Apesar da sua longa carreira militar, o coronel Adelino da Silveira conservou até ao fim da vida o espírito romântico de rapaz e homem feito.
De porte garboso, palavra fácil e voz modelada ao calor dos sentimentos, era figura dominante de todos os bailes e outros convívios de predominância feminina.
Por todas as terras da vasta geografia percorrida ficaram marcas do seu espírito de D. João e temperamento de Casanova: Filhos, saudades e ressentimentos eram o seu rasto. Conheceu mulatas de todos os tons, indianas de todos os silêncios e chinesas de todas as vénias. Mulher onde demorasse o olhar guloso guiado pelas pontas do bigode atrevido era mulher à beira do abismo. Abismo que tanto podia ser um devaneio do mais puro romantismo como sobressaltados encontros em ninhos proibidos.
A sua fama de conquistador precedia-o, muitas vezes, nas terras do seu percurso. Maridos e namorados se inquietavam, quando o viam chegar, e respirar de alívio, quando o viam partir. Na roda dos homens Adelino da Silveira era também muito estimado pela sua simpatia imediata e discreta ilustração. Nunca exibia, por exibir, os seus vastos conhecimentos.
No decurso das suas aventuras amorosas Adelino da Silveira veio a cair por duas vezes nas malhas do matrimónio.
A primeira foi em Lourenço Marques. Uma divorciada de olhos fundos e voz envolvente teve artes de o levar ao registo civil. Foi matrimónio de pouca dura. Um e outro de temperamento leviano escandaloso, cedo acabaram por dar uma satisfação à sociedade ofendida. Divorciaram-se com um sorriso de mútua e plena concordância.
O segundo casamento foi em Macau. O, então major Adelino da Silveira conheceu num Baile Do Governador uma chinesinha da mais luminosa e delicada porcelana. Foi um amor ao primeiro olhar e ao primeiro encontro de mãos. Do baile ao altar foi um curto passinho de matrimónio. Em pouco mais de um ano, a frágil chinesinha se consumiu ao fogo de uma impetuosa paixão e de uma traiçoeira tuberculose galopante.
Adelino da Silveira desejou morrer, garantindo mesmo aos amigos que tinha fechado o coração para sempre. Regressado ao ocidente, foi esquecendo em Portugal as memórias sentimentais do oriente.
Reformado em coronel, sem família e com amigos dispersos, Adelino da Silveira ficou muito só, a viver num velho hotel de Lisboa. A frequência de museus, teatros e bibliotecas parecia aumentar-lhe ainda mais a solidão.
Pelo Natal, o coronel Adelino da Silveira ia sempre passar uns dias a uma terra escolhida ao acaso. Mudava de ambiente, mas não mudava de solidão.
No hotel ou estalagem em que ficasse, ceava na sala deserta rodeado de fantasmas. Os fantasmas das mulheres que tinha amado verdadeiramente, reunidos ali em consoada. No fim do melancólico repasto, o coronel sentia um forte desejo de falar com uma mulher qualquer. Sem outro recurso, corria para o telefone com o balão de brandy entre os dedos.
Era o tempo em que se dava à manivela e do outro lado uma voz perguntava:
- Número?
O coronel não dava nenhum número. Com a sua voz experiente e cativante falava à telefonista de encontro de solidões… do desejo de companhia que, nessa noite, toda a gente tem… do feliz recurso de se terem um ao outro…
Se a telefonista se deixava prender, o coronel desfiava memórias interessantes e poesias românticas, ligadas por uma linguagem da mais pura e subtil galanteria.
A telefonista, excitada e desvanecida, apenas o interrompia para atender as poucas chamadas daquela noite de paz.
- Um momento, senhor!... Um momento!...
Naquele Natal, o velho coronel foi longe de mais na sua emoção. Ao terminar uma poesia de amor exaltado, o auscultador escorregou-lhe da mão e a cabeça pendeu sobre o peito. O balão de brandy caiu no chão com grande fragor.
Por alguns segundos, ainda se ouviu do outro lado do fio:
- Que foi?... Que foi, senhor… Está?... Está?...
Camilo de Araújo Correia, in jornal “O Arrais”
- Sobre o Dr. Camilo de Araújo Correia neste blogue.
Clique nas imagens para ampliar. Texto cedido pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA) e editado para este blogue. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Dezembro de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos