com palmeiras a marcarem riscos de sombras nas areias, os mariscos como aperitivos da cerveja gelada, o calor abrasador, a nudez das sestas, a angústia dos entardeceres, o agro-doce da catinga e da terra queimada, o perfume das acácias, mangueiras e embondeiros dispersas pelo mato e pelos bairros do caniço. Mas, já não era como no seu tempo. Desiludiu-se com o desleixo, a sujidade, a carência e a impressão de quem espera qualquer coisa ou alguém para um recomeço. Foi a Nacala onde desembarcara no Niassa; a Quelimane onde apanhara paludismo; nadou na baía de Porto Amélia e misturou as lágrimas da emoção com a doçura dos corais que nenhuma independência roubara; no Alto do Molocué, o alpendre do Chefe de Posto, em que dormira em algumas noites de cansaço, já não existia; o cantineiro apanhado que conhecera em Mocuba tinha ido «pró puto» e, na sua cantina, sem telhas e sem portas, definhavam as cinzas das fogueiras que tinham mitigado o cacimbo da noite anterior; em Mueda ainda escutou o eco do rebentar da armadilha que cegou o Adérito e decepou o Toni. Andou de um lado para o outro, como uma borboleta tonta, de avião e avioneta, de Land Rover e almadia, encheu-se de poeira, bebeu litros e litros de água e bazukas de Laurentina, gastou, sem os contar, montes de meticais, praticamente o que recebera no reajuste da assinatura da reforma, e sentia-se tão feliz que se imaginou, novamente, com vinte e quatro anos, agora livre de armas e camuflados e do medo de um tiro, vindo do capim, lhe ceifar a vida. Na picada que levava a Montepuez sentiu-se confuso, uma pressão no peito que até parecia que ia estoirar; ver-se ali, de novo, foi como se recuperasse os temores antigos, sabendo, ao mesmo tempo, que eles já não se repetiriam; esse conflito de emoções deu-lhe um sossego tão generoso que chorou de olhos ao céu.

A Clotilde estava espantada com ele. Aquela azáfama, aquela fome e aquela sede, como se o mundo fosse acabar no minuto seguinte, os seus gritos e os seus silêncios, o borbulhar das lágrimas e os berros de alegria quando reencontrava os lugares onde estivera. Uma noite, ele que era tão reservado, quase pudico, na intimidade, levara-a para as areias de Wimbe e, com a espuma das ondas a coçegar-lhes os pés, reinventaram uma segunda noite de núpcias com um batuque, para os lados do Farol, a celebrar rituais. Ao deixaram a terra morena foi como se acordassem, mais ele do que ela, dum sonho no paraíso.

Pouco depois de chegarem, num daqueles exames de rotina anuais, um pesadelo de chumbo derrotou-lhes a felicidade. Nunca mais a vida lhes sorriu. Rezaram para que a mastectomia fosse a tempo, mas, ele, chamado à parte pelo Cirurgião, ficou incumbido de disfarçar a esperança diante dela. A morte anunciada da Clotilde acabou com a razão da sua existência.

Custódio tem sessenta e cinco anos mas corpo de cem. Quem o viu e quem o vê espanta-se com as metamorfoses da vida, os alcatruzes desta nora em que uns gemem sob a canga do destino e outros, indiferentes aos dramas alheios como se eles nunca lhes acontecessem, levitam na ignorância. Só, sem ninguém a quem se entregar, vive, desde então, um dilema: há-de, ou não, recolher-se a um desses malditos Lares, num baixar de orelhas ao que tanto abomina, para que lhe sirvam uma sopa, lhe façam uma cama, o tratem quando a doença um dia o espreitar numa esquina, vistam-lhe o cadáver e o enterrem no talhão que, deixará escrito, será o da Clotilde. «Por um lado, é mau, que detesto compartilhar solidões desconhecidas; por outro, será bom, morrerei mais cedo. Não quero andar aqui muito tempo sem Ela.», disse ao Manuel, seu amigo do peito, num encontro casual, com um sarcasmo de revolta. O seu velho companheiro de estudos e de emprego, imaginando-se no seu lugar, sentiu um calafrio gelado.

Um dia, ao vê-lo, aligeirou a passada, apanhou-o, pôs-lhe um braço no ombro e gracejou: «Custo – era assim que o chamavam - ergue-me essa espinhela e ANDA VER O SOL! Lembras-te da canção do José Afonso que tu cantavas?...» Olhou-o com aqueles olhos sem estímulo, parados, esboçou um sorriso e apertou-o numa convulsão que, rapidamente, foi mútua. Manuel acompanhou-o ao portão do cemitério e percebeu-lhe, ainda, quando ele se virou para o abraçar, um sorriso de franqueza, quase, quase igual ao riso dos anos felizes, mas era um sorriso remoto numa cara desiludida.
- Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória.
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terça-feira, 20 de abril de 2010

PREÂMBULO

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Reformou-se com um misto de prazer e desconforto; não sabia definir bem: um aperto onde a vida se enuncia ou o prenúncio de uma saudade em que a mesma se atormenta, uma incoerência entre o que se diz e o que se faz ou o vazio de um fim que tem de acontecer e de que se ignora o depois, um alívio de incumbência ou a certeza irremovível do tempo.

Lembrou-se de quando fez o espólio, completado o serviço militar obrigatório, no regresso de África. Depois de ter sonhado, a todas as horas, com esse dia, perguntara: «E agora?» Agora tinha sessenta e cinco e não vinte e quatro anos, o futuro encolhera, mas ainda teria tempo de saber se é mais fácil ou mais difícil polir uma identidade quando se dobra a esquina do meio século. Sentia-se dono de uma serenidade sem desalento porque o passado não lhe remoía o presente e nunca se sentaria à espera das tábuas necrológicas. Uma vaga nostalgia de fim de ciclo e o afastamento dos rostos e das camaradagens ensombravam-lhe a decisão. Recuperaria os agrados antigos quando os livros o faziam viajar pelos caminhos da fantasia ou lhe levantavam dúvidas desconhecidas; ouviria as vozes que lhe ecoavam dentro enquanto o sono demorava; sentiria a revolta pelas mediocridades que excluímos de nós, num auto-convencimento de suficiência que, egocentricamente, nos compraz; observaria as pessoas e catalogálas-ia pela testa, os olhos, o nariz, o sorriso, o falar, a pose, o andar, os gestos, fotografálas com a distância do desprendimento que não concentra a obrigação, aquela voluptuosidade de adivinhar nos outros a (dis)concordância entre o parecer e o ser. Não seria um tíbio praticante nem um pequeno burguês preocupado com o estatuto, mas o que o tempo desse que é sempre o contrário do que se deseja. A vida ensinara-lhe que não há prudências nem regozijos programados, pois ninguém controla os desígnios. Convencia-se, por vezes, de um fatalismo insuperável e nele justificava os desaires, ausentando-se de um tempo que lhe cheirava mal, de um mau gosto intragável, e pouco lhe dizia a vida sem princípios com os deuses todos a morrer como se as gentes os inutilizassem. Vivia-se uma idade de ausência de modos, sem regras; matava-se como quem não reprimisse um instinto; insultava-se como quem praticava um costume; cortava-se com a amizade, sem um arrependimento, como se só a implicação creditasse o carácter; apunhalava-se uma gratidão como quem risca um erro ortográfico. Aprendera que noventa por cento do que se faz é inaproveitável e os dez restantes é que salvam qualquer mortal. Amava a vida, mas não esquecia a morte. Era um conflito entrea luz e a escuridão. A morte era-lhe essa marca da infância, semelhada pela vida fora, do tamanho de uma sombra poligonal, conjecturada e não vivida. O pai morrera cedo quando ainda era um nascituro. Partira sem lhe dizer adeus, um adeus sentido, com lágrimas e com dor. Não conhecera o Pai nem sofrera a sua morte, e morte que não é sofrida nunca se aceita. Fora sempre a sua vulnerabilidade, a sua angústia, uma ferida que se disfarça, mas não sara. Finar-se-ia com essa orfandade incessante, nunca permutada. A morte, era-lhe, assim, uma injustiça divina e uma ingratidão do destino porque, crente, nunca a compreenderia na sua ocasião, suportando-a em silêncio, contra os risos e as incompreensões, os desprezos e as raivas, um castigo sem culpa, impossibilitado de apresentar provas e testemunhas da sua inocência. Transportou essa memória negra dos mortos falados nos caminhos da aldeia, as pessoas a fazerem-lhe festas como a um gato de luxo triste, e as vozes cochichadas dentro de casa a encobrirem segredos para evitar agoiros.

Da janela do seu quarto, olhava a rua cheia de carros, aflitivamente parados, os transportes públicos, biombos laranjas, engolindo pessoas de cheiros disfarçados com lavanda ou almíscar, calças justas a amparar as carnes e a atiçar as varizes, olhos esfiapados de sono, ostentação de roupas e anéis, cabelos de gel e olhares de cima, misturados, a contragosto, na selva dos dormitórios.

Chovia desalmadamente, uma chuva oblíqua ao sabor de um vento de pedras que vergastava tudo, um frio tão forte que nem o roupão lhe impedia o sentir. Respirava-se um ar de malícia, degradação e restos de capricho; dir-se-ia a insurreição do céu que derrubava árvores, casas, pontes e vidas. As televisões, os rádios e os jornais não paravam na descrição das tragédias que enlameavam terras e enodoavam almas. Era um retrato incorrigível que não se pode alterar o vazio dos rostos na falência dos sorrisos. Parecia tudo estilhaçado num ruído de vidro antigo. Os velhos diziam que era uma maldição da natureza por tantos e tantos anos a escarnecê-la, os novos calavam-se, incapazes de entenderem as profundezas do mundo.

A sua rua era um beco de rupturas, ardil de invejas e, até, o engana–vistas do ódio. Todos queriam andar, afirmar a sua atitude, e só não passavam por cima uns dos outros porque isso corresponderia a uma destruição mútua. Olhava-os com aquele deleite de quem já tendo vivido um mal e a ele escapado, se via, agora, livre de voltar a suportá-lo. Acabavam-se os acordares com o rádio a dar as desgraças das sete, a noite ainda pesada, a chuva a zunir na floresta cimenteira.O emprego transformara-se num trabalho à tarefa, vigiado por computadores e  olhos medrosos de não agradarem aos contabilistas dos cifrões; serviços quantificados em minutos de qualidade inútil para a engenharia dos milhões. Longe iam as datas em que o dinheiro tinha a normalidade do sustento e não a exclusiva ganância de um lucro, em que se solidarizavam valores e o companheirismo defendido como arma de classe. Agora, era tudo de uma dolorosa deselegância e indiferente comodismo; ontem, havia pobres e ricos, hoje, desgraçados e milionários; ontem, lutava-se por reciprocidades, hoje, por imitabilidades. A revolução, nascida de um grito refreado durante décadas, nacionalizara, de afogadilho, os grandes grupos para depois os revender aos antigos ou novos donos. Era a quitação das facturas, o ajuste de contas, a adaptação ao novo liberalismo de tiques nunca esquecidos, mesmo que alguns falsos estalinistas, praticando astuciosa duplicidade, fingissem amargura com os bolsos já cheios na amálgama revolucionária.

Quando a tecnologia começou a dispensar o raciocínio e a apelar ao titerismo, a ginástica mental sorrateiramente despedida pela eficácia cibernética, os sentimentos anestesiados pelo clorofórmio dos indicadores de rentabilidade e os corações endurecidos pelas cantilenas tecnocráticas, poucas dúvidas lhe restavam de que o seu prazo de validade estava a chegar ao fim. Concebia a reforma à moda antiga quando da função se saltava para um púlpito de onde se viam as pessoas e as coisas com a calma da experiência, mesmo de azimute encurtado. A viagem para o esquecimento tinha novos entendimentos e as prateleiras empresariais estavam cheias de inocentes ultrapassados pelas modernas gestões de recursos humanos para quem um SER é uma atrapalhação. Juntaria os seus anos de militar à força, descontados a preço rapace como se o tempo dado às fardas fosse um interlúdio turístico, e voltar-se-ia para a nascente da sua esperança para com ela percorrer as últimas milhas do seu termo.

A vida era de uma brevidade assassina e os afectos não a comandavam. A sobrevivência fazia-se pelo assentimento do silêncio. Quando afrontava a pestilência, perdia sempre; não sabia mover-se no charco da intolerância. No meio, até ao estoiro, ficavam os espasmos da alma. Pensava, pensava muito, e entusiasmava-se tantas vezes calado que, quem o visse, julgá-lo-ia um asténico de sorriso exegético ou dúplice, com as lágrimas sobressaltadas tanto na inquietação quanto na placidez. Pertencia àquele modelo a quem se pergunta se algum problema o incomoda e a explicação nunca se dá porque é impossível entender como resposta: « É o mundo que me aborrece, tão injusto ele é. » Dizer isto é um estorvo, uma idiotia, uma excentricidade que coloca qualquer um no lixo esquizofrénico. Mas era a sua resposta, não tinha outra, e, quando o Inverno  lhe castigava os ossos, só a ironia o ajudava a suportar as horas. Era um ironia metálica, mistura de palavra laminada e olhar cortante - tamanho o sarcasmo - que condescendia com a perturbação e o insulto alheios como se eles lhe justificassem, ainda mais, a desafectação com que os encarava.

Iria, então, encher as folhas virgens dos seus cadernos, ditar-lhes memórias e hojes, mesmo que não achasse o termo correcto para o que se sente e se quer dizer; escrever até ao cansaço, até doer, correndo os perigos de não o perceberem, na desilusão das suas esperas e na acusação dos seus conceitos; escrever para espantar demónios, destruir fantasmas, repelir sofomaníacos, aplacar despeitos, desfiar paixões e dedilhar desejos. Ele sabia que quem escreve não é eunuco, e dar luta à frieza humana contraria o fim civilizacional. Por isso, escreveria, mesmo que as gavetas engolissem as suas palavras, mesmo que um dia as rasgassem, mesmo que um dia as queimassem. Floresceriam com ele numa fraternidade impaciente e perturbadora, num sonho de sede insaciável.

Chegara o seu tempo de recordar, que, com amar, é dos verbos mais sérios da vida.
- Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória.
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    quarta-feira, 14 de abril de 2010

    CARTA DO LAGO

    É a hora em que a tarde morre por entre as palmeiras que bordejam o lago como uma ilha rodeada de terra. Não se vêem canhoneiras da marinha nem canoas de pescadores negros, só o borbulhar das águas de encontro à palha apodrecida. O ar está parado como a resignação dos homens, vidas adiadas que anseiam o tempo de as refazer. Já nem vigiam, assistem ao escorrer das horas que desejam calmas, para se irem deitar sob as latas ou lerem as revistas que o Movimento Nacional Feminino lhes manda. O fastio derrama-se nas faces e as cartas da sueca quedam-se na mesa de pedra; nenhum vento as leva, nenhuma vontade as usa. No perímetro à volta, capinado há muito, não se distingue a vala, só uma solidão acabrunhante de matar à nascença qualquer riso, que incomoda os nervos de quem desaprendeu o futuro.

    Escrevo-te cheio de cansaço e de suor. Há duas semanas que não saio para a picada. São quinze dias de maior certeza de vida. Tudo está quieto, estranhamente quieto, demasiadamente quieto, de desconfiar. É sempre assim que começam as tempestades. A minha fadiga é mais de dentro. Pareço de chumbo. Às vezes, penso se já não perdi a capacidade de amar. Só que, quando me lembro de ti e as lágrimas me tapam os olhos, sei que estou vivo, com todas as esperanças renovadas, capaz de te fazer desaparecer o luto que vestiste quando parti. Já vi o que nunca imaginei, senti o que ignorava como se sentia, e só temo que me habitue à violência como uma defesa perante os desmandos da loucura. Tenho dias em que sonho morrer, muito velhinho, na curva de um rio, à sombra de árvores frondosas, com os melros a cantarem numa manhã ensolarada. São – vê lá tu – dias escuros, com o cacimbo a tapar a mata, um eco doloroso das cantigas da minha infância quando me perdia nos caminhos dos vinhedos, levando comigo as horas de regresso por ti marcadas. Eram os tempos dos ninhos de pintarroxos, do perfume da erva, da quietude das sestas e do azul do sulfato a confundir-se com a largueza do lugar para onde vão as almas dos justos. Era o tempo da inocência, o melhor tempo de toda a gente.

    Vêm, dos lados do Niassa, uns cheiros muito fortes de capim queimado, arrastados por uma correnteza de fim de dia. O mundo acomoda-se para o sono e a noite não sei que mistérios vai mostrar. O matagal fecha-se. É a hora da fauna. Sente-se vontade de rasgar a clausura, fazer em cacos o espelho da dissimulação, esmagar este pesadelo interrogado: « Alguém se lembrará, um dia, que aqui estive(mos)? »
    - Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória.
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