(Clique na imagem para ampliar. Imagem criada por Fernando Guichard e que consta da publicação "O Contador de Histórias Dos Jardins Suspensos" de autoria de José Braga-Amaral em primeira edição de 2004 da Associação dos Amigos do Museu do Douro.)
Por ocasião em que se discute o uso oral e escrito da língua portuguesa e se fazem alterações à mesma, lamenta-se que sem ampla discussão popular que envolva a totalidade das nacões que falam a lingua de Camões, o que coloca em dúvida a legitimidade da iniciativa, com seus "defensores" justificando que a simplificação e uniformização linguística favorecem o combate ao analfabetismo(?), transcrevo aqui um conto do médico e escritor duriense João de Araújo Correia, falecido em Dezembro de 1985. Poderá notar-se ao ler o texto, o quanto a forma de falar e escrever a nossa magnífica lingua portuguesa foi modificada ao longo dos anos e termos/vocábulos seculares vão sendo esquecidos por "falta de uso" ou comodismo simplista destes "novos tempos". Como também notarão certamente, a "imensidão" do mundo para além do Marão, descoberto pelo cinquentão Morgado de Santa Quitéria, em sua primeira viagem à "distante" Lamego, para lá da Régua e do Rio Douro.
Este post é dedicado ainda à memória do prezado e falecido Amigo, Gil Guedes, vereador da Câmara Municipal de Peso da Régua. A ele devo a generosa oferta da publicação "O Mestre de Todos Nós", de onde extraí este conto, quando, hà uns anos atrás, tivemos a alegria de nos reencontrar em nossa cidade-berço, bela e também sempre presente onde quer que estejamos.
DE JORNADA - Por João de Araújo Correia.
Este conto veio de pais a filhos. Conta-se á lareira, todos os invernos, em Trás-os-Montes.
Só acabará quando não houver lareiras nesta província. Nem lareiras, nem lenha que aqueça os narradores.
O Morgado de Santa Quitéria, homem botocudo, abalou da aldeia pela primeira vez, para ir a Lamego, do outro lado do rio, aos cinquenta anos.
Era vulgar, naquele tempo, nascer e viver uma pessoa na concha de uma aldeia. O que não era vulgar era decidir-se um homem aos incómodos duma jornada no limiar da velhice. A ida do Morgado à cidade lendária, com o peso de cinquenta anos em cima dum cavalo, afligiu a família e alvorotou os vizinhos.
O que valeu, para sossego da Senhora Morgada, foi a confiança que tinha no cavalo e no arrieiro - envelhecidos em casa, à manjadoira e na cozinha, sem desgosto de categoria. Conheciam, melhor do que ela e o marido, o estirado caminho da cidade, aonde iam, pela carne e pelo trigo, todas as semanas.
Mesmo assim, a Senhora Morgada responsou o marido a Santo António - não fosse o inimigo, oculto em alguma brenha, empecer-lhe a viagem. Têm-se visto exemplos... Ao Morgado, homem mazombo, é que não ocorreu ideia de perigo. Benzeu-se, por se benzer, picou o burro e despediu - com arreiro à frente a romper caminho. Bem precisava de o romper, que a manhã inda não era clara.
Passado o horizonte de Santa Quitéria, deparou-se ao Morgado, pela primeira vez, a serra do Marão - safira lapidada a preceito pelo melhor joalheiro. Sobressaía de uma série de largas cumiadas.
- Aquilo é que é o Marão?, perguntou o Morgado ao companheiro. Bem se diz lá que não dá palha nem grão. Que há-de aquilo dar?
Foi esta a observação que o Morgado de Santa Quitéria fez ao arrieiro ao encarar o Marão pela primeira vez.
Se o Morgado de Santa Quitéria fosse poeta, diria ao arrieiro mais alguma coisa ou não diria nada. Certo e sabido é que chocaria um poema ou criaria um mito - o casamento de Apolo, ainda inocente, com uma serra virgem.
O Morgado não era poeta nem para aí caminhava. Quando, de cima do cavalo, à sua mão direita, lhe apareceu o fundo vale do Tanha, com povoações ainda adormecidas, perguntou ao criado:
- Olha lá, Manuel, qual destes povos é então a cidade?
- Não é nenhum, por enquanto... Saberá Vossa Excelência que esta pinhoca de casas, que parece feita á navalha, com ruas do lá vem um tão direitas como se as tirassem por pautas, é a Persegueda. Mais adiante, onde está a igreja, ao pé do rio, é Vilarinho. Além, é Alvações... de Tanha, que há outra Alvações. Mas nenhum é a cidade. Daqui lá...
Calou-se o fidalgo. Foram descendo, vagarosamente, para o rio Corgo. No lugar das Paredes, amo e criado tiraram o chapéu à porta duma capelinha.
- Manuel!, berrou o fidalgo.
- Senhor!
- Não é nada... No primeiro repente, ao ver esta capela, tão asseada, ao cimo desta rua, pensei que fosse já a cidade, como quem diz: a Sé. Tenho ouvido dizer, lá em casa, que há uma Sé na cidade.
- Pois, sim, fidalgo, mas, daqui lá, morre a burra e quem na tange.
Ao atravessarem o Corgo, na união deste rio com o rio Douro, receou o fidalgo afogar-se, vendo a àgua humedecer, a pouco e pouco, as pernas do cavalo. O arrieiro, de cima das poldras, sossegou-o, dizendo:
- Não tenha medo, fidalgo, que ele está afeito...
Livres da água, perguntou o fidalgo:
- Qual dos dois, afinal, é que é o Douro? O gordo ou o magro?
- É o gordo, fidalgo. O magro chama-se Corgo.
Na Régua, pequena vila como era então, quis o fidalgo, à fina força, ver a cidade. Tanto comércio, tanto carro de bois, tanta pipa, tanto sal, tanta barrica de sardinha salgada... deram-lhe volta ao miolo.
- Tira-me daqui, Manuel, que já estou arrependido de ter saído de casa. Para que é tanta pipa?
Cruzaram o ventre do rio Douro na Barca. A proa, como um cutelo alceiro, rasgou, de baixo para cima, a corrente do ponto do Clérigo. O fidalgo, de pé sobre o remoinho bulhento, manteve-se impávido. Subiu-lhe à carranca o doairo dum navegador.
Do outro lado do rio, na subida de Cambres, parou o cavalo e pôs-se a olhar para todas as bandas. Pareceu-lhe que as montanhas, como grandes meninas, dançavam de roda, acenando-lhe com lenços brancos. Sentiu-se estonteado.
- Olha, Manuel, estou a ver que malho do cavalo abaixo!
- Agora malha, fidalgo! Tenha mão...
Passante a Bugalheira, deram de costas ao rio Douro - parado, ao sol da manhã alta, como jibóia empanturrada. Faíscava.
- Manuel, cismou o fidalgo, nunca pensei que o rio Douro fosse tamanho lontro.
Chegados a Portelo, diz o fidalgo:
- Graças a Deus, que sempre chegámos...
- Inda não, fidalgo! Inda havemos de passar pelo Relógio de Sol. Depois... falaremos.
Amuou o fidalgo. Mas, reagiu... Endireitou, no selim, o corpo de atleta. Olhou para longe, para as encostas de Trás-os-Montes. Aqui e além, relampejavam aldeias.
- Disseste aí, Manuel, que havemos de passar pelo Relógio de Sol... Meu Deus! Nunca pensei que o mundo fosse tão grande!
Ponham os olhos neste morgado os que almoçam em Lisboa e jantam em Paris, acham o mundo pequeno e querem ir à Lua procurar o espaço.
Livro: "O Mestre de Nós Todos" Antologia de João de Araújo Correia;
Autor: João de Araújo Correia;
Organização: José Braga Amaral;
Patrocínio: Câmara Municipal do Peso da Régua;
Direção gráfica e capa: Loja das Ideias;
Impressão: Papelmunde, SMG, Lda. - V. N. Famalicão;
1.ª edição: Dezembro de 1999;
Depósito legal: 144936/99;
Colecção: Campo da Literatura - 33
CAMPO DAS LETRAS - editores, S. A., 1999
Rua D. Manuel II, 33-5.º - 4050-345 Porto
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